Correio da Cidadania

EZLN: Há 30 anos o levante indígena cancelava o “fim da história”

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EZLN - Exército Zapatista de Liberação Nacional.Créditos: Juan Pópoca

Eram meados dos 90, o muro de Berlim tinha acabado de cair e a dissolução da União Soviética deixava, no Ocidente e em seus satélites do Sul global, as esquerdas políticas um tanto perdidas enquanto os liberais e a direita proclamavam aos quatro ventos, embalados por uma interpretação literal de Francis Fukuyama, que havíamos chegado ao “fim da história” - tal qual Marx a concebeu, como a da luta de classes -, e que o capitalismo era vitorioso. Era o Consenso de Washington em vigor. E os tempos pareciam de paz e prosperidade para os setores da humanidade que se viam contemplados por ele.

A calmaria e o otimismo do capital internacional eram tão grandes que ninguém prestou atenção ao principal personagem da tal ‘história’: os povos. E na virada de 1993 para 1994, naquele primeiro de janeiro que marcava a entrada do México para o Área de Livre Comércio da América do Norte (que mais tarde tentaria expandir-se para todas as Américas como Alca), o Exército Zapatista de Liberação Nacional pegou muita gente de surpresa quando tomou de assalto as sedes dos poderes municipais de nove cidades da Selva Lacandona, no estado de Chiapas - sul do México.

O grupo, criado da fusão entre guerrilheiros maoístas outrora derrotados e os povos indígenas locais, de origem maia, passaria à pauta dos movimentos sociais de todo o planeta, sobretudo pela sua forma de ver o mundo inovadora em termos de ação política – e influenciado pelas cosmovisões dos povos que o compõem.


Subcomandante Marcos. Créditos: Oriana Eliçabe/Flickr

Mais do que a criação e a amplificação de um imaginário político e revolucionário novo para muita gente, os zapatistas, ao contrário da esquerda marxista-leninista de outrora, não tinha como objetivo tomar o poder, mas libertar territórios e ajudar na sua organização. Na prática, não é ele quem manda, mas o braço civil e democrático das comunidades libertadas. É o “mandar obedecendo”, tantas vezes repetido nas comunidades do EZLN desde então.

Raul Zibechi, jornalista e pensador uruguaio que há décadas estuda movimentos populares e indígenas de toda a América Latina, vê no zapatismo e nos territórios libertados da Selva Lacandona um verdadeiro exemplo de luta. À Revista Fórum, ele avalia que o movimento traz uma perspectiva diferente do pragmatismo europeu e seus cálculos políticos, permitindo que as comunidades tenham uma participação política mais direta tanto na hora do levante, como na organização dos territórios posteriores a ele.

“O zapatismo demonstra que é possível se levantar ainda que as condições não sejam favoráveis. Não há um cálculo do tipo ‘correlação de forças’, mas as decisões são tomadas de acordo com os parâmetros de dignidade dos povos. É um exemplo para todos os povos oprimidos e também uma referência de luta para todo o planeta no sentido de que travam uma luta dupla: a de resistir ao capitalismo e ao Estado mexicano de modo simultâneo. E esse segundo aspecto é uma completa revolução dentro do campo da revolução. O que mais se destaco é a autonomia. Diferente do europeu, a autonomia territorial zapatista abrange saúde, educação, justiça e poder. A construção da autonomia nunca está terminada, estamos sempre a trabalhar para melhorá-la e defendê-la”, declarou para a reportagem.

A quarta guerra mundial

Na virada dos anos 90 para a década de 2000, chamou a atenção a tomada de um quartel do exército mexicano em Chiapas, sem que que uma bala sequer fosse disparada. A multidão indígena entrando em silêncio na instalação, para o desespero dos militares que estavam em serviço, tomou as telas do mundo inteiro em 2002, no documentário “A Quarta Guerra Mundial", de Richard Rowley.

