Racismo à argentina: os desafios do movimento negro por inclusão e visibilidade no país
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- Vanessa Martina-Silva, de Buenos Aires
- 16/11/2023
Não existem negros argentinos. Os escravizados trazidos para cá ou morreram em combate na Guerra do Paraguai, ou durante a epidemia de febre-amarela, na década de 1870. Os que sobreviveram, fugiram para o Uruguai. Essas afirmações resumem o senso comum presente na sociedade argentina sobre a existência de pessoas negras no país.
Contraditoriamente, o país conhecido como “a Paris da América” e por suas fortes características europeias, na gastronomia, na arquitetura e no fenótipo da população, teve como seu primeiro presidente um homem negro, Bernardino Rivadavia, e deve ao continente-mãe as criações mais emblemáticas e características da nação: o tango, o assado e o doce de leite.
Além disso, a Mãe da Pátria argentina é negra. María Remedio del Valle, durante a Guerra da Independência da Argentina, foi designada capitã do Exército pelo general Manuel Belgrano por sua bravura ímpar nos campos de batalha. Morreu em 8 de novembro de 1847 com o título de sargento-maior do Exército argentino.
Manifestantes sustentam cartaz com a imagem de María Remédio del Valle, Mãe da Pátria argentina / Foto: Vanessa Martina-Silva
Como reconhecimento do papel desempenhado por Remédio na independência argentina, desde 2013, na data de sua morte é celebrado o Dia Nacional das e dos Afro-Argentino(as) e da cultura afro.
Neste ano, no décimo aniversário da criação dessa data, a Argentina presenciou a realização da primeira mobilização em defesa e direitos para a população negra do país. O ato, histórico, foi realizado em 8 de novembro, na cidade de Buenos Aires, e contou com a presença de comunidades negras, representantes de povos originários, de sindicatos e aliados da luta antirracista.
Marcha foi realizada no último dia 8 na capital Buenos Aires / Foto: Vanessa Martina-Silva
Para Cleonice Silva, brasileira que vive em Buenos Aires há 33 anos, esta marcha foi “uma ponte para lutar por nossos direitos. Porque somos os últimos da fila. Passa todo mundo e nós não temos nenhum direito”.
A escritora e ativista venezuelana Lilia Ferrer, que há sete anos reside na Argentina, observa que “há um elemento comum: estamos começando a nos assumir, a nos entender como movimento. Isso significa que temos de ter processos unitários, que estejam fundamentados na identidade, no autorreconhecimento como afrodescendentes, negras e negros deste continente”.
Em um contexto em que o apagamento histórico da presença negra é notável, essa mobilização “além de ser um evento de visibilidade e de posicionamento político, também serve para pautar o tema nos meios de comunicação e na sociedade”, como aponta a advogada e professora Patricia Gómez.
“Estamos na rua porque é na rua onde nos tornamos visíveis, é na rua que levantamos nossa bandeira, é na rua onde militamos pelo reconhecimento social, político e também econômico”, acrescentou Jonathan A da Cruz, vereador de Enseada, município da província de Buenos Aires, a 50 quilômetros da capital.
Carlos Álvarez Nazareno, da Agrupação Xangô e um dos coordenadores da marcha, destaca também que o movimento argentino aprende muito “com o processo de ações afirmativas realizadas pelo Estado brasileiro durante os governos de Lula e Dilma. A Argentina também é afro e tem que ter ações afirmativas e políticas públicas para nossas comunidades”.
Um dos principais problemas da comunidade negra argentina é a inclusão no mercado de trabalho formal. “A Argentina vem transitando para a igualdade de direitos da população afrodescendente, mas falta muito. Sabemos que temos certas dificuldades para a inclusão trabalhista”, resume Nazareno.
Nesse sentido, após a marcha, foi apresentado um projeto de lei no Congresso para a criação de cotas em concursos públicos. O projeto foi apresentado no Congresso pela deputada Mónica Macha. A medida prevê que 2% das vagas nos três poderes do Estado sejam destinadas a afro argentinos, afrodescendentes e africanos residentes na Argentina.
Sofía Barra é afro-boliviana e vive há 32 anos na Argentina. Ela destaca a importância dessa proposta: “estamos aqui pela luta, reivindicando a luta dos negros. É também a luta para ter um posto de trabalho. Temos muitos profissionais negros muito preparados e queremos que nos deem oportunidades também”.
Eleições
No domingo 19 de novembro, será realizado o segundo turno das eleições presidenciais. Essa, porém, não é vista como uma eleição a mais. Há, na comunidade negra argentina organizada, um entendimento de que o que está em jogo é “o destino da democracia argentina”, como aponta Patrícia Gómez.
Manifestante expressa apoio ao candidato peronista Sergio Massa / Foto: Vanessa Martina-Silva
Pelos próximos dias, a Argentina debate qual modelo de país quer para o futuro. “Um deles, impulsionado pela extrema-direita liberal, quer provocar a destruição do Estado argentino. O outro é um projeto inclusivo, de participação, e é representado pela figura de Sergio Massa”, define Nazareno.
