Correio da Cidadania

Distopia ‘anarcocapitalista’ já é realidade em Honduras

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Protesto contra a instalação das Zedes em Honduras.
Créditos: Reprodução

Nem a ficção científica foi capaz de produzir - ao menos em uma superprodução de repercussão global recente – um mundo em que corporações multinacionais e transnacionais avançam sobre territórios e impõem sua própria lei, moeda (o Bitcoin no caso), sistema de Justiça, forças de segurança, ordem fiscal e tributária, regulamentações ambientais e trabalhistas, entre outros aspectos que geralmente são regulados pelos Estados nacionais, e à revelia dos mesmos. Mas o que a imaginação de um roteirista de Hollywood não cria, um golpe de Estado na América Central tem condições de dar o pontapé inicial.

É essa a realidade, digna de uma distopia, vivida por Honduras, que em 2009 viu seus militares destituírem o presidente Manuel Zelaya, de esquerda e eleito democraticamente, para colocar o empresário Roberto Micheletti em seu lugar.

Logo depois do golpe, o novo presidente se apressou em aprovar a lei que cria as chamadas Regiões de Desenvolvimento Especial, que são basicamente territórios geridos por grandes corporações. A partir daí uma verdadeira batalha se seguiu nas instituições do país.

Em 2012 a Suprema Corte revogou a lei, que tinha apoio do Executivo e do Legislativo. Como forma de reação, o Parlamento então destituiu alguns juízes mais críticos, substituindo-os por magistrados mais afeitos à ideia. Nesse contexto, em 2013, foi aprovada a chamada Lei das Zonas de Emprego e Desenvolvimento Econômico (Zedes).

As principais Zedes em atividade se chamam Próspera, Orquídea e Ciudad Morazán. De acordo com artigo publicado por Jayati Ghosh, no Bangkok Post, elas “operam como cidades-Estados independentes, inspiradas nas fantasias libertárias de investidores bilionários como Peter Thiel e Marc Andreessen – que há muito sonham com paraísos fiscais baseados em criptomoedas, que desafiam as normas democráticas básicas”.

É claro que houve reação da sociedade. Muitos protestos foram registrados contras as Zedes ao longo de Honduras, realizados por movimentos comunitários e sociais. A principal crítica é de que as áreas além de não terem qualquer compromisso com garantias e direitos básicos, também não geraram os milhares de empregos prometidos. Pelo contrário, têm causado verdadeiras expulsões derivadas da gentrificação desses territórios e fomentando migrações internas e externas a Honduras.

Quando em 2022 começou o governo de esquerda liderado pela presidente Xiomara Castro e eleito em 2021, o Estado de Honduras revogou as Zedes. A medida foi uma promessa de campanha e tinha amplo apoio popular. Mas algumas das corporações conseguiram se segurar.

Uma delas foi a Próspera, que alegou que seu acordo com o governo anterior lhe garantiria 50 anos de soberania sobre o território delimitado pela Zede. Entre as alegações, afirmou também que estaria coberto pelo direito internacional de investimentos. Foi a senha para que outras empresas gestoras de Zedes iniciassem disputas internacionais com o Estado de Honduras. Ao todo, são sete disputas que estão em litígio nesses tribunais, todos localizados nos EUA, e a depender da resolução podem obrigar o país a aceitar a entrega da sua soberania sobre os territórios.

A Honduras Próspera, corporação dos EUA localizada no Estado de Delaware (famoso paraíso fiscal), processou Honduras em 10,7 bilhões de dólares pelas supostas perdas decorrente do fim de sua Zede. O montante é equivalente a dois terços do orçamento aprovado em 2023 no país.

Ghosh dá pistas sem seu artigo de como opera a correlação de forças nesses processos de arbitragem de litígio investidor-Estado (ISDS, na sigla em inglês).
Na prática, tais tribunais são, nas palavras do presidente Joe Biden, dos EUA, “tribunais especiais que não estão disponíveis para outras organizações”, conforme dito em campanha. E os EUA jogam um papel importante por terem condições de influenciar os tribunais.

Durante seu mandato, de 2022 pra cá, Biden excluiu uma série de cláusulas ISDS de acordos internacionais futuros, mas que infelizmente não se aplicam ao caso de Honduras. E mesmo pressionado por congressistas do seu próprio partido para apoiar os hondurenhos, o Governo Biden tem dado de ombros.

Espera-se uma atitude do EUA em favor do Estado de Honduras na resolução desses litígios, sobretudo dadas as pretensões daquele país em se colocar como um líder global defensor da liberdade e dos direitos humanos. Mas se as coisas continuarem como estão, teremos mais um laboratório na América Latina. Não mais do neoliberalismo, como o Chile de Pinochet décadas atrás, mas da distopia “anarcocapitalista”, ou “CEOcracia”, em plena Honduras pós-democrática de 2023.

Raphael Sanz é jornalista da Revista Fórum, onde esta matéria foi originalmente publicada, e editor do Correio da Cidadania.

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