O golpe no Paraguai e o Mercosul (2)
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- Osvaldo Coggiola
- 13/09/2012
A decisão de suspender o Paraguai do Mercosul foi puramente burocrática, porque ao mesmo tempo Lugo foi excluído da reunião do bloco em Mendoza, onde sua presença teria sido um fator de crise internacional. A suspensão, por outro lado, tem data de vencimento em abril de 2013, quando haverá eleições no Paraguai. O ingresso de Venezuela ficaria questionado depois dessas eleições (e deveria ser objeto de novas negociações, já que a estrutura alfandegária da Venezuela é incompatível com a do Mercosul). Os golpistas paraguaios foram assim proscritos por oito meses, e legalizados depois dessa data. Publicamente, o governo brasileiro evitou até mesmo utilizar o termo “golpe” e indicou que defenderia apenas sanções simbólicas ao novo governo, que não afetassem economicamente o país. Tudo indica que o próximo presidente paraguaio será um colorado, agente dos latifundiários e da Igreja. Colorados e liberais dividiram os cargos do gabinete atual com vistas às eleições. Lugo afirmou estar estudando a possibilidade de ser candidato (à presidência ou ao Senado). A condenação formal do golpe oculta o reconhecimento antecipado do futuro governo oriundo do mesmo golpe.
Contemporaneamente ao impeachment de Lugo, os chefes de Estado do Mercosul, reunidos em Mendoza (Argentina), aproveitaram a deixa para incorporar a Venezuela (incorporação solicitada há tempos, e bloqueada, justamente, pelo parlamento paraguaio), no que alguns comentaristas viram um “golpe de mestre” (já que de golpes se trata) que transformaria o tratado de 1991 no “mais importante projeto geopolítico tentado em nosso continente desde o tempos da Grã Colômbia”, a “Grande Aliança do Atlântico”. O Mercosul passa a somar PIBs de 3,3 trilhões de dólares e a abranger 72% da América do Sul. “Considerando os quatro países mais ricos do mundo, Estados Unidos, China, Alemanha e Japão, o Mercosul somado é a quinta força”, disse Dilma Rousseff, demonstrando seus conhecimentos matemáticos (mas não econômicos). O ingresso da Venezuela poderia ser interessante para os países do bloco se permitisse acordos bilaterais, de intercâmbio de energia, com base em preços inferiores aos internacionais, investimentos industriais em ampla escala, com créditos baratos e de longo prazo. Isso é uma perspectiva fora do alcance das burguesias nacionais, pelas suas rivalidades (incapacidade de planificação) e pela pressão do capital financeiro internacional.
A entrada da Venezuela ano Mercosul, por outro lado, carece de sustentação legal pela não aprovação paraguaia. A manobra limita-se a ampliar o campo de contradições no bloco, já manifestas nas divisões sobre este ponto entre os governos do Brasil e Uruguai (Danilo Astori, vice-presidente uruguaio, declarou que o ingresso da Venezuela foi “um golpe” acordado entre Argentina e Brasil, no último momento). O operativo foi saudado pela burguesia industrial brasileira, que vê no mercado venezuelano uma saída parcial para sua própria crise, mas também provocou imediatas reclamações da frágil indústria venezuelana, o que preanuncia um longo processo de negociações para que a entrada da Venezuela se concretize. O ingresso da Venezuela no Mercosul buscaria, segundo a diplomacia brasileira, que o bloco ampliasse a base de operação comercial da burguesia paulista: a Venezuela é um forte importador de produtos agroindustriais brasileiros, que antigamente provinham dos EUA e Europa.
