Chile e o Estado invisível
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- Ramón Rocha Monroy
- 09/03/2010
O terremoto tinha destruído as cidades; 45 minutos depois, uma onda imensa se abateu sobre os sobreviventes e acabou com eles e seus pertences. Na ilha Juan Fernandez não se sentiu o tremor, e as pessoas dormiam em paz na baía de Cumberland – San Juan Bautista era um povoado de pescadores e cabanas solitárias -, quando uma enorme onda com mais de 60 km/h de velocidade abriu seus feixes e tragou essa pequena população. Um pescador agachado, velho, buscava no lodo o cadáver do seu neto.
Ao fim, encontrou um gorrinho da criança e chorava desconsoladamente. "O lado material não me importa porque vou continuar trabalhando, mas perdi meu menino", repetia, chorando. A topografia desses lindos balneários destruídos mostra as origens pré-hispânicas de todos esses povos de nomes rumorosos e eufônicos. Em um deles, o terremoto e o tsunami destruíram o cemitério, abriram as tumbas e misturaram restos num horror que nem Goya poderia imaginar. Os sobreviventes tapavam o nariz porque o odor já tinha tomado conta de todo o povoado destruído.
Entre o sismo e o tsunami houve 45 minutos, nos quais a Armada poderia ter prevenido a população, mas não o fez. Assim se queixava o prefeito de Juan Bautista, na baía de Cumberland, tremendo de indignação. Como tinham se esquecido de preveni-los se eles não haviam sentido o terremoto? Mas até as pessoas que sofreram o sismo no continente não tiveram avisos das Forças Armadas, que não pôde salvar nada; o mar engoliu esses povoados.
Faz muitos dias que vejo incessantemente o canal chileno, porque me dói comprovar que todos os oprimidos do mundo têm o mesmo rosto. Essas feições de impotência, desolação, nos aproximam e irmanam.
Tenho, além do mais, um motivo pessoal para acompanhar a dor do povo chileno, pois meu avô Monroy era dessa nacionalidade. E então penso em algo mais além do visível: o Estado invisível. Invisível para o serviço, para a atenção oportuna, para remediar o desastre, para receber e distribuir doações de solidariedade, mas sempre prestativo para a repressão, a lentidão da burocracia e a alienação frente à dor da população.
O canal chileno ao qual tenho acesso só mostra a classe média; não chega aos bairros periféricos. A ministra do ramo diz que as famílias prejudicadas devem entrar com processos contra as empresas construtoras que lhes venderam apartamentos mal construídos: é um pleito entre particulares.
Por isso não diz nada sobre os despossuídos, não fala dos planos de moradia nem outras formas de assistência. Mesmo assim, é honesto reconhecer que o desastre foi tão grande que desvelou a inépcia deste Estado aparentemente tão poderoso.
Em compensação, o que não se pode ocultar é a desarticulação do povo chileno. A classe média se organiza para proteger seus pertences e disparar a esmo, mas os oprimidos só se juntam para saquear.
A tragédia começou há 40 anos, e o poderoso movimento operário chileno nunca mais levantou a cabeça. Talvez me equivoque, mas ali não há movimentos sociais, não há centrais e não há federações. Cada chileno é um átomo isolado dos demais frente à sólida estrutura de poder deixada pelo pinochetismo de ontem e de hoje.
Em poucos dias assumirá o novo presidente, Sebastián Piñera, de direita e neoliberal ao extremo. O neoliberalismo é o contrário de Noé, por isso em nenhuma parte se viu uma Arca que salve esse povo chileno esmagado pelo furor da natureza. Virá Piñera e dará subsídios? Construirá moradias sociais? Reparará a economia dos pobres? Ajudará os pescadores, os pequenos produtores e pequenos comerciantes?
Isso não coincide com seus princípios. Se a fúria de Deus se abateu sobre eles, que acabe com eles. Para isso, Deus criou também essa ‘chilenidade’ burguesa, satisfeita, altaneira, que odeia o pobre e mais ainda o indígena, de costas para a América Latina, para os vizinhos mais próximos: Argentina, Bolívia e Peru. Piñera governará para eles e o povo chileno terá de acumular forças para a reconstrução sem ajuda de ninguém, na mais profunda solidão.
Talvez seja essa a oportunidade de ouro para reorganizar os movimentos sociais, para rearticular os trabalhadores, para reviver o movimento indígena e as reivindicações dos oprimidos, que jamais desfrutaram da suposta opulência do neoliberalismo.
Me dói, me dá raiva e me faz mijar de rir ler esses comentaristas bolivianos que não dissimulam seu júbilo ante o triunfo da direita chilena. "Esse é o caminho! Esse é um grande país! Eles farão ótimos negócios, enquanto nós nos distraímos com cerimônias chatíssimas em Tiwanaku."
Então, penso na solidez orgânica do povo boliviano, em suas centrais e confederações, em seu poderoso movimento indígena, em sua vontade e mentalidade coletivas, e me alegro de ser boliviano. O Chile era assim.
O Chile de Allende era um povo orgulhoso e organizado. Chegaram os quatro cavaleiros do apocalipse e destruíram as organizações sindicais e sociais. Voltou a democracia cúmplice com a estrutura de poder pinochetista, nunca houve mudança de estruturas e nem o movimento popular voltou a levantar a cabeça.
Tomara que essa tremenda desgraça seja também a hora zero da rearticulação, da reorganização e da emancipação do povo chileno.
Ramón Rocha Monroy é escritor e publicou os romances Qué solos se quedan los muertos! - Vida de Antonio José de Sucre, Potosí 1600 (Premio Alfaguara 2001), Ladies Night, La Casilla Vacía, Ando volando bajo (Premio Guttentag 1994), El run run de la calavera (Premio Guttentag 1983), Allá Lejos. Também é crítico de cinema.
Traduzido por Gabriel Brito, jornalista, Correio da Cidadania.
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