Como o acordo militar entre EUA e Equador foi feito?
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- Miguel Ruiz Acosta
- 06/06/2024
Com a assinatura do Status of Forces Agreement (SOFA) e de uma dúzia de acordos complementares, o Equador mais uma vez abre suas portas para a já bicentenária interferência dos Estados Unidos na Nossa América.
Não é segredo para ninguém que os Estados Unidos são a potência com maior presença militar no planeta, contando com cerca de 750 bases militares em cerca de 80 países ao redor do mundo, assim como 173 mil tropas implantadas em 159 nações nos últimos anos, como documentado exaustivamente pelo professor David Vine da American University em Washington.
O que não é tão conhecido é que o desdobramento militar geralmente é acompanhado por um tipo de acordos bilaterais conhecidos como "Acordos sobre o Estatuto das Forças" (SOFA, em inglês). O objetivo central desses dispositivos é "regular" os termos sob os quais as tropas norte-americanas, bem como os contratados e subcontratados do Departamento de Defesa (DOD), operam nos países onde têm alguma presença, com ou sem bases permanentes.
Após o breve parêntese soberanista representado pelo governo de Rafael Correa no Equador, a partir de 2018 o país equinocial retornou ao rebanho da geopolítica hemisférica estadunidense pelas mãos dos governos de Lenin Moreno, Guillermo Lasso e Daniel Noboa. As maiores aproximações com os EUA ocorreram sob a administração de Lasso, que em outubro passado assinou um SOFA nomeado Acordo entre o Governo da República do Equador e o Governo dos EUA, relativo ao Estatuto das Forças, o qual foi ratificado em fevereiro deste ano pelo presidente Noboa.
Em poucas palavras, tal acordo representa a renúncia equatoriana à soberania plena sobre dimensões muito delicadas como segurança e território nacional. Algumas pérolas como amostra: ao pessoal militar estadunidense no país serão concedidos privilégios, isenções e imunidades equivalentes às do pessoal das missões diplomáticas (Art. 2); as aeronaves, navios e veículos operados pelo DOD poderão entrar no território do Equador, sair e se deslocar livremente por ele (Art. 5); o DOD poderá contratar equipamentos, suprimentos, equipamentos e serviços sem restrições quanto à escolha do contratante; os contratos serão solicitados, concedidos e administrados de acordo com as leis e regulamentos dos EUA (Art. 6); o pessoal dos EUA terá liberdade de movimento e acesso a meios de transporte, armazenamento, treinamento e outras instalações (Art. 9); será permitido que o DOD opere seus próprios sistemas de telecomunicações, bem como o direito de usar todas as frequências do espectro de rádio necessárias para esse fim. O uso do espectro de rádio não terá custo para os EUA (Art. 10); ambos os governos renunciarão a qualquer reclamação entre si por danos, perdas ou destruição de bens da outra parte ou por lesões ou morte de membros do pessoal das Forças Armadas ou de seu pessoal civil.
As reclamações de terceiros por danos ou perdas causadas pelo pessoal dos EUA serão resolvidas pelo Governo dos EUA de acordo com as leis e regulamentos desse país (Art. 12). Difícil imaginar maiores níveis de entreguismo.
De acordo com revelações recentes da Equipe do DOD designada para o Equador, o caminho para a assinatura do SOFA teria sido muito mais rápido do que o normal, devendo ser visto como um "caso de estudo". A história que contam é a seguinte: durante 2023, o Equador se preparava para sediar um exercício militar multinacional, Resolute Sentinel, organizado pelo Comando Sul dos EUA (SOUTHCOM) e liderado pela 12ª Força Aérea-Sul (12ª AFSOUTH), no qual participariam 1.000 soldados norte-americanos de todas as ramificações e sua equipe militar correspondente (navios, aviões, etc.), que deveria ocorrer no verão de 2023. Os trâmites migratórios e aduaneiros para tal fim eram muito demorados.
Finalmente, o exercício militar não ocorreu no Equador, mas no Peru. De acordo com o documento da equipe do DOD no Equador: "Após essa decisão, e dada a crescente demanda por cooperação em segurança por parte dos Estados Unidos, a equipe norte-americana no país decidiu intensificar seus esforços para conseguir um Acordo sobre o Estatuto das Forças". No entanto, de uma leitura cuidadosa desse documento, pode-se deduzir que, na realidade, a questão da demora nos trâmites para o exercício militar serviu apenas como desculpa para pressionar o governo equatoriano a assinar um SOFA que já estava sendo institucionalizado anteriormente.
No mesmo documento, refere-se à visita de Laura J. Richardson do Comando Sul (foto, com Noboa) e uma comitiva de alto nível ao país em setembro de 2022 como aquela que "abriu caminho". A partir daí, "a equipe estadunidense no país decidiu intensificar seus esforços para conseguir um Acordo sobre o Estatuto das Forças". À frente disso estaria o Embaixador Michael J. Fitzpatrick, que já vinha se comportando como autêntico procônsul, por suas repetidas declarações interferentes sobre a política local: tanto a seção política (a CIA?) quanto o Escritório de Cooperação em Segurança (OSC) da Embaixada "trabalharam em estreita colaboração para organizar sessões de negociação entre uma equipe interinstitucional": o Departamento de Estado dos EUA e os ministérios equatorianos das Relações Exteriores e da Defesa. Algo que também é revelador é a confirmação de que houve funcionários do Ministério da Defesa do Equador que "se opuseram inicialmente à falta de reciprocidade do SOFA", mas que as objeções foram superadas com o "compromisso público do ministro da defesa [General Luis Lara Jaramillo?] que invalidasse as objeções de seu pessoal".
De acordo com a retórica do DOD, a assinatura (Lasso) e posterior ratificação (Noboa) do SOFA "acelera a cooperação através da Estratégia de Assistência à Segurança do Equador (ESSAR), um quadro de planejamento bilateral que descreve as prioridades de segurança compartilhadas pelos EUA e pelo Equador". Prioridades que, é desnecessário dizer, respondem fundamentalmente à visão norte-americana sobre a região; e isso se aplica tanto às declaradas abertamente (combate ao terrorismo e ao narcotráfico), quanto às implícitas (controle geopolítico e militar; supervisão do que consideram "seus" recursos naturais, etc.).
Com a assinatura do SOFA e de uma dúzia de acordos complementares, o Equador mais uma vez abre suas portas para a já bicentenária interferência dos Estados Unidos na Nossa América. Apenas nesse contexto é possível entender episódios como a astuta invasão da Embaixada do México ordenada por Noboa no mês passado; uma ação que dificilmente poderia ter sido realizada às escondidas dos órgãos de poder dos EUA.
Miguel Ruiz Acosta é Sociólogo mexicano-equatoriano.
Publicado no site Rebelión e traduzido pelo Instituto de Estudos Latino-Americanos da UFSC.
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