Por isso a burguesia brasileira festejou: “A CNI (Confederação Nacional da Indústria) avaliou que a chegada dos venezuelanos ao bloco "amplia a importância econômica do Mercosul e abre oportunidades promissoras de negócios e investimentos para a indústria do Brasil e dos demais países do bloco econômico". Além disso, "cria perspectivas positivas para acelerar os investimentos brasileiros e o intercâmbio de produtos industrializados e recursos energéticos entre Brasil e Venezuela". A burguesia venezuelana protestou, requerendo proteger a produção industrial que seria varrida pela oferta brasileira e até argentina (haveria uma “deterioração da produção nacional”, segundo nota da câmara patronal). “A Venezuela terá uma lista de artigos sensíveis para serem excluídos dos processos de isenção fiscal ou concessão de um prazo maior”, teve que declarar o governo Chávez. As comissões técnicas de Venezuela e do Mercosul não concordaram sobre a questão tarifária. O problema central é se PDVSA e Petrobrás poderiam entrar em acordo, já que existem fortes contratos entre essas empresas com o capital petroleiro internacional.
A proposta de incorporar também Equador e Bolívia poderia levar a tensões ainda mais profundas, com os antecedentes da expulsão desses países de empresas brasileiras e argentinas e do repúdio popular ao expansionismo brasileiro no passado recente. Por trás desses choques políticos está a crise do Mercosul, sob os efeitos da crise mundial. A perspectiva de um eixo Brasil-Argentina está afetada pelo enfrentamento comercial entre ambos os países. O “dirigismo” argentino, e os entraves ao comércio com o Brasil, foram derrubando o bloco. A indústria brasileira está em retrocesso e enfrenta a concorrência chinesa. A Argentina propôs um acordo comercial com a China – seu principal cliente de soja – rejeitado pelo Brasil, que receberia um golpe nas suas exportações. O Brasil também se divide: a indústria militar norte-americana chegou a acordos com construtoras bélicas brasileiras, resistidos pela indústria do país, a indústria militar europeia e parte do governo do PT, mas com apoio da oposição. O Mercosul se desagrega pelo impacto da crise mundial. O comércio entre seus membros, que chegou a representar 25% do comércio internacional total do bloco em 1998, caiu pela metade na crise argentina de 2002, e só chegou a 15% em 2011.
O Mercosul só aplicou uma sanção simbólica ao suspender o Paraguai da participação das instâncias de decisão do bloco. Não aprovou nenhuma sanção econômica. Um dia antes da cúpula que suspendeu o Paraguai, o Mercosul entregou US$ 66 milhões do Fundo de Convergência Estrutural do Mercosul (FOCEM) ao governo golpista de Franco. Nem precisa dizer que os “democráticos” e “nacionalistas” governos de Rousseff e Kirchner continuam e pretendem continuar espoliando os recursos energéticos paraguaios. A capitulação de Lugo, chamando as massas a não mobilizar-se contra o golpe, complementou-se com a completa impotência do Mercosul e da Unasul, que se limitaram a uma condenação formal até as eleições de abril do próximo ano. Os governos “progressistas”, nacionalistas ou de conciliação de classes utilizam a “denúncia” do golpe contra Lugo para agitar a ideia de um suposto perigo de “golpes da direita” contra eles. O Fórum de São Paulo (não governamental, mas de partidos “de esquerda”) se reuniu em Caracas alertando para "ameaças" à democracia, não chamando para uma mobilização continental contra o golpismo e o imperialismo. Também se pronunciou a “Aliança Bolivariana para os Povos da Nossa América” (ALBA), caracterizando o processo como um “ato de desestabilização do histórico processo de transformação do país...”.