O conceito que dá o título do filme, inclusive, vem do próprio zapatismo. Se refere ao período pós-guerra fria, que se inicia nos anos 90 e permanece em vigência. É como chamam o atual estágio do capitalismo de “acumulação por despossessão” em que guerras entre Estados não são mais a regra, e dão lugar às guerras de Estados e corporações contra os povos e o meio ambiente.

A Quarta Guerra Mundial seria esse momento em que as elites locais, corporações e Estados se apropriariam dos bens comuns, ou tornando uma determinada sociedade ou comunidade dependente da sua atuação, ou expulsando-a do território cobiçado. Os zapatistas, dentro desse contexto, seriam apenas mais um povo que luta pela sua afirmação e sobrevivência. Em um sentido mais amplo, se trata de uma análise bastante original da forma contemporânea da guerra, dificilmente travada diretamente entre potências desde o advento das armas nucleares.

Zibechi escreveu no prólogo de “Los arroyos cuando bajan” sobre a Quarta Guerra Mundial e outros aspectos que chamam sua atenção sobre o zapatismo. “Os zapatistas assinalam que sua metateoria é sua prática, ou seja, a renovação do pensamento. Seria muito difícil repassar todas as contribuições teóricas do zapatismo. Limito-me a algumas que acredito ser de grande utilidade para os movimentos sociais. Considerar o modelo atual que alguns marxistas denominam como ‘acumulação por despossessão’ como Quarta Guerra Mundial parece-me um acerto importante. Supõe um olhar a partir dos povos, a partir daqueles que se organizam e resistem – em suma, um olhar a partir de baixo. Para os setores populares, é justamente essa a sensação, a de que estão vivendo uma guerra que busca deslocá-los de suas comunidades rurais ou urbanas para que o capital possa se apropriar dos bens comuns – terra, água, matérias-primas- a fim de transformá-los em mercadoria”, escreve Zibechi.

Abaixo e à esquerda: as Juntas de Bom Governo

O EZLN não se coloca como uma organização “de esquerda”, mas sim, “de baixo e à esquerda”. É um detalhe terminológico que parece fútil, mas é essencial para compreender o zapatismo e a forma como foi fagulha para outras lutas em todo o mundo.

Um outro aspecto importante para levar em consideração sobre o zapatismo é seu ineditismo em relação a algumas questões. Como Zibechi pontua, a política do EZLN é de paz e autonomia, indo de encontro ao ideário revolucionário ocidental que prevê uma guerra pela tomada do poder.

Logo do levante armado, o EZLN, reconhecendo seu caráter militarizado e vertical, não tomou o controle das comunidades, como em quaisquer outras revoluções ocorreria. Muitos setores da esquerda mundial os acusam justamente de “não tomar o poder”. Em contrapartida, facilitaram a criação coletiva das “Juntas de Bom Governo”, onde “o povo manda e o governo (e o EZLN) obedece”. Mais do que uma tentativa de organizar politicamente uma região machucada historicamente pelo poder central mexicano, as Juntas de Bom Governo atuam nos âmbitos comunitário, municipal e regional, além de terem uma rotatividade entre os membros das comunidades que irão compor o órgão.

A Sexta Declaração da Selva Lacandona, de 2005, deixa isso claro: “A parte político-militar do EZLN não é democrática porque é militar. E vimos que não é bom isso de que esteja acima o âmbito militar e abaixo o democrático, mas o contrário: ou seja, que acima esteja o campo democrático, que manda, e abaixo o militar, que obedece”.

Ao contrário de outras revoluções em que as zonas libertadas seriam um meio para que outras localidades pudessem ter o mesmo destino, no zapatismo, as zonas libertadas são o próprio fim. Ou seja, a finalidade da luta é não apenas libertar uma comunidade, cidade, ou região, mas construir ali, desde já, a forma de vida pela qual se lutou. Mesmo a política do EZLN sendo de paz, isso não quer dizer que os indígenas vão abandonar suas armas, eventualmente podem usá-las para proteger os territórios. Mas o central não são as armas, o central é a própria autonomia comunitária e, nesse sentido, os zapatistas construíram uma série de experiências próprias, desde as escuelitas, na área de educação, até os encontros internacionais em que trocam experiência com povos em luta de todo o planeta.

