“Isolados, fascistas fazem arruaça e provocam mortes em Santa Cruz”
- Detalhes
- Leonardo Wexell Severo
- 17/11/2022
Baderneiros ateiam fogo na Federação dos Camponeses de Santa Cruz (El Radar)
“O fato é que os fascistas de Santa Cruz estão isolados, então querem sangue, vítimas para levantar bandeiras e dizer que o governo de Luis Arce é culpado. Mas, até agora, já são quatro mortes, e todas foram eles que produziram”, afirmou o especialista em Desenvolvimento Municipal e Administração Pública da Bolívia, Romeo Amorim.
Em entrevista exclusiva, Amorim destacou que o locaute levantado por uma casta local dirigida pelo governador Luis Fernando Camacho e pela União da Juventude Cruzenhista (UJC) foi derrotada nas suas pretensões de adiantar, sem qualquer critério, o Censo da População e da Moradia de 2024 para 2023.
“O governo de Santa Cruz está isolado pois todos os demais departamentos [oito dos nove Estados] já se manifestaram que não estão de acordo com a sua proposta. E também se isolou do ponto de vista do empresariado, que pediu publicamente que parem os protestos. A maioria está aceitando o decreto presidencial que fixa o censo para 2024”, ressaltou Amorim. Para o histórico defensor do processo de mudanças, “Camacho adota uma intransigência que vai além do racional e serve somente aos interesses dos Estados Unidos, que está de olho no estratégico lítio boliviano”.
O censo deveria ser realizado de dez em dez anos e foi postergado em virtude do golpe de Estado de Jeanine Añez contra o presidente Evo Morales, em 2019, e a epidemia de coronavírus. Os resultados do censo têm a ver com as medidas estatais posteriores, como a redistribuição de recursos públicos e de cadeiras do legislativo.
Confira a entrevista.
Quais as raízes históricas deste radicalismo de Santa Cruz?
Esta é uma forma tradicional que têm os ultraconservadores em Santa Cruz e que nasce historicamente em 1956, quando os bolivianos constituíram o governo do Movimento Nacionalista Revolucionário (MNR) e foram realizadas as grandes mudanças estruturais do país: a reforma agrária, o voto universal e o fim do monopólio da mineração dos três barões do estanho.
Romeo Amorim (Arquivo)
Naquele momento, em Santa Cruz, os falangistas eram um partido político fascista, que se opunha à luta contra o latifúndio. Criaram o Comitê Pró-Santa Cruz e o utilizaram para fazer política. Desde então, começaram a falar em nome da população local com uma política antiocidente, anticolla (como são chamados pejorativamente os povos indígenas quéchua e aymará), tudo isso somado ao anticomunismo e ao anticentralismo.
O centralismo naquele momento fazia muito dano ao país, pois tudo ficava concentrado na capital, La Paz. Eles souberam se aproveitar desta situação para fazer política com o chamado “comiteísmo”. E cada vez que queriam algum objetivo político, armavam e convulsionavam Santa Cruz.
Chegamos a 2005, quando eles foram novamente derrotados e buscaram formas de se contrapor ao governo do Movimento Ao Socialismo (MAS). E tivemos, como todos sabem, as lutas de 2008, quando criaram a famosa Meia Lua, com o apoio dos departamentos [estados] de Beni, Pando e Tarija para atuar pela divisão da Bolívia. Uma estratégia separatista, que havia sido aplicada há pouco tempo na Iugoslávia.
Naquele momento tiveram o apoio explícito da Embaixada dos Estados Unidos…
Um apoio direto. Não nos esqueçamos que já para a eleição de 2005 o embaixador norte-americano declarou que votar em Evo Morales significaria perder todo o apoio dos Estados Unidos. O que o embaixador não sabia é que na Bolívia o que mais havia eram pessoas contrárias à ingerência norte-americana. Assim, em vez de atuar contra Evo, acabou fazendo propaganda para o MAS. Uma vez eleito, o presidente agradeceu publicamente ao embaixador por ter sido o seu melhor chefe de campanha. [Risos].
E Philip Goldberg foi enviado logo depois da vitória de Evo, em 2006, para assumir a direção da Embaixada, vindo diretamente de Kosovo, onde havia atuado no processo separatista da Iugoslávia.
Voltando ao tema específico dos falangistas de Santa Cruz podemos dizer que, por natureza fascista, são violentos. Utilizaram em todos os chamados “paros cívicos” de ações brutais, desencadeadas pela União Juvenil Cruzenhista. São grupos de jovens treinados militarmente, com formação e organização militar. É por isso que diante da reação do povo de Santa Cruz esses grupos paramilitares agridem as pessoas que divergem de suas opiniões. Se as “paralisações” organizadas pelo Comitê Pró-Santa Cruz fossem voluntárias, nenhuma seguiria adiante.
De que forma atuam essas milícias?
São milicianos que chegam em carros ou motos e param em frente às lojas com seus cacetetes onde estão trabalhando as pessoas e as ameaçam. Há um último vídeo de um café em pleno centro da cidade em que essas falanges começam a ameaçar a todos para que saiam e fechem o local. E atiraram lixo em quem estava ali.