Desestabilização? Os EUA estão negociando a instalação de uma base militar no Chaco paraguaio (como se está fazendo no Chaco argentino). Não é caso isolado: os EUA reativaram a IV Frota, do Atlântico Sul, criada durante a II Guerra Mundial, desativada em 1953 e novamente ativada durante o governo de George W. Bush. A Unasul, por sua vez, é um projeto da burguesia paulista, que depende da energia de Itaipu. A Rio Tinto, assim como a presença dos EUA no Paraguai, são fatores de desestabilização para o Brasil, e um fator de choque com a burguesia brasileira. As tendências que dividem o Mercosul e a Unasul não se limitam a uma “guerra comercial”. Canadá, como já dito, e Alemanha foram os primeiros países em reconhecer o governo golpista paraguaio de Franco, e o embaixador norte-americano visitou o golpista Federico Franco um pouco antes do golpe. O secretário-geral da OEA (José Miguel Insulza), depois de acolher denúncia formal, impetrada pelos governos da Bolívia, Nicarágua e Venezuela em seu Conselho Permanente, acusando a ocorrência de um “golpe de Estado encoberto”, emitiu o relatório resultante de uma missão, propondo uma atitude passiva diante do golpe, sob o argumento de não prejudicar “a corrente situação de estabilidade econômica, social e política” que o Paraguai desfruta...
O Paraguai concentra as contradições políticas explosivas de toda a região. A Tríplice Fronteira (região fronteiriça entre Argentina, Brasil e Paraguai) é o ponto central que interliga a região mais densamente povoada e industrializada do subcontinente, além do potencial hídrico e energético guardado pelo Aquífero Guarani, pelas cataratas do Iguaçu e pela Usina de Itaipu. O que ocorreu desnudou a impotência e a cumplicidade das burguesias latino-americanas frente ao golpe (no México, o governo qualificou o golpe de perfeitamente legal) e à penetração imperialista; sua conspiração para evitar a mobilização das massas deixa colocada claramente as tarefas da esquerda não somente no Paraguai, mas em toda a América Latina. Em primeiro lugar, a mobilização das massas, especialmente o movimento camponês, de forma independente da burguesia. A unidade da América Latina somente poderá ser o resultado da derrubada da burguesia e realizando a unidade socialista da América Latina.
Os governos bolivarianos (ALBA) se vangloriam de uma suposta integração sem precedentes na história continental, mas seu palavrório carece de substância, como o demonstra o retrocesso persistente do Mercosul, embrenhado em disputas comerciais em plena crise mundial. O propósito deste bloco foi o de negociar uma maior integração ao mercado mundial de seus países, o que concluiu em fracasso (só foi firmado um acordo de livre comércio... com Israel). Brasil e Argentina incorporaram Venezuela, uma medida sem conteúdo: a postulada integração energética do bloco é uma ilusão. O primeiro negócio fechado foi a venda de seis jatos modelo 190, por US$ 270 milhões, pela Embraer (Empresa Brasileira de Aeronáutica) para o Conviasa (Consórcio Venezuelano de Indústrias Aeronáuticas). O contrato prevê ainda a opção de compra pela estatal venezuelana de mais 14 aeronaves, chegando a um preço total de US$ 900 milhões. A Unasul é um meio de expansão da indústria brasileira. Chávez também anunciou a intenção de empresas, como a General Motors, Samsung, Yamaha e Renault, se instalarem no país. O jornalista “argentino” Andrés Oppenheimer comentou no The Miami Herald: “Se há algum vencedor no ingresso da Venezuela no Mercosul, é o Brasil. E, em menor grau, a Argentina. Ambos poderão vender alimentos e produtos manufaturados à Venezuela com tarifas preferenciais”.
A pretensão inicial de que os países da América Latina não fossem afetados pela crise internacional tem também se demonstrado ilusória. As crises mundiais apresentam uma oportunidade para os países de desenvolvimento atrasado, porém, para isso é necessária uma política independente da burguesia nacional, obrigada a atuar sob a pressão da crise em função de sua dependência do capital internacional. Inclusive agora têm se levantado vozes oficiais que advertem acerca da necessidade e oportunidade de empreender uma grande “integração latino-americana” como resposta à crise em uma escala histórica. Porém, são frases no vazio, porque, mais que nunca, as economias da América Latina dependem de um punhado de matérias-primas, agrícolas e minerais. A integração latino-americana, especialmente propiciada pelo Brasil, reflete os interesses das grandes empreiteiras de obras de infraestrutura, vinculadas aos investimentos de capitais mineiros internacionais e em estreita relação com o capital de maquinário pesado dos EUA (Caterpillar).
