Correio da Cidadania

Colômbia: proposta indecente ou real saída da crise?

0
0
0
s2sdefault

 

Entre as questões mais complexas – pelo menos para mim - quando se analisa a situação internacional ou a doméstica de um Estado, qualquer que este seja, está a de realizar prognósticos sobre o decorrer de acontecimentos que caracterizam uma crise. Até porque a palavra crise supõe um certo estado, uma certa situação, onde confluem elementos contraditórios que ameaçam a estabilidade do corpo que a suporta.

 

Contudo, algo parece consensual e necessário na análise: a formulação de que toda crise tem uma saída. Qual é? Como se formula? Que deve ser priorizado e o que descartado para superá-la?

 

Colômbia: uma crise irreversível?

 

Pois bem, na Colômbia, o governo de Uribe Vélez atravessa sua pior crise institucional. Está em curso uma etapa de desgaste que parece irreversível, tamanho o escândalo ocasionado pela parapolítica, termo com o qual se designa a descoberta de algo que no país já era um segredo a vozes: que os recursos do paramilitarismo, que não são apenas em espécie, mas que incluem logística militar, ameaças a opositores do governo, vínculos concretos com o narcotráfico, sustentaram as campanhas eleitorais do corpo de deputados, senadores, prefeitos, governadores ligados ao governo e, mais ainda, que sustentam a ação do Executivo central e de seus colaboradores imediatos.

 

A questão traz conseqüências de imediato. Por exemplo, no cenário político, velhos aliados internos começam um processo de desprendimento do esquema governamental, tentando se diferenciar do estilo de governo autoritário de Uribe, e querem hoje guardar distância do compromisso com a estratégia paramilitar. Desde os Estados Unidos, setores outrora apoiadores do presidente observam como esse apoio resulta incômodo e altamente negativo: por um lado, pelo isolamento de Uribe em razão da torpeza na sua política externa, especialmente para lidar com os fenômenos novos no continente, e especialmente pela sua incapacidade política, na ótica do grande irmão do norte, para se contrapor a seus vizinhos Chávez e Correa; por outro, porque a política exterior de Bush é questionada eleitoralmente, e não é bom criticar o presidente Bush e, ao mesmo tempo, aparecer apoiando o sr. Uribe, que, por mais amigo que seja, está sendo alvo de denúncias bastante graves.

 

Acontece que, na Colômbia, o senhor Salvatore Mancuso - o reconhecido paramilitar que insiste em dizer, com todas a letras, que o paramilitarismo é uma política de Estado (grande novidade!!!) –, por força de contradições com seus antigos aliados, que somente ele pode explicar, começou a indicar quem vive física e politicamente dos vínculos com os paramilitares, patrocinando a guerra contra os colombianos. Em um dos seus depoimentos, diz que o próprio vice-presidente da Colômbia, Francisco Santos, é um dos articuladores para a criação de um Grupo Paramilitar em Bogotá, a capital do país.

 

Se a crise podia ser contornada, agora está instalada, e ela revela elementos que cobram força e emergem nas contradições e entranhas do poder. A primeira questão é que não é possível interpretar que se trata da queda de uma pessoa, ou seja, a do próprio Uribe, ou do vice-presidente, mas da deterioração de um sistema de condução dos problemas colombianos, no qual há que incluir o fracasso do chamado Plano Patriota, última versão do Plano Colômbia, para acabar com o movimento insurgente; da incapacidade da mídia para encobrir as atividades do presidente e expressar o real interesse da imensa maioria dos colombianos, apesar de que ainda tenta blindá-lo de qualquer forma; da condenação popular à nefasta segurança democrática, que cria um Estado policial; da incapacidade da classe dominante para responder às necessidades e demandas dos colombianos; da crise dos novos partidos de uma oligarquia emergente, auxiliada para tomar o poder pelo esquema paramilitar.

 

Com essa ótica, há que analisar a descoberta de que a DISPOL, divisão da polícia criada em tempos uribistas, se dedica a espionar os telefones de jornalistas, lideranças e opositores políticos. Sem esquecer de que se trata de uma violação aos direitos fundamentais, à vida privada e à intimidade das pessoas, vale lembrar que prática faz parte das recomendações do governo Bush, que são levadas a cabo nos próprios Estados Unidos. Esta é uma versão “colombianizada” do desrespeito e ausência de limites para ferir as liberdades públicas, justificada com a conhecida tese das razões de Estado.

 

Não é possível, como aliás pretende o governo, dizer que “também os paramilitares estão sendo espionados”, porque, levando em conta os ritmos de tempo, o que ficou claro é que Uribe se escandalizou somente após se descobrir que os paramilitares também estavam interceptados. A pressão sobre o governo foi arrasadora e, por que não dizer, justa. Ao final, Uribe tem que controlar quem se intercepta, pois recebe informes, e uma coisa é espionar as lideranças do Pólo Democrático Independente ou do Partido Comunista e outra, espionar seus caríssimos amigos do paramilitarismo. Como é lógico, seus amigos ficaram muito bravos.

 

Uribe: o que fazer?

 

Bom, surge então para Uribe a incógnita: o que fazer?

 

Primeiro, para purgar as doenças e acalmar a opinião pública, o governo destituiu 15 oficiais da polícia. Contudo, vale dizer, os que devem responder não respondem, fazem-se de desentendidos o ministro da Defesa e o próprio presidente.

 

Diante da crise, as primeiras reações de Uribe foram tão agressivas, quanto atrapalhadas, irresponsáveis e lamentáveis: uma acusação falaz contra os movimentos sociais; mais duas dirigidas contra Carlos Lozano, o advogado e jornalista que há mais de 20 anos contribui na abertura de espaços para a paz; e contra o ex-magistrado da Corte Constitucional e ex-candidato presidencial Carlos Gavíria Diaz, sempre manifestando que todos são auxiliares da guerrilha .

