Correio da Cidadania

Uma reunião em primeira pessoa com Fidel

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Fidel não descansa. Segue firme seu caminho. Não abandonou nem abandonará a luta. Guerreiro de tantos combates, continua acossando sem parar o imperialismo. Sua vontade é indomável e como ocorre com bom aço, ao passar dos anos, longe de se quebrar, se afia ainda mais. Sabe que para construir um mundo melhor deve-se triunfar na batalha decisiva: a das idéias. Como fiel herdeiro do pensamento de Martí, de quem não por casualidade dissera ser o autor intelectual do assalto ao Moncada, sabe também que é preciso ser culto para ser livre. Porém, tal cultura para a liberdade deve nutrir-se da melhor tradição do pensamento crítico e emancipatório, do qual o socialismo é um componente indispensável e insubstituível.

 

Sua prolongada convalescência, que lhe permitiu recuperar a saúde de forma notável, e seu afastamento das funções de governo fazem que seja possível cultivar sua insaciável curiosidade intelectual. Mas não é só uma atitude individualista, pois está sempre guiada pela necessidade de transformar o mundo e não apenas contemplá-lo. Poucos como ele são tão conscientes do desenlace catastrófico para o qual nos empurra o capitalismo, que faz do gênero humano e da natureza simples mercadorias que se negociam no mercado com o excludente propósito de obter uma vantagem. Uma curiosidade intelectual, dizíamos, em que sua sólida formação intelectual se viu enriquecida por uma excepcional experiência política, que se direciona aos periódicos artigos em que analisa os principais aspectos da cena contemporânea.

 

Como antes, Fidel vive rodeado de livros e papéis. Compilações diárias da imprensa dos mais diversos países o mantêm informado detalhadamente do que ocorre no mundo todo, enquanto vai anotando em seus inseparáveis caderninhos as idéias, comentários ou interrogações que depois alimentam suas "Reflexões". Como no passado, sua avidez por conhecimento é inesgotável, assim como sua paixão pela informação exata e precisa. Soldado da batalha de idéias, exige-se um condimento especial – pouco usual entre os políticos – para logo após reger os destinos de sua pátria por tanto tempo renunciar a seus cargos e se envolver de corpo e alma em sua atual missão. "Neste momento a responsabilidade de governar é de meu irmão, não minha". Não passou despercebida ao seu olhar atento uma certa incredulidade refletida em meu rosto, motivada talvez por sua duríssima declaração pública a respeito da reorganização ministerial. "Se opinei sobre as trocas de gabinete foi pela necessidade de cortar pela raiz a boataria sobre um conflito entre os homens de Fidel e os de Raul. Não podia com meu silêncio avalizar essa bobagem", disse. E repetiu: "Quem governa é Raul. Em Cuba, muita gente pagou com sua vida o triunfo e a consolidação da Revolução." E prossegue: "Não só na Sierra Maestra ou na luta contra Baptista. Também depois disso mataram alfabetizadores em Cuba e ainda o fazem fora de Cuba. O mesmo ocorre com nossos médicos, que arriscam suas vidas para fazer realidade o internacionalismo socialista". Intuo que essa reflexão esteve destinada a contextualizar a troca ministerial de dias passados e a descartar a nada inocente acusação de que em Cuba só há uma geração, a de Sierra Maestra, que deu sua própria vida e que, portanto, seria a única com direito a governar. Há várias gerações que possuem esse direito e, agrega Fidel, "um dos grandes êxitos da Revolução é a enorme quantidade de gente jovem, preparada e educada com que contamos".

 

Mas o velho guerreiro está tratando de outras batalhas, longe do dia-a-dia da gestão governamental. Seguiu muito de perto, pela televisão cubana, as discussões ocorridas no 11º. Encontro Internacional de Economistas sobre Globalização e Desenvolvimento, organizado pela ANEC (Associação Nacional de Economistas e Contadores de Cuba), um evento único no mundo onde debatem, sem restrição alguma, economistas neoliberais, keynesianos, pós-keynesianos e marxistas. Estavam nessa reunião três prêmios Nobel de economia e uma penca de economistas vinculados ao FMI, Banco Mundial, BID e diversos ministérios de economia. Fidel recebeu as propostas que ali se apresentaram e fazendo um parêntese em seu plano de trabalho leu várias delas com sua proverbial meticulosidade. Foi quem, com essa visão de águia que Lênin tanto admirava em Rosa Luxemburgo, auspiciou a realização desses encontros em meados de 1998, pois já via que estava por vir o esgotamento e crise do modelo neoliberal. Então, encomendou ao presidente da ANEC e um de seus mais próximos colaboradores, Roberto Verrier, a missão de convocar com a maior amplitude possível um encontro de especialistas para discutir a crise que se gestava. O primeiro teve lugar em janeiro de 1999 e lá esteve Fidel, sentado na primeira fila e tomando nota de tudo que se dizia, intervindo ocasionalmente, seja com inteligentes comentários ou com afiadas perguntas. Tais reuniões se repetiram ano após ano, mas seus problemas de saúde nos privaram de sua presença nos últimos encontros. Não obstante, sempre se virou para estar a par do que se discutia e ler as propostas. Pude ver a minha: trechos inteiros sublinhados, palavras ou frases circuladas, comentários nas margens, em cima ou embaixo. Em suma, a obra de um leitor metódico e diligente, que sabe do que se fala e está muito por dentro dos temas que lhe interessam. O nível de informação que controla é hoje tão impressionante como ontem, quando se desempenhava como chefe de Estado.

