“Massacres da selva” revela desaparições, torturas e assassinatos da ditadura guatemalteca
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- Leonardo Wexell Severo
- 26/08/2024
Livro do sacerdote e antropólogo Ricardo Falla aponta para o papel da resistência no fortalecimento da construção da consciência da unidade nacional
“Crisanto Gómez tinha a casa na margem do rio Xalbal. O senhor tinha um forno de cal. Ali queimaram duas pessoas. Havia fogo ardendo. A nora tinha um bebezinho com 8 dias de nascido. Os soldados o colocaram em cima das pedras por onde sai a chama da fornalha. Se desfez, como óleo, sobre as pedras”
Massacre de Kaibil, 2 de abril de 1982
Em meio à atual política de extermínio empregada por Israel contra os palestinos em Gaza, onde despeja bombas em escolas e hospitais, mata sufocados sobre os escombros e mutila um número recorde de crianças, o livro “Massacres da selva – Ixcán, Guatemala (1975-1982), Editorial Universitária, 254 páginas, 1993”, do sacerdote e antropólogo Ricardo Falla, serve como um apelo à Humanidade. Uma conclamação a que o sangue derramado por centenas de milhares de pessoas identificadas como “obstáculo” no pequeno país centro-americano jamais seja esquecido.
Nas palavras de Ricardo Falla, uma obra que deve transcender o tempo e fazer com que a fúnebre experiência protagonizada pelas ditaduras guatemaltecas dos generais Kjell Eugenio Laugerud García (1974-1978), Fernando Romeo Lucas García (1978-1982) e Efraín Ríos Montt (1982-1983) “nunca mais se repitam”. Por brevidade e força, o autor se concentra em “desaparições, torturas, assassinatos seletivos ou coletivos, massacres de grupos e de aldeias inteiras, que podem ser catalogados como genocídio”.
Ordenado em um pequeno período da história, o clássico estampa “realidades cuidadosamente ocultadas pelo exército, que quando vem à luz se convertem em símbolos, como as câmaras de gás nazis”. O foco da pesquisa é de “grande transcendência para a história da Guatemala” e “a área de investigação também precisou ser reduzida para ganhar em profundidade o que se perde em amplitude”: o departamento de Ixcán. Fronteiriço com o México, com cerca de 50 mil habitantes, Ixcán na época era apenas uma selva desabitada e quente, “marcada por seis meses de chuvas intensas, repleta de serpentes, mosquitos e lodaçais”. Mas, apesar disso, “uma terra fértil, um sonho lindo demais para ser realidade”.
“Fortalecimento da consciência nacional”
Pois foi exatamente ali de 1972 e 1975 onde a guerrilha de libertação fincou raízes, junto com a extensão dos que estavam fartos de vender sua força de trabalho nas fazendas de café, cana de açúcar e algodão. Com os camponeses indígenas experimentando a produtividade agrícola como “dom maravilhoso”, essas comunidades foram se expandindo, da mesma forma que o cooperativismo, rompendo a limitação étnica e com ele fortalecendo a consciência nacional. Na experiência da população em resistência, “a colheita que cada um tinha guardado se acabou e então começamos a falar de verdade de coletivo”.
Identificada pelos serviçais da ditadura como um abastecimento permanente de pensamento crítico e de braços para a guerrilha, a população civil virou o alvo, com o exército sendo acionado para “tirar o peixe da água a fim de que morresse”. Afinal, diziam os manuais militares dos Estados Unidos, sem povo não haveria água para abastecer a luta. Por conta disso, a barbárie empregada – e derrotada – pela máquina de guerra norte-americana no Vietnã em 1973, precisou ser requintada com o toque racista do vale-tudo sionista. Como ficou evidenciado pelo montante dos recursos envolvidos, sem o respaldo e a contribuição dos governos dos EUA e de Israel, o chamado “holocausto maia” jamais teria sido possível.
“Capturas, sequestros e desaparições”
Inicialmente, a denúncia internacional sobre “capturas, sequestros e desaparições” seletivas chegou até o Congresso dos Estados Unidos em dezembro de 1975, por parte de pessoas preocupadas com os direitos humanos e reverberada pelo Conselho Nacional de Igrejas de Cristo do país do norte. Em dezembro de 1976, ganhou eco pela Anistia Internacional, fazendo com que o presidente Kjell Eugenio Laugerud acusasse a instituição de “comunista”.
