América Central se remilitariza para a "guerra contra as drogas" imposta por Washington
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- Giorgio Truchhi
- 04/10/2012
Em 7 de agosto de 1987, a assinatura do “Acordo de Esquipulas II” pelos presidentes da Guatemala, de El Salvador, de Honduras, da Nicarágua e da Costa Rica, marcou o início de um processo que levou ao fim dos conflitos armados internos. As guerras civis centro-americanas aconteceram no contexto de Guerra Fria e deixaram um saldo de centenas de milhares de vítimas na região.
Esse histórico evento não apenas mostrou, pela primeira vez, um distanciamento dos governos centro-americanos em relação às políticas belicosas das superpotências da época – Estados Unidos e União Soviética –, mas também um despertar para o caminho da pacificação e da desmilitarização da América Central, por meio de uma redução drástica das forças militares e dos armamentos.
Vinte e cinco anos depois, essa mesma região está sendo sacudida por uma onda de violência sem precedentes. O avanço do crime organizado relacionado ao narcotráfico, aliado aos altos índices de pobreza que afetam a grande maioria da população, transformaram os países centro-americanos em corredores do tráfico de drogas para os EUA.
Em muitos casos, as instituições estão contaminadas pelos cartéis da droga e pelos grupos criminosos, esgotando de maneira significativa a já fraca institucionalidade democrática que, com dificuldade, vinha sendo construída no pós-guerra.
Uma situação muito complicada, sobretudo para os países do Triângulo Norte (Guatemala, El Salvador e Honduras), que atingiram índices de violência e criminalidade entre os mais altos em nível mundial e uma taxa de homicídios que supera a de vários países em guerra.
Segundo William Brownfield, secretário adjunto de Estado para Assuntos Internacionais de Narcóticos, hoje em dia a maior ameaça para os EUA está na América Central, “onde os traficantes e gangues criminosas facilitam o fluxo de até 95% de toda a cocaína que chega” ao território norte-americano. O departamento de Estado dos EUA assegura que mais de 70% desta quantidade transita por Honduras.
Diante desse cenário preocupante e com o objetivo declarado de combater os danos causados pelo tráfico, os EUA voltaram novamente seu olhar em direção à América Central. Por um lado, fomentaram e impulsionaram sua presença militar, o trabalho de inteligência, a capacidade das forças de segurança nacionais, assim como a implementação de técnicas e tecnologia militar de ponta aplicadas a novas táticas de guerra.
Os principais instrumentos dessa nova estratégia de guerra têm sido a Associação de Segurança Cidadã da América Central, lançada pelo presidente Barack Obama em 2011 durante sua visita a El Salvador, e a CARSI (Iniciativa Regional de Segurança para a América Central), a versão centro-americana da Iniciativa Mérida e do Plano Colômbia).
De fato, trata-se da principal estrutura de aplicação e de financiamento dos Estados Unidos na região, com a qual pretende coordenar os países da América Central com instituições financeiras internacionais, o setor privado, a sociedade civil e o SICA (Sistema de Integração Centro-Americano) “para formar, profissionalizar e dotar as forças de segurança dos Estados”, assim como apoiar no combate direto ao narcotráfico, sublinha Brownfield.
Remilitarização
Durante sua visita a Honduras, em março do ano em curso, o vice-presidente dos EUA, Joe Biden, acompanhado pelo diretor para Assuntos do Hemisfério Ocidental do Conselho de Segurança Nacional, Dan Restrepo, disse que, apesar da crise econômica, seu país manteria os compromissos assumidos com a região.
Segundo dados do Departamento de Estado, entre 2008 e 2012, a ajuda financeira anual que Washington destinou à região centro-americana para a luta contra o narcotráfico aumentou 75%, alcançando um total de 496 milhões de dólares. Para 2013, a administração Obama solicitou ao Congresso a aprovação de uma nova parcela de 107 milhões.
Um relatório do SIPRI (Instituto Internacional de Investigação da Paz) mostra que, em 2011, a América Central e o Caribe totalizaram um gasto militar conjunto de sete bilhões de dólares, 2,7% a mais que no ano anterior. O terceiro país com maior crescimento foi a Guatemala, com 7,1%. Na liderança dos países que mais investem no setor bélico no mundo continuam os EUA, com 771 bilhões em 2011.
A Guatemala, com o apoio econômico e técnico dos EUA, criará uma força militar para combater o narcotráfico no Oceano Pacífico e na região de San Marcos, fronteiriça com o México. Honduras está fazendo o mesmo com a criação da nova força de segurança Tigres (Tropas de Inteligência e Grupos de Resposta Especial de Segurança). Enquanto isso, os governos do Triângulo Norte, em parceria com o governo norte-americano e com a participação de outros países da América Latina e da Europa, lançaram a “Operação Martillo”, um esforço multinacional que faz parte da nova estratégia de segurança regional do governo norte-americano e da CARSI para combater o crime organizado transnacional.
O Instituto Internacional para Estudos Estratégicos (International Institute for Strategic Studies) registrou que, entre os anos 2009 e 2012, houve um aumento de quase dois mil efetivos nas forças militares da Guatamala e de El Salvador, e se espera fazer o mesmo em Honduras nos próximos anos. Esse crescimento foi menor no restante dos países da região.