 

É devido a isso que viu a crise chegar antes que ninguém, e agora se antecipou aos demais ao advertir sobre as formas bárbaras que pode assumir a "resolução" capitalista da crise. Pareceu-lhe convincente o argumento que elaborei em minha proposta, no sentido de que esta é mais grave que as outras duas grandes que a precederam: a Larga Depressão, de 1873-1896, e a Grande Depressão, que explodira em 1929. A atual é uma explosiva combinação de crise econômica, ecológica, energética, alimentar, que se desenvolve tendo como contexto as abomináveis conseqüências das mudanças climáticas. "As pessoas não se dão conta do que está acontecendo – sussurra enquanto levanta suas volumosas sobrancelhas – e os meios não informam o que têm de informar". Uma crise que atualiza o velho dilema que numa época Rosa Luxemburgo popularizou – "socialismo ou barbárie" – e nada mais próximo a isso que a catástrofe ecológica e climática que hoje põe em questão a própria continuidade da vida no planeta. Porém, não há solução capitalista para essa crise. Já em sua primeira intervenção no Primeiro Encontro da ANEC, Fidel havia demonstrado, com o rigor de um teorema matemático, que a crise capitalista em gestação não teria solução dentro do capitalismo e que, portanto, haveria de se pensar em outra coisa. O socialismo é na atualidade mais necessário do que nunca.

 

"Você por acaso acredita que o G-20 poderá oferecer uma solução para a crise?", pergunta dando como certo minha resposta negativa. "E por que acha que convidam Argentina, Brasil e México?" Respondo: é uma tática que busca afastá-los de Chávez, concedendo-lhes um protagonismo cênico e retórico, porém irreal e cuja mensagem latente é "esqueçam da ALBA, vocês são países grandes e devem jogar conosco, não contra nós". Fizeram o mesmo na crise da dívida, em 1982, quando desacreditaram ativamente a criação de um ‘clube de devedores’ para opor-se ao poderoso ‘clube dos credores’ – bancado e respaldado pelos governos do G-7 – prometendo em troca um "tratamento preferencial" para sua dívida, promessa que finalmente não se cumpriu, submetendo por igual todos à crise. A mesma tática se utiliza agora, com os mesmos previsíveis resultados.

 

Fidel está em todos os detalhes e nada do mundo lhe é estranho. "Deus está nos detalhes", me disse há alguns anos. Segue fiel a esse axioma e examinando os dados da realidade com obstinada atenção. "Obama é um bom homem, mas a presidência é uma coisa e o império é outra. Tem suas leis, seus interesses, suas relações de força", diz. O homem que dez presidentes da maior potência econômica e militar da história trataram de derrubar, e em alguns casos assassinar, não revela o menor traço de ressentimento ou ódio. Sente certa simpatia por Obama, um jovem afro-norte-americano cuja mera presença irrita até o nível do indizível muitos racistas e a direita radical dos EUA. No entanto, conhecedor como poucos do império, sabe que as resistências a qualquer iniciativa de mudança serão formidáveis e que os interesses dominantes não vão arrefecer por conta de intenções reformistas de um ocasional ocupante da Casa Branca.

 

Enquanto isso, segue lendo e estudando, como antes, ou melhor, mais que antes.

 

Comenta que o acervo de conhecimento científico se duplica a cada 14 anos e que a tendência é fazê-lo em um prazo cada vez menor. Surpreende perguntando-me: "Que bom estudo você conhece sobre o pensamento de Gramsci?" Enquanto processo mentalmente a lista de ‘gramsciólogos’ não posso deixar de pensar ao mesmo tempo em quantos chefes de Estado, ou ex-presidentes ou ex-chefes de Estado, poderiam ter-me feito uma pergunta similar, referida a Gramsci no caso dos que se referenciam à esquerda ou a algum autor como Hayek para os que se identificam com a direita. Quem? Pouquíssimos, provavelmente Hugo Chávez. Conclusão: Fidel pertence à outra galáxia.

 

Atilio A. Boron é sociólogo argentino.

 

Traduzido por Gabriel Brito.

 

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