Correio da Cidadania

Peru Livre propõe imediata libertação dos presos, frente contra o fujimorismo e Constituinte

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O secretário-geral do Partido Peru Livre, Vladimir Cerrón, defendeu a composição de uma frente antifascista para impedir o retrocesso democrático no seu país, cuja repressão já causou mais de 25 mortos e centenas de feridos para manter o modelo econômico excludente. Em entrevista exclusiva, o líder peruano condenou o autogolpe do ex-presidente Pedro Castillo e denunciou que a sua vice e recém-empossada Dina Boluarte “é utilizada pelos poderes fáticos – transnacionais, mídia e sistema financeiro – como mera figura decorativa, para dar a impressão de um governo civil que respeita a sucessão constitucional, enquanto na realidade são os setores mais fascistas que decidem as coisas”.

Para Cerrón, é necessário “frear a repressão, defender a libertação dos presos” e trabalhar para a construção da frente. “Deve haver dois pontos de união: impedir que a direita fascista, representada pelo fujimorismo, ganhe as próximas eleições, e instalar uma Assembleia Constituinte para dirigir uma nova Constituição”, que permitirá a revisão dos atuais contratos-lei, os chamados contratos cadeados, que mantêm intocáveis as privatizações/desnacionalizações.

O Peru atravessa uma grave crise institucional na qual o presidente Castillo foi derrotado após tentar dar um autogolpe. Foi empossada sua vice, Dina Boluarte, com um enorme rechaço popular. Como líder do Peru Livre, partido pelo qual ambos foram eleitos, e expulsos, qual é a sua avaliação deste momento em que os mortos se multiplicam?

Havíamos previsto há muito tempo que se Castillo fosse derrotado ocorreria uma convulsão social, as pessoas exigiriam sua liberdade, embora não queiram o seu retorno ao governo. Castillo foi um presidente débil, sem força, e o Peru Livre lhe deu a fórmula para que isso não ocorresse. Consistia no fato de que a esquerda deveria cerrar fileiras e somar mais três ou quatro votos do centro. Dessa forma o seu impeachment era matematicamente impossível, já que nesta altura contava com a maior bancada parlamentar.

Longe de aceitar o conselho, Castillo dividiu a bancada para retirar a liderança do Peru Livre e tentou registrar dois partidos políticos sobre as bases do nosso. Até o final, aconselhado por assessores como o ex-primeiro-ministro Aníbal Torres, que era quem governava de fato, sua obsessão foi dizimar o Peru Livre.

Este ato deu uma grande vantagem ao fujimorismo, porque eles se tornaram a bancada majoritária no Congresso [Alberto Fujimori foi presidente de 1990 a 2000 e encontra-se preso, condenado a 25 anos de prisão por crimes de lesa-humanidade. Sua herança política é um movimento liderado por sua filha, Keiko].

Em tais circunstâncias, não restou outra saída ao partido exceto convidar Castillo para que se retirasse, afinal não poderíamos ter um militante desleal em nossa organização, pois seria uma vergonha.

Pela mesma razão, Dina Boluarte já havia sido expulsa, por ter declarado no Conselho de Ministros que o Peru Livre pertencia à esquerda radical, que seu programa não deveria ser levado em conta. Além disso, denunciou, caluniosamente, que o seu secretário-geral estava articulando o impeachment do presidente.

Devemos citar como antecedente que Castillo foi cercado, desde que foi às urnas, por muitos oportunistas como seus sobrinhos, membros de um sindicato que ele havia fundado, compatriotas de Chota, sua terra natal, personalidades ilustres da direita e do resto do que chamamos “esquerda caviar”. Agora, para que esses pudessem delinquir, necessitavam retirar o partido do entorno presidencial. E assim foi feito.

Sem partido, sem bancada, sem programa, como enfrentar o inimigo majoritário no Parlamento? Uma situação difícil. Apesar de suas atitudes contra o Peru Livre, foi decidido apoiá-lo até o último momento, porque sabíamos que se Castillo caísse, a repressão contra o partido se multiplicaria por dez.

Assediado por denúncias, delações e com o seu afastamento em marcha, Castillo tentou um golpe improvisado, sem maior planificação, o que o conduziu a uma queda súbita, em que as forças armadas lhes deram as costas e ele foi levado preso por sua própria escolta.

Diante disso, o parlamento dá um contragolpe e acelera ainda mais rápido o seu impeachment, que já havia planejado há muito tempo. A diferença é que nesta ocasião muitos parlamentares, que antes iriam apoiá-lo, mudaram de opinião, após sua fracassada tentativa de fechar o Congresso, e decidiram votar contra ele. Assim, a direita consumava o que Castillo havia tentado: um golpe de Estado.

Ao assumir Dina Boluarte, os poderes fáticos a utilizaram como mera figura decorativa, para dar a impressão de um governo civil que respeita a sucessão constitucional, enquanto na realidade quem decide as coisas são os setores mais fascistas.

Ocorre uma insurreição popular espontânea de solidariedade a Castillo no sul do Peru, que contagia o país. Até agora temos um saldo de 25 mortos, que são a expressão da ditadura em curso. Porque enquanto Boluarte mostrar sua cara, os repressores atuarão com maior impunidade.

