Correio da Cidadania

Colômbia: No meio do conflito uma legítima reação cidadã

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Violência, narcotráfico, seqüestros, refugiados, paramilitares, guerrilheiros, tréguas e tentativas frustradas de estabelecer um mínimo de condições para o exercício do legítimo direito à oposição, fazem parte freqüente do quadro de vocábulos que descrevem a tragédia da Colômbia pelo menos nos últimos 50 anos.

 

Contudo, a imensa maioria dos colombianos ainda não cessou de tentar empreender o caminho da reconciliação, da superação das dificuldades e do risco da banalidade que ocasiona a exposição quase cotidiana do horror da violência.

 

Nesse quadro, esquivar a morte e comprometer-se com uma alternativa à guerra é o caminho que trilha um setor de colombianos identificados como ‘Colombianos e Colombianas por la Paz’, que reagem diante do discurso de saídas militares que o país já não agüenta mais e que promove o Executivo que encabeça o presidente Uribe.

 

Essa iniciativa não tem apenas uma repercussão interna senão uma dimensão internacional inegável, posto que a paz não é apenas uma necessidade e um direito legítimo dos colombianos. É uma exigência humana, um dever humanitário, que beneficiaria direta e especialmente aos povos da América Latina, porque indiscutivelmente geraria um novo clima na região, de maior estabilidade nas relações político-diplomáticas, econômicas, sociais e culturais e seria altamente positivo para dar início a uma etapa diferente na integração dos povos, com fundamento na construção de um Estado de Direito de democracia avançada, participativa e ligado à satisfação das necessidades públicas.

 

De maneira que as ações empreendidas para criar cenários de paz devem ser saudadas, apoiadas e estimuladas. E é bem por isso que a iniciativa desse movimento, que explorou o caminho de epistolarmente dirigir-se abertamente à guerrilha, processo que finalmente deu lugar à liberação de seis seqüestrados pelas Farc, tem um apoio internacional ao qual se somam organizações como a Cruz Vermelha e todos os que compreendem que o respeito pelos direitos humanos começa pelo diálogo e a negociação política na perspectiva de impor a razão e rejeitar as soluções de força.

 

No entanto, os fatos e as manifestações governamentais – e podemos exemplificar como nesta oportunidade houve um torpe sobrevôo militar que, de boa fé, segundo a versão do governo colombiano, atrapalhou a entrega de um dos reféns, violando-se a linha de trabalho que tinha sido acordada com o Exército brasileiro, bem como a hostilidade e as constantes afirmações do Executivo colombiano de que os membros desse movimento, dentre os quais se encontram intelectuais, acadêmicos e personalidades da cultura consagradas dentro e fora do país, tem como intenção real abrir espaços políticos à guerrilha – podem se converter em elementos que em lugar de abrir, fechem as possibilidades de um processo humanitário que poderia ter como desenlace novas libertações. Tais elementos e, particularmente, as afirmações do Executivo, são além de constrangedoras, evidentemente ameaçadoras para as pessoas que conformam o cenário dos que desejam a paz, e ainda constituem um desserviço à conquista da recuperação do direito à liberdade humana.

 

Em um país sem paz e sem direitos, com uma gravíssima crise humanitária, acompanhar os fios da história é um exercício político e jurídico obrigatório. A violência persiste, entre outros fatores, porque o paramilitarismo - que nunca deixou de existir, como afirmam as entidades de defesa dos direitos humanos apesar das posições institucionais - continua a ameaçar a vida de sindicalistas e defensores das liberdades públicas e os direitos cidadãos. Segundo as cifras apresentadas por ONGs como a Escola Nacional Sindical, já são mais de 400 sindicalistas assassinados durante o presente governo.

 

Causa realmente consternação o informe da Human Rights Watch de janeiro do presente ano, no qual se afirma que os grupos paramilitares não somente são responsáveis de incontáveis crimes de lesa humanidade, senão que ainda acumularam um patrimônio considerável através de alianças mafiosas com membros das forças militares, empresários e membros efetivos de partidos políticos tradicionais em localidades colombianas.