Gómez acrescenta: “além de visibilizar a existência e a resistência das comunidades negras da Argentina, [a realização dessa marcha] é um posicionamento político contra o fascismo, contra o racismo, contra a misoginia e o machismo e a favor da democracia”.
“Porque também estamos nos posicionando a favor do candidato que mais representa a segurança de que nossos direitos possam seguir sendo garantidos”, acrescentou a advogada, sinalizando apoio a Massa.
Como no Brasil sob o governo de Jair Bolsonaro, as pessoas racializadas, as mulheres e as dissidências sexuais são os grupos que mais sofrem com a ascensão da extrema-direita. É o que conta a dançarina e percussionista Luciana Lueji Lidwe, mulher trans e afrodescendente. “Estamos atravessando um contexto social difícil. Uma vez mais estamos sendo invisibilizados como corpos negros, estamos sendo racializados e totalmente vulnerabilizados. Isso tanto na questão econômica, trabalhista, mas muito mais no que se refere aos corpos dissidentes. E é pior quando também se é afrodescendente, né?”.
Políticas públicas e visibilidade
Jonathan é um dos poucos representantes políticos afro-argentinos. Quando questionado sobre qual o principal desafio dessa comunidade no país, responde: “reconstruir uma sociedade em que sejamos visíveis, que seja contra o racismo estrutural. Por isso, queremos convidar aliados para construir uma sociedade mais livre, justa e soberana para todos”.
Visibilidade é também o que Gómez busca ao defender que seja criada, no país, uma legislação nos moldes da Lei Micaela, que tornou obrigatória a capacitação de servidores públicos em temas de gênero. “Queremos ter uma lei que seja exatamente igual, mas que trate da capacitação em questões de racismo e da perspectiva étnico-racial”, explicou.
Gómez, que é uma das fundadoras da Organização Afrodescendentes para a Formação e Assessoramento Jurídico (Oafro) apontou ainda que outro desafio importante no país é “levar os casos de racismo que acontecem em nosso país à Justiça. Uma Justiça que não é apenas patriarcal, mas também profundamente racista. Suas estruturas estão atravessadas pelo racismo institucional, por isso é muito difícil levar casos de racismo a essas instâncias”.
Racismo à la Argentina
“É muito duro. Quando cheguei aqui na Argentina, eu sofri muito. Sofri dupla discriminação: por ser boliviana e ser negra. Mas isso me fez mais forte”, conta Sofía Barra.
“No começo, eu sempre caminhava com a cabeça baixa, mas depois levantei a cabeça dizendo: ‘sou negra, mas somos todos iguais. Não importa de qual país eu sou. Na verdade, o país não é feito por quem nasce nele, é feito pelos imigrantes’”, acrescenta Barra quando questionada sobre como é o racismo na Argentina.
Cleonice da Silva integra a comissão organizadora da marcha. Ela chegou à Argentina em 1989 e, desde então, acompanha a discussão racial no país. “Avançou muitíssimo, mas ainda temos muita estrada para caminhar”, aponta.
Para ela, o racismo na Argentina é peculiar. “São muito sutis. Mas dói. Todo tipo de racismo dói, dói muito. Mas eles [cometem esses atos] e pedem desculpa. Dizem ‘negro de merda’, mas dizem: ‘não, não é com você não’”.
Recentemente, a discussão sobre racismo na sociedade argentina ganhou destaque no Brasil com os diversos – embora pontuais – casos de ofensas racistas proferidas por torcedores de clubes argentinos contra brasileiros.
O tema ainda é um tabu. É verdade que a expressão “negro de mierda”, à qual Cleonice se referiu, não se dirige apenas a sujeitos racializados, mas é inegável que ela traz consigo toda a carga histórica da depreciação, da subalternização e da inferiorização às quais os afrodescendentes têm sido submetidos há séculos no país.
Da mesma forma, o termo quilombo é usado na Argentina para se referir a “bagunça”, “desorganização”, “confusão”. Porém, quilombo é justamente o contrário: as sociedades quilombolas no Brasil, formadas por escravizados que fugiram do cativeiro, são altamente organizadas, independentes e autossuficientes.
“Quilombo é um espaço de liberdade cultural”, acrescenta Nazareno ao destacar a importância desse movimento de resistência. “Por isso, há também uma forte luta pelo simbólico, pela transformação da linguagem e pela transformação no âmbito educativo”.
A educação é um elemento central, como aponta o ativista: “nós queremos mudar o currículo educativo, para que não nos mostrem apenas como sujeitos da colônia, mas que se fale da verdadeira história africana. Nós não descendemos de escravizados! A nossa cosmovisão e a nossa história começaram muito antes do processo colonizador”.
Além disso, Nazareno aponta a necessidade de cursos de formação para professores e professoras, para que eles possam ter ferramentas para agir diante de situações de racismo nas escolas. “Nossas crianças e adolescentes sofrem muito com a discriminação racial, com o bullying nas escolas, mas também nas universidades, em todos os níveis. Por isso, é preciso uma reforma educativa que nos contemple e que mostre e conte a nossa verdadeira história, não como sujeitos do passado, mas como sujeitos do presente ativo”.
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