Os zapatistas e a rede virtual de conexões
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- Guga Dorea
- 17/04/2009
Desde o instante em que desembarquei pela primeira vez nesse instigante país que é o México, na passagem do ano entre 1994 e 1995, em nenhum momento deixei de acompanhar todo um pulsar político que, mesmo de longe, continuou a ecoar em meu modo de pensar a prática política nos dias de hoje, apesar do silêncio estratégico da mídia brasileira.
A inesperada e contagiante guerra deflagrada um ano antes pelo Exército Zapatista de Libertação Nacional (EZLN) significou, na realidade, muito mais do que a simples proposição luta armada/tomada do poder de Estado, sendo essa dualidade vista, em grande parte da historiografia da esquerda revolucionária, como a única forma de encontrarmos no fim da linha o ideal, muitas vezes profético, do intitulado socialismo.
De qualquer forma, é difícil dizer o que se passa realmente em um país quando a mídia, como a que temos no Brasil, só abre espaço em seus noticiários quando algo de explosivo e passível de sensacionalismo surge dos escondidos povos planetários. Poucas vezes se viu os zapatistas nas telas da televisão brasileira e também nos jornais diários e revistas semanais. O jornalismo não consegue, ou não quer, considerar "quente" o meio do acontecimento, o que é processual e realmente vivo no subterrâneo das notícias.
A Internet, apesar de ser criticada por muitos puristas de carteirinha (algumas críticas até corretas) tem muito a acrescentar a essa mídia estereotipada, pois na rede mundial de computadores é possível se conectar e romper com verdades consideradas absolutas e supostamente insubstituíveis, o que facilita em demasia o clarear de acontecimentos obstaculizados pelo processo midiático dominante.
Poucos brasileiros sabem, mas não foram poucos os acontecimentos que se sucederam por lá, revelando algo de novo, sem desconsiderar o passado, para podermos pensar na contramão de um já desgastante processo ortodoxo e tradicional de agir politicamente. Os zapatistas mostraram, e continuam a mostrar até hoje, que tal dinâmica pode se inscrever em um ininterrupto processo criativo e singular de resistir ao inquestionável avanço da intitulada globalização do planeta.
O grito de "ya basta", lançado habilmente por eles na Primeira Declaração da Selva Lacandona, veio a se transformar em uma fala política distinta daquela que estamos acostumados a escutar. É a partir dessa perspectiva, como já proponho no artigo anterior, que inicio aqui um possível diálogo sobre problemáticas contemporâneas, desencadeadas pelos zapatistas, que considero pertinentes para a realidade social não só do México, mas também de países como o Brasil. Entre essas indagações estão:
– O que fazer com o passado, antes da queda do muro de Berlim?
– Como buscar novas formas de se fazer política nesse final de século?
O subcomandante Marcos aponta algumas hipóteses começando pela construção de um diagnóstico rápido, porém preciso, do sistema capitalista contemporâneo: "para aumentar seus lucros, os capitalistas não só recorrem à redução dos custos de produção ou ao aumento dos preços de venda das mercadorias. Isto é certo, mas incompleto. Há pelo menos três formas a mais: uma é o aumento da produtividade; outra é a produção de novas mercadorias; uma mais é a abertura de novos mercados.
A produção de novas mercadorias e a abertura de novos mercados se conseguem agora com a conquista e reconquista de territórios e espaços sociais que antes não tinham interesse ao capital. (...). O capitalismo não tem como destino inevitável sua autodestruição, a menos que inclua o mundo inteiro"(1).
Nesse contexto, como diriam inclusive pensadores como Gilles Deleuze, o capitalismo necessita da produção da miséria e da exclusão, tal qual a riqueza, para poder sobreviver. Nessa cultura da competição, do consumo cada vez mais avassalador e do acúmulo extremado de renda, não há recursos suficientes no planeta terra para incluir todos nas amarras da lógica do mercado.
Apesar desse diagnóstico dos mais sombrios, o EZLN inova ao afirmar que experiências do passado não são necessariamente os remédios mais apropriados para curar os males do presente, pensando teleologicamente em nome de um futuro mais promissor. Diante disso, talvez seja interessante retornar à pergunta: "o que fazer com o passado?"
Para os zapatistas, as experiências anteriores propiciadas, não só pelos movimentos guerrilheiros mexicanos, mas também internacionais, não devem ser jogados fora como se fossem "lixos descartáveis". Por outro lado, não servem mais como modelos paradigmáticos. O EZLN, nessa perspectiva, não se propõe vanguarda e muito menos se reconhece como uma ideologia pronta e acabada.
