Correio da Cidadania

O que há por trás da greve agropecuária na Argentina?

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A semana começou com o recrudescimento da greve agropecuária, que já faz sentir seus efeitos sobre a classe trabalhadora, com o desabastecimento de carne e outros alimentos e a brutal alta dos preços do que se pode conseguir. Pela noite de terça-feira, 25, desde tradicionais centros da grande burguesia, como a Recoleta, Bairro Norte e Belgrano, se organizaram piquetes em 'apoio ao campo' e uma marcha à Praça de Maio. A que se deve isto? Quem está por trás da 'greve do campo'? Que responsabilidade tem o governo K (Kirchner)? Que posição devemos tomar os trabalhadores?

 

Desde o governo De la Rúa que não há greve de todas as entidades que centralizam a atividade agropecuária (SRA, CRA, FAA etc). Ao término desta edição, a greve já tinha sete dias, com bloqueios e cortes de estradas, e começava a se sentir nos açougues e verdurarias, tanto nos preços como no abastecimento.

 

O estopim da medida de protesto foi o aumento do governo nas retenções das exportações de soja, girassol, azeite de soja (comestível e biodiesel) e azeite de girassol. Também fixou uma faixa flutuante de retenções, que no caso da soja, por exemplo, se chega a subir para 600 dólares a tonelada (FOB, quer dizer, colocada sobre o barco) aumentaria o imposto em 49% e daí para cima congelaria o preço líquido do setor em 280 dólares a tonelada.

 

Os grandes pecuaristas e os donos dos grandes armazéns querem mais subsídios; os poderosos do setor agrícola querem driblar a porcentagem das retenções. É uma briga de tubarões: o Governo e o setor agrícola acomodados; o objetivo é a divisão da renda agrária excedente. Avizinha-se um inverno de crise energética na Argentina e terá de se importar (com preços internacionais nas nuvens e consumo local altamente subsidiado). E os 'K' precisam arrecadar para que os números batam.

 

Uma greve reacionária

 

Desde o início há de se dizer que a greve do campo contra o governo é uma medida reacionária: ou seja, não expressa interesses populares, dos explorados e oprimidos, mas sim que a Sociedade Rural e os grandes proprietários agrícolas arrastam as entidades representativas dos pequenos produtores em uma luta que se amarra em volta da extraordinária renda agrícola que se gerou, entre outras coisas, devido aos altíssimos preços das matérias primas no mercado mundial.

 

Desde já, o caráter reacionário dessa briga entre o campo e o Governo K não quer dizer que o governo seja quem expresse os interesses populares. No fundo, é uma batalha para ver quem fica com a renda excedente, apesar da pretensão do governo de aparecer como o representante da população, afetada pela brutal escalada dos preços.

 

Com esse manual, o Ministro da Economia, Lousteau, saiu dizendo que "não é o mesmo um pequeno armazém e um grande pool de soja (...); o governo utiliza as retenções para impedir que a alta dos preços internacionais se transfira totalmente aos domésticos (...); diante do risco da 'sojização' da economia, devemos zelar pelo equilíbrio (...); a medida retrai os valores dos grãos a dezembro de 2007, que já eram altíssimos (...); o setor continua sendo muito rentável" (Clarín, 14/03/08).

 

Efetivamente muitas das afirmações que profere aqui Lousteau são certas, mas o que o ministro não diz é que o Governo K não tomou uma só medida que afetasse a estrutura da propriedade agrária em todos os seus anos de mandato. Pretende apenas - sobre a base da atual estrutura superconcentrada da propriedade e a economia do campo - conseguir que os 'barões do campo' lhe entreguem uma fatia da renda agrária para colocá-la a serviço do caixa do Estado.

 

Os pequenos produtores não podem ir atrás da Sociedade Rural

 

A Sociedade Rural foi ao choque dizendo que "as medidas são confiscatórias e atentam contra a rentabilidade do setor" e para a CRA (Confederações Rurais Argentinas) "são medidas de puro traço fiscalista, que têm um único objetivo: arrecadar mais". Por sua vez, Eduardo Buzzi, presidente da FAA (Federação Agrária Argentina, pequenos e médios produtores) afirmou que "potencializará ainda mais a concentração da propriedade da terra em poucas mãos".

 

Aqui se observa com claridade a contradição dessa frente única de todo o campo. É que quando se fala do 'campo' sempre deve se diferenciar de quem falamos: se dos grandes empresários e latifundiários ou dos pequenos e médios produtores (sem falar quando se trata de assalariados que trabalham sob patronato no âmbito rural).

 

"O país vive de nós, porque injetamos dinheiro e porque o Governo sempre nos mete a mão para tirar dinheiro fácil", se exalta e se queixa, ao volante de sua caminhonete Toyota Hilux 0Km, Cristian Villarreal, médio-grande produtor agropecuário de Casilda (Santa Fé), capital nacional da soja. Do sudoeste da província de Buenos Aires, zona trigueira não muito apta para a soja, Juan Casas, pequeno produtor, diz que "os armazenadores nos pagam o que querem, ainda por cima está fechada a exportação de trigo". Duas realidades muito distintas as de Villarreal e Casas.