 

Trata-se de um escândalo conhecido nacional e internacionalmente. O governo, segundo a Human Rights Watch, argumenta que não já não existem paramilitares, mas, ainda que seja reconhecido que mais de 30.000 pessoas ingressaram em um processo de abandono das armas, sérios e objetivos pesquisadores do conflito social colombiano comprovaram que muitos deles não eram paramilitares senão civis recrutados para a finalidade de se fazer passar por membros desses grupos. As autoridades não julgaram estas pessoas e, por enquanto, surgem novos grupos armados que atuam sob a orientação de novos mandos. Esclarece o informe que a Missão de Apoio ao Processo de

 

Paz da OEA (APP/OEA), a cargo de verificar as condições políticas e jurídicas da desmobilização, já tem uma lista de 22 grupos ilegais com essas características.

 

Muito embora na Corte Constitucional, em maio de 2008, instou-se o Executivo a uma revisão exaustiva do programa de proteção a jornalistas e sindicalistas e do programa de proteção e vítimas do paramilitarismo, pouco tem sido feito nesse sentido, enquanto as declarações de funcionários governamentais e do próprio senhor presidente intimidam os defensores de direitos humanos com discursos onde se ameaça nas entrelinhas, obstaculizando-se assim o legítimo trabalho de amparo e proteção das vítimas de gravíssimas violações do direito à vida.

 

Entretanto, o que talvez ocasione maior indignação é o doloroso drama do refúgio; a infinita cadeia de famílias que abandonam seus lares, seus bens, a região em que procuravam honradamente seu sustento, pela crueldade do conflito interno.

 

A geografia colombiana já registra mais de 4 milhões de refugiados internos, em ameaça constante. Um êxodo que faz tempo deixou de ser silencioso e virou algo massivo; um fenômeno que destrói famílias, que fomenta a imigração urbana ocasionando desequilíbrios na conformação do tecido social e que tem fortíssimo impacto na economia.

 

Vale a pena anotar que 75% dos refugiados internos são mulheres e que 18% delas foram, em alguma medida, vítimas de violações e abusos sexuais em regiões distantes e conflituosas, o que levou a que uma decisão da Corte Constitucional no ano de 2006 (T-919/2006) determinasse que mulheres e crianças deveriam ter atendimento diferenciado e prioritário como grupos mais vulneráveis dentro do vasto grupo dos refugiados internos.

 

Apenas no ano passado o governo adotou as primeiras medidas, ainda que precárias, para essa proteção. Aliás, dois anos atrás, a Corte já havia reconhecido a extrema vulnerabilidade dos refugiados internos e a precariedade dos atendimentos e, em geral, da atenção estatal (T-025/04)

 

Nessa coleção de fatos em que a dignidade humana, a vida, a liberdade, os direitos sociais e políticos se esvaziam, não há como não festejar o protagônico papel dos colombianos que tentam viabilizar a paz com ações claras e acompanhamento internacional, ainda que sob a tensão que significa o estigma oficial.

 

Uma questão é clara: o drama dos refugiados internos e dos requerentes colombianos de asilo em territórios vizinhos, como no Brasil, somente terá condições de diminuir ou definitivamente acabar na exata medida em que existam esforços para o respeito às normas do Direito Internacional que coíbem e penalizam o tratamento desumano contra a população civil ou que exista uma abertura às condições para gerar a paz democrática no país. E nesse sentido, o esforço de setores sociais, como o dos Colombianos e Colombianas por la Paz, é uma iniciativa justa, que merece o respaldo internacional tanto pela recriação da tolerância como princípio fundamental na reconstrução do tecido social colombiano, como pela efetividade que teve seu primeiro grande desafio: a libertação dos seis reféns.

 

Pietro Alarcón é professor da PUC/SP, assessor do convênio Cáritas-ACNUR para refugiados e membro da CEBRAPAZ.

 

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