Antecedentes: os zapatistas e o Brasil

Entrevistado para essa reportagem, o indigenista Nuno Nunes, doutor em Planejamento Territorial pela Universidade do Estado de Santa Catarina (Udesc), nos conta um pouco a respeito de levantes indígenas anteriores, no Brasil e no México. No caso brasileiro, a própria fundação do MST está vinculada à movimentação indígena e influenciou a criação do EZLN.

Em 1971, no interior do Paraná, os indígenas cansados do esbulho de suas terras que eram ocupadas por colonos colocados pelo governador Moisés Lupion, articularam-se e elegeram como cacique o jovem Ângelo Kretã, e ao discursar em sua posse afirmou o compromisso de recuperar o protagonismo indígena nos assuntos que lhes diziam respeito. Ampliando a articulação, os Kaingang conseguiram eleger Ângelo Kretã a vereador pelo MDB em 1976, se tornando o primeiro indígena brasileiro a assumir uma legislatura, defendendo a demarcação das terras indígenas.

Entre 1978 e 1979 Kretã liderou a retomada de posse das Terras Indígenas Mangueirinha, expandindo o movimento para outras áreas no interior do Paraná, Santa Catarina e Rio Grande do Sul, expulsando posseiros que lá estavam instalados e dando início a um movimento que se espalhou por vários países. No Brasil, em 1979, Kretã foi um dos principais articuladores na criação da União das Nações Indígenas (UNI) que foi protagonista na defesa dos Direitos Indígenas compondo a frente indígena brasileira com Marcos Terena, Raoni Kayapó, entre outros, que culminou com a eleição de Mário Juruna como Deputado Federal em 1983 e na participação indígena na Constituinte de 1988. Como legado do movimento de retomada da Terra Indígena Nonoai, no Rio Grande do Sul, os posseiros colocados pelo governo estadual se organizaram para reivindicar seus direitos e fundaram em 1984 o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST).

Para ele, o movimento indígena na década de 1970 e 1980 surgido no interior do Paraná no Brasil encorajou outros povos indígenas do mundo a confiarem nos seus modos de organização conforme suas tradições para alcançarem seus objetivos.

“No México as décadas de 1970 e 1980 não foram diferentes do que ocorreu no Brasil, onde a influência indígena nos movimentos mudou o cenário político. Cansados de enfrentar o governo federal no início de 1980, estudantes e professores ligados a organizações de caráter comunista maoísta, militando nas Forças de Libertação Nacional (FLN), decidiram buscar o México profundo e retomar o modo mexicano de fazer a revolução”, explica Nunes.

A ideia era retomar o que havia sido feito na década de 1910 com Emiliano Zapata e Pancho Villa. Assim surgiu no sul do México o Exército Zapatista de Libertação Nacional (EZLN) em 1983, com fundamentação no modo indígena de organização, onde o "povo manda e os comandantes obedecem".

“O lema 'mandar obedecendo’ foi um dos pilares na construção ideológica do EZLN que permaneceu 10 anos na clandestinidade e alçou contra o governo mexicano de Carlos Salinas em 1 de janeiro de 1994. Na ocasião, o EZLN reivindicou o artigo 39 da Constituição do México que coloca no povo a garantia da soberania nacional”, conclui o indigenista.

Também é importante destacar o papel da teologia da libertação, que a partir a diocese de San Cristóbal De Las Casas teve um trabalho importante de politização dos povos indígenas da região. Em 1960 o bispo Samuel Ruiz Garcia, da teologia da libertação, chegou à região e exerceu sua função até o ano 2000. Ele foi um entusiasta da organização dos povos Maias. A estratégia do Samuel Ruiz não foi teológica, mas política. Ele chegou a dizer: "aqui não se precisa evangelizar, por que o mesmo que prega o evangelho está nos valores comunitários".