Desde o começo, o partido sustentou que a questão chave para o crescimento do país, com geração de emprego e renda, era romper com a herança fujimorista, ditada pelo Consenso de Washington. Quais foram os maiores obstáculos para a aplicação do programa de desenvolvimento?

O maior obstáculo foi o próprio presidente, que não tinha o mínimo interesse em cumprir com as promessas de campanha, não estava convencido do programa do partido que o levou ao governo. Suas promessas foram substituídas por demagogia, como baixar o salário ou não usar o avião presidencial.

Durante os 17 meses que esteve no governo, Castillo aplicou uma política neoliberal, preferindo negociar votos para sobreviver antes do que buscar o respaldo popular com políticas abertamente progressistas, como por exemplo a nacionalização de alguma mina – ouro, prata ou bronze. Ou alguma outra medida social ou trabalhista que lhe houvesse dado um enorme apoio popular e houvesse sido sua principal defesa.

O gabinete ministerial era formado por direitistas, social-democratas caviares, fujimoristas e, ultimamente, apristas (do APRA, partido de direita), tendências políticas históricas tradicionalmente inimigas da esquerda. A isso se soma também o forte assédio realizado a partir dos órgãos da Justiça, que aplicaram um lawfare (instrumentalização judicial) contra ele, sua família e seus mais próximos.

Não deveria ter sido uma prioridade a revisão dos contratos-lei que permitiram a continuação da privatização/desnacionalização de setores estratégicos e a convocação de uma Assembleia Constituinte?

A revisão dos contratos-lei [os chamados contratos cadeados, que por norma constitucional só podem ser modificados no exterior, via de regra no país em que a transnacional está sediada] foi uma promessa de campanha amplamente divulgada e um fator para a vitória eleitoral, mas Castillo não quis revisá-los. Nem mesmo os contratos que não tinham essa natureza e nunca se chocaram abertamente com o poder foram alterados. Ele deu muita vantagem aos seus inimigos, pensando que a convivência ou a conciliação era melhor, mas o inimigo não pensava assim, até conseguir derrubá-lo.

No governo de Castillo, os banqueiros seguiram roubando o povo, os empresários continuaram explorando os trabalhadores, as empresas seguiram poluindo impunemente, como a Repsol, e as concessões lesivas ao Estado se mantiveram lucrando e renovando os seus contratos. A Petroperu estava em franco processo de privatização e nem uma única empresa estatal foi resgatada.

Por isso o paradoxo é: por que Castillo precisou ser afastado, já que não se chocava com o sistema? Pela overdose de racismo, mas principalmente porque a intenção da direita é levar Keiko Fujimori ao poder a curto ou médio prazo, antes de que ela seja condenada a 30 anos de prisão.

Há uma confrontação entre os congressistas de Dina Boluarte, que defendem eleições gerais em 2024 e os manifestantes que tomaram as ruas para que sejam antecipadas para 2023. O que é preciso fazer para que as forças progressistas vençam com uma candidatura comprometida com a democracia e a soberania?

Boluarte não tem bancada oficialista, os parlamentares que ocupam este espaço são os de direita que estão a seu serviço, porque ambos foram os que planejaram o golpe contra Castillo.

A direita quer levar as eleições para 2024, porque precisa de tempo para aprovar reformas como o retorno à bicameralidade, a reeleição imediata e criar impedimentos para que seus adversários políticos não possam concorrer.

O Peru Livre propõe novas eleições, mas de mãos dadas com um referendo para instalar uma Assembleia Constituinte, porque novas eleições por si só não garantem nenhuma mudança estrutural no país.

Os manifestantes pedem o fechamento do Congresso e novas eleições, mas não vislumbram eleger outro, para depois dizer que também não serve. Não tem sentido.
Na verdade, nenhum Congresso servirá aos interesses do povo enquanto a Constituição não for alterada. Assim como o povo, os parlamentares também continuarão de mãos atadas, e até mesmo o presidente da República.

O povo não pode ser usado para mudar apenas os atores políticos que vão seguir com a mesma cartilha, precisamos de mudanças profundas e isso implica confronto e superação desse sistema e de seus poderes.

O que nos cabe enquanto esquerda é formar uma frente, porém conscientes de que ela tem de ser liderada por alguém, que nem todos podem ser os dirigentes máximos, muito menos candidatos. Uma vez coletiva a sua direção, deve haver diálogos abertos com o governo para frear a repressão, defender a libertação dos presos, entre eles Castillo, e posteriormente analisar a situação eleitoral unitária.

Construir uma grande frente vai requerer uma plataforma que unifique os diferentes setores sociais contra o inimigo comum. Quais devem ser os pontos de unidade para que este projeto avance?

Uma aliança implica a unidade por interesses comuns por um determinado tempo, cujo objetivo será a derrota do inimigo, neste caso o fujimorismo. Como em qualquer aliança. devemos saber que, após a derrota do grande inimigo, nossas diferenças serão reveladas, ou que isso pode levar à divisão da frente, é natural.

Deve haver dois pontos de união: impedir que a direita fascista, representada pelo fujimorismo, ganhe as próximas eleições; e instalar uma Assembleia Constituinte para dirigir uma nova Constituição. Aqueles que concordam com essas abordagens têm as portas abertas.

Leonardo Wexell Severo é jornalista.

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