 

Depois, com as investigações promovidas pela Corte Suprema, perdido nos seus ares de grandeza, surgiu a iniciativa presidencial, tentando desviar a atenção nacional e internacional, de que os prisioneiros políticos do movimento insurgente se acolham à reinserção, segunda etapa da Lei de Justiça e Paz. Propôs, descaradamente, a ‘ex-carcelação’, entenda-se a impunidade, para os beneficiados do paramilitarismo que relatem a verdade.

 

A troca humanitária de prisioneiros, proposta pelo movimento insurgente, ficaria a ver navios nessa situação, alargando o drama dos seqüestrados. É completamente falso que a ‘ex-carcelação’ conduza à paz, ou seja um aporte à paz na Colômbia. Como se sabe, a estratégia presidencial é fechar qualquer espaço de negociação, e, nessas condições, teremos fatos, mas não processo de paz. Agora, é claro, colocando a ‘ex-carcelação’ de guerrilheiros no bojo, aparece tudo confuso, dúbio, especialmente no contexto internacional. Quer dizer, desde a ótica presidencial, liberamos paramilitares e guerrilheiros e estou pela paz, fazendo esse gesto.

 

Guerrilha e Paramilitarismo: estratégia é igualar tudo

 

Não se distingue algo que é fundamental: a natureza do movimento guerrilheiro é substancialmente distinta da natureza do paramilitarismo. A origem e objetivos são diferentes. Enquanto o paramilitarismo é fruto da estratégia de terror impulsionada pelo Estado e que se entronca, em um momento determinado da história da Colômbia, com os cartéis do narcotráfico, a guerrilha responde a uma contestação armada contra um Estado que sistematicamente nega a participação política e as condições mínimas de existência a setores do povo colombiano.

 

Com isso, não se pretende dizer que a guerrilha seja um fenômeno conforme a lei. Pelo contrário, a essência do acionar militar guerrilheiro é atacar o Estado, por isso agem contra o exército colombiano e têm como objetivo militar a institucionalidade estatal, que pretendem tomar para, conforme seu programa e declarações, institucionalizar um novo modelo de Estado. Agora bem, o paramilitarismo foi criado pelo Estado para atacar covardemente o povo e não necessariamente a guerrilha: o povo comprometido, no seu dia a dia, com a construção de um novo país, ou seja, aquele desarmado, que, através do movimento social, se vincula organizadamente à contestação diante do cerceamento do direito à vida e às liberdades públicas. Aquele que saiu às ruas nos dias 23 e 30 de maio a protestar, como há mais de 15 anos não se observava, contra o descaso do governo com a educação.

 

A proposta, como já tem sido reconhecido por amplíssimos setores da opinião pública, somente favorece os “amigos” do presidente, cabe dizer, os acusados pelas declarações do paramilitar Mancuso de receber recursos do narcotráfico e do paramilitarismo, que são aliados do presidente.

 

Simultaneamente, a idéia de penas a serem cumpridas em colônias agrícolas apenas aumenta a sensação de impunidade. E há que dizer que as coisas não estão fáceis para o presidente: além da vice-presidência e de organizações públicas e privadas estarem sendo investigadas, também seu primo, o senador Mário Uribe, aparece na lista dos investigados pela Corte Suprema de Justiça.

 

Contra o Estado de Direito: uma proposta indecente

 

A proposta de Uribe é favorecer em troca da verdade, quando a única verdade é que, com tamanha impunidade, some de vez o Estado de Direito colombiano, afunda-se o país na certeza de que podem ser cometidos - como durante décadas realizaram e realizam os grupos paramilitares - os mais horrendos crimes contra a humanidade. Na Colômbia, nada acontecerá enquanto a Corte Suprema da Justiça e a Procuradoria ficarem à mercê da proposta do Executivo.

 

O propósito com a indecente proposta é de algum modo interferir no curso das investigações, distorcer verdades e corrigir aquilo que possa conduzir a uma proximidade maior da justiça, contra o presidente.

 

Razão assiste a Maria Jimena Duzán em El Tiempo – jornal diário colombiano - do dia 28 de maio: “a proposta presidencial parte da base de uma pré-concepção, a de que os colaboradores dos paramilitares o fazem sob coação das AUC (Autodefesas Unidas da Colômbia, o grupo paramilitar culpável pela morte de centenas de dezenas de pessoas em exercício na cruzada contra-insurgente), ou seja, que são suas vítimas e nunca seus cúmplices, como aponta a promotoria. Isso faz com que a proposta de Uribe seja mentirosa, falaz. A generalização deixa claro que a iniciativa de Uribe é um tapa na Justiça. O pior é que o presidente diz isso sem que se note no seu semblante nem sequer um ápice de vergonha”.

 

Sob todas as luzes, a saída da crise não está nas mãos do Uribe, muito menos em uma oligarquia que o tolera ou tolerava. Ao paramilitarismo, castigo!

 

A saída é, mais uma vez, a criação de um arco de forças em prol da paz e da democracia, do fortalecimento de alternativas reais de poder, que conduzam a Colômbia a novos caminhos de desenvolvimento. A solidariedade internacional nesse momento é fundamental para esse avanço.

 

 

Pietro Lora Alarcón é professor da PUC/SP, representante no Brasil do Comitê Permanente da Colômbia pela Defesa dos Direitos Humanos.

 

Para comentar este artigo, clique {ln:comente 'aqui}.

 

0
0
0
s2sdefault