O grande mercado atual desses produtos é a China, não a Inglaterra (como no passado), porém a China não é alheia à crise mundial, nem é menos incapaz de impulsionar um desenvolvimento nacional autônomo diante do imperialismo. Longe de uma maior integração, são as guerras comerciais que caracterizam o Mercosul, guerras que desarticulam as relações em toda a região e que são o resultado da crise capitalista, em que cada burguesia nacional pretende atenuar seus efeitos descarregando-a sobre seus competidores. A “unidade da América Latina” transforma-se em um discurso demagógico, ou revelador das pretensões expansionistas de alguma burguesia local ou do imperialismo. Confrontados com a crise capitalista, os regimes centro-esquerdistas e nacionalistas que emergiram nos últimos anos na região têm mostrado sua impotência e seu fracasso. Como ocorre em todo o mundo, também na América Latina a crise capitalista abala os regimes políticos comovidos pelas crises fiscais.
As burguesias nacionais da América Latina dilapidaram as possibilidades oferecidas pela crise mundial para desenvolver as forças produtivas nacionais, ao ponto de o Mercosul retroceder de modo sistemático, em vez de agir como muro de proteção contra a crise capitalista. Ficou acentuada a dependência da América Latina em relação aos Estados imperialistas, que descarregaram a crise sobre o continente mediante a desvalorização do dólar e o subsídio ao capital bancário. A saturação do mercado chinês provoca a queda dos preços internacionais dos minerais; a cotação do petróleo, com a recessão mundial, ficou condicionada à ameaça de uma guerra imperialista contra o Irã; a alta persistente dos produtos agrícolas ameaça provocar uma gigantesca crise alimentar mundial, com poucas vantagens para os países exportadores, afetados pela carestia interna e pela ausência de proteção industrial.
Os altos preços das commodities foram usados para paliar a miséria social com planos assistencialistas e para uma acumulação parasita de reservas internacionais, um aspecto da especulação internacional, pois foi evitada a nacionalização do comércio externo e do sistema financeiro. Em vez de acumular recursos produtivos, a América Latina experimentou a maior saída de capitais de sua história. Na Venezuela, o petróleo se encontra formalmente nacionalizado, mas a PDVSA registra uma crise de custos e de endividamento, que a torna dependente de acordos de participação com os monopólios internacionais para explorar a Bacia do Orinoco (a Venezuela tem as maiores reservas do mundo, segundo a OPEP). A Venezuela sofreu, sob Chávez, um retrocesso industrial importante (dissimulado pela renda diferencial petroleira do país) e atualmente importa 70% de suas necessidades alimentares (!).
Os nacionalistas latino-americanos contemporâneos são conscientes do impacto demolidor da crise mundial sobre suas bases políticas. Apresentam-se como contrários às políticas de ajuste, e até como anticapitalistas (Chávez). Realizam expropriações isoladas e um intervencionismo econômico sui generis, tolerado pela burguesia como recurso episódico, assim encobrindo ideologicamente a arregimentação do movimento operário e popular, supostamente obrigados a apoiar o “projeto nacional”. As limitações da política nacionalista determinam o campo de disputa do poder político pela esquerda marxista frente ao nacionalismo. Essas limitações se manifestaram claramente na política seguida pelos países do Mercosul diante do Paraguai, e encorajaram o golpe parlamentar propiciado pelo imperialismo (norte-americano e europeu), que jogou no vácuo deixado pelas misérias do “nacionalismo (explorador) latino-americano” de seus “irmãos”. A luta pela unidade antiimperialista da América Latina exige superar essas limitações, com uma política de classe independente.
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Osvaldo Coggiola, historiador e economista, é professor do departamento de História da USP.