A perseguição à Igreja, que já havia iniciado, culminou com a explosão do avião – e o assassinato – do padre norte-americano Guillermo Woods e de sua equipe, como admitiu o coronel guatemalteco Fernando Castillo, “planificado” por outros militares de alta patente em 20 de novembro de 1976. [A técnica dos “acidentes” aéreos viria a ser usada em 1981 pelo imperialismo na eliminação de três fortes opositores: o presidente do Equador, Jaime Roldós, em maio; do comandante do exército peruano, Rafael Hoyos Rubio, em junho; e do líder da revolução panamenha, Omar Torrijos, em julho].
Em 19 de dezembro de 1978 foi a vez do padre Carlos Stetter, sacerdote diocesano de Stuttgart (Alemanha) ser preso pelo exército em Huehuetenango e expulso da Guatemala. “Stetter era um estorvo para os militares no Ixcán, por ser testemunha do que faziam”.
No dia 4 de junho de 1980, o sacerdote espanhol José María Gran, da diocese de Quiché, é emboscado pelos militares junto com seu sacristão. Conforme o comunicado do exército, “dois subversivos morreram em combate”.
A partir daí, aponta o autor, “termina a palavra de Deus”, uma vez que todos os religiosos eram identificados como “guerrilheiros” e os que não falassem receberiam o mesmo tipo de tratamento, fossem crianças ou mulheres, e teriam queimadas suas casas.
Entre os inúmeros casos de religiosos submetidos ao suplício está o caso do violonista Hilario Sales, do conjunto carismático Povo Novo, em novembro de 1980. Capturado quando tentava fugir do destacamento militar após uma sessão de tortura, retorna ao suplício. “Já estava para rebentar o sangue, quando o entregaram a sua família”, recordou um amigo que o viu: “saía sangue pelo olho e pelos ouvidos”. Morreu logo depois.
No mesmo estilo dos “falsos positivos” posteriormente utilizado pelo governo made in USA da Colômbia – onde mais de 10 mil jovens foram sequestrados, vestidos de guerrilheiros e abatidos -, na batalha para ganhar corações e mentes dos cooperativistas do Ixcán o exército montou uma gigantesca operação de propaganda para responsabilizar as vítimas. A qualquer um que identificasse como “obstáculo”. Assim, até mesmo o hospital recém-construído de Povo Novo e a sede da cooperativa foram mandados pelos ares em 12 de junho de 1981 pelo exército na tentativa de fazer crer que “a guerrilha era a culpada”.
Logo mais, com a compreensão da população de quem era o inimigo real, os sequestradores de farda já não pretendiam esconder os cadáveres, mas mostrá-los desfigurados, para que fossem vistos e propagado o terror. Da mesma forma, a tortura deixou de ser mantida em segredo, sendo amplamente divulgada pelos carrascos, como ocorreu com Baltasar Juan Nicolás em Xalbal, em junho de 1981, identificado como “queimado vivo”. “Foi a primeira vez que nos testemunhos apareceu esta forma de tortura e morte”.
Em 30 de agosto de 1981, após serem capturados em Mayalán pelos soldados, Mateo Juan aparece sem os testículos, enquanto Mateo Marcos teve o pé arrancado do tornozelo para baixo.
Como destaca o autor, “a população reagiu ao terror organizando uma rede de vigilância e de avisos para detectar por onde viriam os soldados”.
Em 15 de fevereiro de 1982, o massacre de Santa María Tzejá fala por si: “Havia uma mulher grávida, lhe cortaram a barriga e arrancaram seu bebê. De outro lhe tiraram a cabeça e o enfiaram no estômago da mulher”.
Testemunhos de sobreviventes do horror
Muitos dos testemunhos, como os do Massacre de Carismáticos de Povo Novo, em 18 de fevereiro de 1982, foram dados por gente que conseguiu escapar de uma forma milagrosa. Uma menina de oito anos se salvou porque “lhe amarraram o pescoço e apertaram o laço, porém como viram que já havia botado a língua de fora acreditaram que estava morta”.