Então, quem quer trabalhar, como os transportistas, têm medo de ser agredidos por esses grupos paramilitares. Por isso não surpreende o fato de milicianos terem colocado fogo na Federação dos Camponeses ou saqueado a Central Operária Departamental (COD), que simbolizam a resistência dos movimentos sociais.
E como o governo central reage diante desses inumeráveis crimes e abusos?
Desde 2008 o governo central tem adotado a tática de não responder à violência deles. E o resultado foi que já naquele ano queimaram e saquearam muitas instituições do Estado, como o Instituto Nacional de Reforma Agrária (INRA), e roubaram documentos importantes que têm a ver com o direito à propriedade da terra, e que lhes interessava desaparecer.
Em 2019 tomaram de assalto o órgão eleitoral de Santa Cruz, uma ação coordenada em nível nacional, com o objetivo de destruir todas as informações armazenadas.
O governo tem buscado evitar a confrontação, mas as pessoas vão acumulando uma raiva bastante grande diante da prepotência destes grupos de direita. E, às vezes, há gente que reage. É o momento que essas falanges se aproveitam do seu poder midiático para transformar companheiros que estão se defendendo – e que são vítimas – em agressores, em vândalos e tudo o mais.
No caso da polícia, quando eventualmente age para evitar maiores danos, grupos de mídia denunciam que a segurança pública está agindo a serviço do MAS e outras sandices. Lembro que em 2008 essas mesmas milícias agrediram o comandante departamental da Polícia de Santa Cruz.
No meu livro Bolívia nas ruas e urnas contra o imperialismo publiquei a foto de uma bandeira nazista tremulando em Santa Cruz. Pude presenciar locais públicos queimados e pichados com ameaças de morte ao presidente Evo Morales. Agora vejo a mesma efervescência golpista contra o presidente Luis Arce. O que fazer?
O prejuízo econômico deste locaute iniciado em 22 de outubro já ultrapassa os US$ 700 milhões [como apontou o ministro da Economia] e as perdas vão se acumulando. O setor produtivo de Santa Cruz já defendeu publicamente que as milícias parem com os seus atos. No entanto, a resposta que lhes deram foi colocar pneus em frente à Câmara de Comércio e atear fogo. Esta é uma demonstração clara do método de intimidação que utilizam.
Ameaçaram até mesmo a ministra da Presidência, alertando que se cuidasse, que conheciam onde morava e sua família. E ela teve de se proteger, porque são sérias as ameaças que fazem.
Ao secretário-executivo da Central Operária Departamental colocaram preço pela sua cabeça. Quando roubaram a sede da COD levaram até os medicamentos distribuídos gratuitamente por médicos voluntários que prestam atendimento no local.
Apesar disso, e considero muito importante sublinhar, o governo não tem caído no seu jogo. O fato é que os fascistas de Santa Cruz estão isolados, então querem sangue, necessitam de vítimas para levantar suas bandeiras e dizer que o governo de Luis Arce assassinou. Mas até agora, já são quatro mortos e todos foram eles que ocasionaram.
Um jovem que vinha a uma da manhã do seu trabalho morreu enforcado, pois os milicianos haviam colocado uma corda na avenida. Agora, como estão identificados, o candidato deles à prefeitura de Santa Cruz vem a público dizer que a responsabilidade é do jovem. Imagine o tipo de raciocínio doentio que toma conta de uma gente que põe a culpa na corda e no morto por ter passado ali.
Por definição de oito dos nove departamentos, o censo está garantido para o início de 2024 e a distribuição de recursos correspondentes para o final do mesmo ano. Além disso, Santa Cruz se isola das mais de 300 autoridades municipais e mantém sua proposta da realização em 2023. Qual a sua interpretação?
Estão isolados pois todos os demais departamentos já se manifestaram que não estão de acordo com a proposta do Comitê Cívico de Santa Cruz. Se isolaram do ponto de vista do empresariado, que pediu publicamente que levantem todas as medidas. A maioria está aceitando o decreto emitido pelo governo central que fixa o censo para 2024.
No entanto, eles estão se reorganizando e buscando ganhar fôlego em novos aliados no comércio e nos transportistas. Por isso é muito possível que ainda tenhamos mais um tempo de enfrentamento. Camacho adota uma intransigência que vai além do racional e serve somente aos interesses dos Estados Unidos, que está de olho no estratégico lítio boliviano. São oito departamentos de um lado e a uma pequena elite de Santa Cruz de outro. Nada justifica a continuidade desse radicalismo.
O fato é que para seguir postergando a conclusão da paralisação, propuseram que o decreto presidencial seja formulado como lei e queriam que fosse aprovado imediatamente. E isso não é tão simples, pois precisam ser respeitados os procedimentos legislativos. Parece que está ficando claro que não conseguirão impor seus desejos pela força. E foram recebidas pelo parlamento cinco propostas de lei, que estão tramitando, com a celeridade que o caso necessita, cumprindo todas as normas. Isso indica que para a próxima semana provavelmente já tenhamos uma lei consensuada.
Esta elasticidade oportunista que dão ao conflito, que pedem uma coisa, são atendidos, e já pedem outra é uma forma de alongá-lo intencionalmente. Estão buscando se articular com os militares para um novo golpe de Estado? Nasce a preocupação e é importante que fique este questionamento como um alerta.
Leonardo Wexell Severo é jornalista.