Argentina: fascismo em ascensão e direitos em risco
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- Felipe Bianchi e Vanessa Martina-Silva, de Buenos Aires
- 24/10/2023
Em entrevista aos jornalistas Felipe Bianchi e Vanessa Martina-Silva, concedida na quinta-feira (19), em seu gabinete no Palácio da Legislatura, em Buenos Aires, Victoria Montenegro, legisladora da Cidade Autônoma de Buenos Aires (CABA), compartilhou suas impressões sobre as eleições neste domingo e os desafios colocados pelo pleito, que terá seu segundo turno em 19 de novembro.
Legisladora da cidade de Buenos Aires, Victoria Montenegro levou 25 anos para conhecer suas origens. Ela é a 95ª neta roubada pela ditadura argentina e foi recuperada graças ao trabalho incansável das Avós da Praça de Maio. Assim, foi na política que encontrou seu passado e pôde reconstruir sua identidade.
Diante de um cenário em que se debate a possível vitória de um candidato com características fascistas, de extrema-direita e antinacionalista, que é o caso de Javier Milei, Montenegro destaca a disputa que se trava na sociedade argentina em torno do senso comum, de mentes e corações, diante da possibilidade de perda de muito dos direitos conquistados ao longo dos anos. Para ela, o paradigma Milei é baseado em um “discurso insano”, construído a partir da negação da história com objetivos econômicos.
Foto: Felipe Bianchi | ComunicaSul
Durante a entrevista concedida à Agência ComunicaSul e que dividimos em duas partes, sendo esta a primeira delas, Montenegro denuncia a existência de um novo Plano Condor [campanha orquestrada pelos Estados Unidos e pelas ditaduras do Cone Sul para eliminar líderes insurgentes e opositores durante a década de 1970], apontando que, atualmente, esse processo se dá via lawfare — expediente aplicado contra Lula e Cristina Kirchner, por exemplo, consistindo no conluio entre mídia e a Justiça para corroer reputações e fabricar condenações criminais.
Nesse sentido, diz, “primeiro é construído um roteiro, que foi adaptado para os meios de comunicação e hoje é amplificado pelas redes sociais e depois a Justiça o utiliza para construir um processo”, no caso, contra os políticos do campo progressista, como foi o caso com Rafael Correa, ex-presidente do Equador, Cristina e Lula.
Por meio desse mecanismo, segue a deputada, “não importa se é ou não verdade, ou se o processo vai avançar, porque o dano já está feito e no senso comum da sociedade isso faz com que se acredite menos na política e cada vez menos em um projeto”.
“Ao mesmo tempo, vão sendo instalados discursos insanos e violentos, com objetivo de instalar modelos econômicos de saque dos recursos naturais dos nossos países, mas também subjugar o povo, a sociedade e principalmente os mais jovens, que não conseguem dimensionar a importância de todo esse processo histórico, de toda essa construção”.
Além disso, há uma intenção evidente de acabar com “nossa esperança com relação a um futuro diferente, que esteja de acordo com nossa própria capacidade e com nossos próprios recursos”.
Plano Condor 2.0
Esse Plano Condor 2.0 é aplicado de forma diferente em diversos países da região e é o que permite a ascensão de políticos como Javier Milei, na Argentina; Jair Bolsonaro, no Brasil; e Nayib Bukele, em El Salvador. A principal finalidade, segue Montenegro, é a mesma em todos os lugares: “instalar esse modelo neoliberal, destruir o tecido social e aniquilar qualquer foco de resistência”.
Ela explica que quando os operadores do Plano Condor saíram de nossos países, com o fim das ditaduras militares, o fizeram com o objetivo de voltar o mais breve possível.
No caso argentino, esse processo se dá através do voto, com a eleição de Mauricio Macri, em 2015, e tem Cristina Kirchner como alvo principal a ser atacado. No Brasil, é promovido o golpe de Estado contra Dilma Rousseff, além da perseguição e da construção de Lula como um inimigo do país, o que finalmente culmina em sua prisão.
O cenário boliviano é o único diferente, aponta a legisladora. Isso porque o país foi o único em nossa região que sofreu um golpe de Estado armado, contra o então presidente Evo Morales, em 2019. Isso acontece porque a Bolívia havia promovido uma reforma judicial. Para todos os demais, já não são necessárias as polícias ou dos militares.
Risco Milei
Questionada sobre a possibilidade de a Argentina passar de referência na responsabilização por crimes cometidos na ditadura a um país que elege um candidato que não é igual, mas está na mesma prateleira de Jair Bolsonaro, Montenegro é pedagógica: “o poder econômico coopta, também, as novas formas de comunicação, invadindo as redes e encontrando uma geração que já nasceu com direitos e democracia, portanto, julga esses direitos como naturais, sem dimensão de seu custo. Se são naturais, é como se não houvesse risco de perdê-los”.
E acrescenta: “nisso volta-se a promover um discurso que parecia impossível de retornar, negando a história. O que está em disputa, para além dos governos, é o sentido comum de um Bolsonaro ou de um Milei, pois este tipo de construção atravessa o limite do que é real e palpável”.
Por trás de tudo, arremata, está a ruptura do tecido social, porque é como “se você pudesse tomar um café com uma pessoa que, nas redes sociais, te insulta, banaliza o holocausto, defende a ditadura... A pessoa é uma só, não há uma ruptura entre o que é e isso está em disputa hoje”.
“Isso funciona, nitidamente, em favor de um interesse político, econômico e coloca em xeque a democracia”. Esse ponto, destaca Montenegro, é uma diferença com os processos vivenciados anteriormente, quando os objetivos eram econômicos, com os “saques que a direita sempre faz quando governa”. Para que isso aconteça, há uma “banalização do mal em nossas sociedades e isso é muito perigoso”.
Esse quadro interfere no fator eleitoral, aponta. Ela cita como exemplo o caso do Brasil que, quando elegeu Bolsonaro “o fez contra sua própria sobrevivência”. Isso se vê em todo o mundo. “Na Alemanha, mesmo com a existência de leis contra isso, há o crescimento de grupos neonazistas”.
Dessa forma, “há uma disputa novamente pelo valor da vida e isso nos obriga a repensar nossa história e como construímos pontes com as novas gerações, porque são muitos anos de luta, de caminhos... E é preciso trazer fazer isso para uma geração que vive do imediatismo, onde tudo tem que ser satisfatório e que, mesmo que se esteja sofrendo tremendamente, as pessoas devem parecer felizes para poder pertencer a esse mundo de fantasia”.
Com relação ao cenário eleitoral na Argentina, a deputada é taxativa: “estamos em um cenário, sobretudo com as gerações mais jovens, que é muito complexo, muito complexo porque temos e encontrar uma maneira de ajudá-las a proteger o que nós construímos em termos de direitos e é isso que está em disputa”.
Felipe Bianchi e Vanessa Martina-Silva são jornalistas do Coletivo ComunicaSul.
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