Um senhor de 75 anos a quem os soldados cortaram o pescoço também se salvou porque “a navalha tocou o botão da camisa e pensavam que já tinha pegado no osso e saiu sangue, então o chutaram e acreditavam que estivesse morto”. Um casal e o filhinho de um ano também sobreviveram porque se atiraram no rio desde a ponte. Apesar de alvejada por um tiro, e mãe que carregava o pequeno também conseguiu chegar à margem.
No Massacres de Kaibil Balam, em 27 de fevereiro, mataram Rosanda com seus três filhos: de três, seis e oito anos. Uma senhora com dois filhos foi abatida a tiros e outra foi agarrada e explodida com uma granada.
Como ficou explicitado em cada uma das páginas, foi uma operação planificada, chamada pelos manuais do Pentágono e da CIA de “Operação Limpeza” (Sweep Operations), que separam o terrorismo de Estado guatemalteco em dois momentos: o de “repressão seletiva”, de 1975 e os seis anos seguintes, e o de “terra arrasada”, a partir de 1982.
Adquiri “Massacres da Selva” nas duas semanas em que estive na Guatemala acompanhando o julgamento contra o general Manuel Benedicto Lucas García. O psicopata vem sendo acusado pelos “crimes de genocídio, desaparecimento forçado e de lesa-humanidade” quando era o chefe do Estado-Maior do Exército entre agosto de 1981 e março de 1982, durante a presidência do seu irmão, Fernando.
Somada à instrução adquirida por Benedicto na Escola das Américas (dos EUA), vale o apego ao aprimoramento às orientações do Estado sionista. “Israel foi o único país que nos deu apoio na nossa batalha contra as guerrilhas”, declarou.
O fato é que o livro descreve como “houve capturas de muitas famílias, assassinatos, ametralhamento e bombardeios aéreos, canhonaços, devastação de colheitas, doenças forçadas e fome induzida”, especialmente durante os anos de 1983 a 1985.
Mortes se multiplicaram pela repressão e perseguição
A obra aponta que “a causa das mortes foi uma combinação da falta de luz e pouco calor sob a montanha úmida, da falta de abrigo das chuvas torrenciais, da falta de variedade de alimentação, da falta de higiene na aglomeração do acampamento, da falta de adaptação psicológica a essa nova vida seminômade de um exército perseguidor”.
“Estas mortes foram mais numerosas que as diretamente infligidas pelo exército, pois foram efeito da própria repressão”, esclareceu o autor, lamentando ter deixado de lado este elemento tão importante na coleta de dados, que poderiam comprovar com números esta afirmação.
Foram inúmeras as crianças que morreram nos primeiros meses de vida na montanha. Nos acampamentos de Pedras Brancas, recordou, “em um grupo de 280 pessoas morreram cerca de 30 crianças em três meses (julho a setembro de 1982)”. “Há dia em que morreram dois. Não há dia em que não haja morto nem a quem velar. Começaram com diarreia e disenteria”, explicou.
Se o número de cruzes se multiplicou – e foi avassalador – como a história demonstrou, os cifrões engordaram a caixa registradora da indústria bélica dos EUA e de Israel.
Quando devido à pressão internacional o governo Carter é levado a cortar parte da ajuda à ditadura guatemalteca, “em questão de meses” Israel passou a ser o seu principal fornecedor de armamento e tecnologia militar, enviando aviões Aravá, carros blindados, fuzis de artilharia, submetralhadoras Uzi e fuzis de assalto Galil, assim como técnicos e instrutores que treinaram os Esquadrões da Morte.
Neste momento em que a Guatemala necessita resgatar o projeto nacional-desenvolvimentista de Jacobo Árbenz, deposto pelos EUA em 1954, mais do que nunca se torna fundamental debater o ocorrido, para honrar o sangue derramado.
“Por que escrevemos um livro sobre massacres? Para que recordar esses sofrimentos e crueldades incalculáveis? O testemunho nos dá a chave. O depoimento, saindo da sua memória emocionada – ‘nunca esquecerei’ – anuncia uma realidade existencialmente positiva para ele: estou vivo. Seu testemunho é uma boa notícia. Quanto mais terrível é a narrativa de quem presenciou, mais maravilhosa é a realidade que anuncia: estou vivo. Este livro assume a finalidade deste e de centenas de testemunhos que querem dizer ao povo da Guatemala e às nações do mundo: estamos vivos, incrivelmente, estamos vivos”, concluiu Ricardo Falla.
Leonardo Wexell Severo é jornalista.
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