 

O campo não é uniforme; a grosso modo, há - em nível produtivo - quatro setores: agrícola; pecuário; leiteiro; hortifruti. Todos têm algo em comum, a terra como força produtiva, e estão profundamente inter-relacionados, porém, cada um deles tem características próprias em nível de propriedade que os diferenciam dos demais. Porque, como falamos, a SRA e o pool sojeiro não são o mesmo que os pequenos produtores.

 

Quando a SRA critica as medidas por serem "confiscatórias" e a CRA as qualifica como de "puro traço fiscalista", só estão dizendo que, sob a base de leis que resguardam a propriedade privada, corresponderia a eles, de maneira íntegra e total, algo que lhes vêm de forma absolutamente gratuita: a abundância do campo argentino, em condições onde, além de tudo, os preços das commodities estão nas nuvens.

 

Está claro que o ângulo de Buzzi (FAA) é diferente ao dar conta do processo histórico de concentração de terra em poucas mãos, que tem décadas e parece incontrolável. Mas Buzzi se coloca do lado errado da trincheira quando diz que "o campo se uniu por um único objetivo". Porque 10% do setor agrícola produz 90% de soja e vive um período de esplendor, mas ao mesmo tempo essa situação fez entrar em crise estrutural o pequeno fazendeiro, com seus 200 hectares em uma economia mundializada, é vítima dos grandes armazenadores de grãos e das empresas de biotecnologia (Monsanto, Nidera), não tendo mais remédio, na maioria das vezes, que não arrendar seu campo.

 

Mas, então, o que faz uma organização de pequenos e médios produtores - que são os que põem as pessoas nos bloqueios de estradas no interior - na trilha dos interesses dos grandes tubarões do campo? Não têm nada a fazer ali, junto aos que queremficar com toda a renda agrária e liberalizar os preços, o que só podia se fazer às custas dos trabalhadores e setores populares do campo e da cidade.

 

Por uma aliança independente dos explorados e oprimidos da cidade e do campo

 

Dirigentes como D'Elia, Depetris e outros saíram a convocar uma marcha até a Sociedade Rural. Esses setores 'K' pretendem repudiar a greve do campo a partir do posicionamento de defesa cerrada do governo. Não é disso que se precisa. Porque os problemas dospequenos e médios produtores são reais e, na realidade, o próprio governo que agora sofre a greve agrária, em todos esses anos, como está dito, não tomou uma só medida contra o processo brutal de concentração da terra e da renda agrária.

 

A única saída que têm os pequenos produtores é se aliar aos trabalhadores e demais setores oprimidos, porque ambos são vítimas da política do governo kirchnerista. O governo não corrigiu desequilíbrios, pelo contrário. Sob os 'K' eles se acentuaram. Desaparecerão mais e mais fazendeiros e os pools do campo se farão cada vez mais fortes.

 

Não é alinhando-se, portanto, ao governo K que se poderia dar uma saída tanto aos problemas desses produtores como à escalada dos preços e o desabastecimento que se começa a notar nos açougues e verdurarias. O que é necessário é outra coisa: a unidade desses pequenos produtores com os trabalhadores urbanos e rurais, em via tanto de impulsionar medidas de autêntica reforma agrária e socialização do campo como de um estrito controle dos preços dos produtos de primeira necessidade, assim como a expropriação de todos aqueles grandes proprietários que especulem com os preços e/ou provoquem desabastecimento.

 

Isto é, para resolver os problemas dos pequenos produtores e trabalhadores do campo é necessária uma aliança de classe oposta: nem com a SRA nem com o Governo K, mas com os trabalhadores.

 

Juan José Funes

Publicado originalmente no periódico Socialismo o Barbarie.

 

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Comentários   

0 #1 MAIS INTEGRAÇÃO AJUDARIAFernando Roberto de Freitas Al 31-03-2008 13:49
Talvez uma visão da posição da Argentina no mundo precise ser mais debatida. Ao optar, há anos, por uma especialização em produtos agrícolas de que poderia haver super-oferta (compensada pelo crescimento chinês), o país aumentou sua vulnerabilidade internacional. A integração Brasil-Argentina nos anos 80 vinha-se dando pela via da produção e do comércio, com protocolos que regulavam os primeiros negócios. Posteriormente, passou-se ao ambiente liberal, onde quem tivesse o câmbio mais favorável desequilibraria o jogo. Agora, com uma integração muito maior nos mercados, os Estados têm menos recursos de poder para associar suas empresas, com vistas a socorrer o vizinho com problemas. Não evoluíram, por exemplo, os projetos de empresas binacionais brasileiro-argentinas para a colocação da soja no mercado externo, preservando o abastecimento interno.
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