Diante de todo esse processo extremamente dinâmico, uma das mais relevantes propostas zapatistas, além de muitas outras não menos importantes, como o da autonomia local, é o da criação e do fortalecimento de redes alternativas de informações, idéias e práticas anti-sistêmicas produzidas em diversos cantos do planeta.
Desde o Primeiro Encontro Intercontinental pela Humanidade e contra o Neoliberalismo, organizado pelo EZLN em abril de 1996, eles vêm ressaltando a importância da criação de uma rede global de comunicação, abrindo-se espaços para a conexão de um maior número possível de forças internacionais resistentes, sem que nenhuma delas tenha poder decisório sobre as outras e, muito menos, atue como vanguarda.
Trata-se, nesse instante, de pensarmos no surgimento de micro-movimentos locais que lutem, cada um com sua singularidade, pela ultrapassagem de uma cultura histórica em que, como disse o próprio Marcos, todos os não incluídos na categoria vendedor-comprador seriam os outros, os diferentes. "A aparente infalibilidade da globalização choca com a teimosa desobediência da realidade. Ao mesmo tempo em que o neoliberalismo leva adiante sua guerra mundial, em todo o planeta vão se formando grupos de inconformados, núcleos de rebeldes. O império das bolsas financeiras enfrenta a rebeldia das bolsas de resistências. Sim, bolsas. De todos os tamanhos, de diferentes cores, das formas mais variadas"(2).
Teríamos, então, grupos e movimentos singulares se intercambiando entre si, independentemente de suas origens, lançando a possibilidade de uma nova cartografia do planeta, fazendo emergir inusitadas trocas de experiências para, dessa forma, combater a verticalização hierárquica e muitas vezes autoritária do contexto social em que vivemos atualmente, onde as diferenças são constantemente desrespeitadas e paulatinamente dizimadas ou simplesmente aceitas e toleradas pelo capitalismo e suas entranhas mercadológicas.
Como contraponto ao retorno às fontes das identidades étnicas e nacionais, Edgar Morin acredita em um mundo que busque novas solidariedades, que não obedeça apenas à lógica da "máquina artificial", da ganância pelo lucro e do simples desejo pelo prazer material. O pensador francês propõe ainda o desenvolvimento da humanidade que leve em consideração as "autonomias individuais" e o crescer simultâneo das "participações comunitárias". Para ele, "só quando nos tornarmos verdadeiramente cidadãos do mundo, ou seja, cosmopolitas, é que seremos vigilantes e respeitadores das heranças culturais e compreensíveis face às necessidades de revitalização"(3).
Seriam maneiras distintas de agir no social e no contexto individual no qual o relacionamento do cada um de nós em relação ao outro se tornem, como já nos mostrou Felix Guattari, "a um só tempo solidários e cada vez mais diferentes". Ao ser indagado sobre o vínculo da guerrilha com o mundo, sobretudo através da Internet, Moisés respondeu, na entrevista exclusiva realizada pelo meu grupo durante nossa estadia no México, que em caso de guerra o "mundo vai saber porque exterminaram o zapatismo". A queda do Muro de Berlim, a partir daí, pode servir agora como uma metáfora de outros muros que ainda precisam ser derrubados.
1) Tradução do próprio autor do comunicado publicado no LaJornada, de 15 de dezembro de 2007: "Conferência Marcos I: La Geografia y el Calendário de la Teoria".
2) Ver Di Felice, Massimo & Munôz, Cristobal, "A Revolução Invencível: subcomandante Marcos e o Exército Zapatista de Libertação Nacional – Cartas e Comunicados", ed. Boitempo, São Paulo, 1998.
3) Morin, Edgar e Kern, Anne Brigitte, "Terra-Pátria", Instituto Piaget, Lisboa, Portugal. Pg 99
Guga Dorea é jornalista, sociólogo e educador. Atualmente é pesquisador dos princípios zapatistas no projeto Xojobil.
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Comentários
De um lado, nos abre e confirma a raiz do grande silêncio que a própria esquerda brasileira faz sobre o Movimento zapatista, talvez fruto da pouca importância e certe desdém que dão a esta experiência sui generis e importante.
Mas dse outro lado, também é um alerta para os que se consideram aliados estratégicos do Zapatismo, mas que, e desdta vez atuando como falsas vanguardas, desdenham das outras experiêncvias na América latina Central, as colocando como uma simples volta ao passado do socialismo autoritário, ou populismo Nacional capitalista, quando são, isso sim, resultados conseguidos pelo esforço destes povos se mobilizarem contra o Imperialismo dos EUA.
Abaixo e no entorno da Linha do Equador só sobreviveremos se formos solidários, tolerantes e amplos.
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