As comunidades eclesiais de base nasceram e deram força ao movimento indígena, e essa força se manifesta ainda hoje no zapatismo. E conforme as fontes fizeram questão de frisar, todos os movimentos sociais mais importantes da América Latina tiveram a contribuição da educação popular com Paulo Freire, Augusto Boal e Mario Kaplun, quase sempre impulsionada pelas CEBs. Para Nunes, Zibechi e outras pessoas entrevistadas, a comunicação e a educação popular são essenciais para esses processos.

E apenas 10 anos depois do levante zapatista começariam com força os movimentos indígenas de retomada de territórios ancestrais e autonomia, com destaque para os Mapuche (Chile e Argentina), os territórios autônomos Awajun e Wampis (Colômbia e Equador), a poderosa CONAIE do Equador com o bispo indígena Leonidas Proaño, o CIMI no Brasil, o movimento indígena da Guatemala e uma série de outras experiências.

“O levante do EZLN ecoou por todo planeta não por ter sido um movimento anti-imperialista após o fim da guerra fria em 1991 com o fim da URSS; mas pelo fato de os indígenas do sul do México terem utilizado uma arma de guerra dos EUA para se autodefenderem contra os ataques do exército mexicano que virara capacho dos EUA: a internet. As palavras indígenas do EZLN ecoaram pelas palavras do porta-voz Subcomandante Marcos, sendo traduzidas para várias línguas, e com a identificação de que os Zapatistas eram todos os seres do mundo que sofrem pela opressão do capital, e chamando o mundo para organizarem-se aos seus modos e manifestarem-se em suas ruas”, avalia Nuno.

Segundo Nunes, os indígenas do Brasil sempre tiveram forte relação com o EZLN trocando informações e influências, diferenciando-se de que no Brasil não desejaram formar um Exército, mas preferiram as vias políticas e eleitorais para alcançar suas reivindicações.

Já para Angelo Tupinambá, comunicador social da Rádio Idade Mídia e militante indígena em Belém do Pará, o surgimento do EZLN foi de fundamental importância estratégica na organização das lutas populares dos povos da Amazônia, “principalmente na questão da autodeterminação das populações indígenas como instrumento de emancipação e a memória histórica das lutas ancestrais. O EZLN demonstrou que as organizações de base indígenas são fortes para desenvolver sua base ideológica pautada em sua cosmovisão do mundo e da vida”, afirma.

A convocatória ao Encontro Intercontinental contra o Neoliberalismo e pela Humanidade em Chiapas, a realização do II Encontro Pan-Americano pela Humanidade e contra o Neoliberalismo, em Belém do Pará (1999) e os movimentos por uma outra globalização, explica Angelo, “nos influenciaram bastante aqui na cidade de Belém, ao ponto que revimos todos os nossos métodos para regionalizar a luta em nossa maior referência indígena e popular, a Cabanagem. A Vanguarda Estudantil Revolucionária, tonou-se a JRC, Juventude Revolucionária Cabana. Pessoalmente, também foi o primeiro passo numa viagem de retorno à ancestralidade indígena, tendo como referência o dia 7 de janeiro, data da revolução popular e também do martírio do Cacique Guamyaba Tupinambá, no Levante de 1619”.

“Até hoje, em 2023, a luta do EZLN é uma referência para se pensar a autonomia e autodeterminação dos povos e comunidades tradicionais ribeirinhas em contexto da área de proteção ambiental metropolitana de Belém. A nossa luta de retomada de identidade e território está associada à parte de um esforço maior, com unidade de ação junto à comunidade na partilha dos princípios e laços históricos, culturais e de organização sociopolítica. Ou seja, ancestralidade e contemporaneidade existindo no tempo presente para reafirmar a luta indígena viva no espaço urbano de Belém”, finalizou.

Raphael Sanz é jornalista, editor do Correio da Cidadania e repórter da Revista Fórum, onde esta matéria foi originalmente publicada.

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