Da mesma forma, o Atlas Comparativo da Defesa na América Latina e no Caribe (2010), elaborado pela RESDAL (Rede de Segurança e Defesa da América Latina), evidencia que, de 2006 a 2012, El Salvador passou por um crescimento de quase 20% em seu orçamento de defesa, a Guatemala fez isso em quase 16%, Nicarágua, 9%, enquanto que, em Honduras, o aumento foi de 64%.
No caso particular de Honduras, durante 2011, o Pentágono aumentou seu gasto militar no país em 71% em relação ao ano anterior. Apesar da grave crise econômica, político-institucional e social que acometeu Honduras desde o golpe de Estado de 2009 e das repetidas denúncias de corrupção, de violação de direitos humanos e de aproximação com o crime organizado dirigidas à Polícia Nacional, os EUA contribuíram com 53,8 milhões de dólares e preveem continuar com seus programas.
Ainda que não contem com um exército, mas sim com forças de segurança fortemente militarizadas, Panamá e Costa Rica não ficaram atrás nessa corrida armamentista. Segundo Roberto Cajina, membro da Junta Diretiva de RESDAL, esse processo de remilitarização se expressa de diferentes formas, como, por exemplo, com a aquisição de novo armamento aéreo, naval e terrestre, e também através da maciça presença de efetivos militares e de equipamentos navais, terrestres e aéreos norte-americanos, e a solicitação de instituições do Estado, como é o caso da Costa Rica.
Em 2010, o Congresso da Costa Rica autorizou a chegada de 46 navios de guerra e de sete mil tropas norte-americanas às costas costarriquenhas para realizar operações militares, missões anti-tráfico e supostas ações humanitárias na região. Em julho deste ano, os deputados autorizaram a entrada, atraque, desembarque e permanência do navio de guerra USS Elrod em suas águas.
A Nicarágua manteve um perfil baixo e uma quantidade escassa de informações acerca da gestão e uso de seu orçamento anual, assim como do investimento militar executado. No entanto, graças ao apoio do governo sandinista e de seus deputados, conseguiu importantes modificações em sua base jurídica mediante aprovação de leis que outorgam importantes cotas de poder e novos e maiores espaços de autonomia.
Militarização da segurança pública
Outro elemento destacado por Cajina é a crescente participação dos exércitos na “guerra contra as drogas” mencionada anteriormente, que “está conduzindo à militarização das polícias e à 'policialização' dos exércitos”. De fato, nos países do Triângulo Norte, legislou-se para que os militares cumpram tarefas de ordem pública. “Pouco a pouco vai desaparecendo a fina linha vermelha que separa Defesa Nacional e Segurança Pública, uma ameaça emergente real aos fracos processos de construção da institucionalidade democrática na América Central”, diz Cajina.
Com esse propósito, o VI Relatório Centro-americano sobre Direitos Humanos e Conflitividade Social, elaborado por várias instâncias de direitos humanos na região, destaca que a militarização à qual a segurança pública na América Central foi submetida estaria desvirtuando as instituições policiais.
“O próprio fato de deslocar novamente o exército nas cidades centro-americanas não somente não se traduziu na redução dos índices de violência e de criminalidade, como os aumentou, servindo de ferramenta para frear manifestações de origem social contra sistemas opressores que lhes atiram à marginalidade social e à pobreza”, consta no documento final.
Como se isso fosse pouco, é preciso lembrar que, na América Central, existe um verdadeiro exército de agentes de segurança privada. Calcula-se que são quase 70 mil os guardas fortemente armados que trabalham em 717 empresas da região, fazendo parte da nova militarização regional que, além disso, tem matizes muito particulares.
“Na nova organização militar centro-americana pós-anos 90, a maioria dos exércitos tem dirigido seus passos rumo à administração de empresas produtivas ou de serviços. São os novos empresários, os novos investidores, onde o poder militar e o poder econômico do novo liberalismo dos tempos modernos se unem”, assegura a jornalista Dea María Hidalgo.
EUA enviam tropas
A outra cara do processo de remilitarização na América Central é o reposicionamento militar dos EUA. Os norte-americanos voltaram a pisar em solo centro-americano com suas botas militares, mas, desta vez, com novas técnicas e tecnologias.
Depois de ter reativado a IV Frota em 2008, instalado novas bases militares (Ilha Guanaja e Caratasca) e três bases de Operações de Avanzada (Puerto Castilla, El Aguacate e Morocón) em Honduras e reforçado as bases já existentes, os EUA se aprofundam no trabalho de capacitação e treinamento militar de tropas nacionais, intensifica as manobras militares em torno do Canal do Panamá, promove o uso de empreiteiras para as tarefas de resposta rápida e envia fortes contingentes de agentes especial da DEA (Drug Enforcement Administration).
Todd Robinson, subsecretário adjunto no Escritório de Assuntos Narcóticos Internacionais e da Aplicação da Lei, declarou recentemente em uma entrevista à BBC Mundo que não existe uma guerra contra as drogas, mas sim “uma decisão política para ajudar que estes governos protejam seus cidadãos e que nós protejamos os nossos”.
Torna-se cada dia mais evidente que a administração do presidente Obama está impulsionando e desenvolvendo sua fórmula para um novo modo de guerra norte-americano. Segundo o site TomDispatch, nesta segunda década do novo século, é preciso se esquecer das invasões em grande escala como as do passado recente e pensar em “forças de operações especiais que atuam independentemente, mas que também preparam ou combatem junto de militares aliados em pontos sensíveis de todo o mundo”.
Além disso, é preciso esperar um investimento cada vez mais profundo para a “militarização da espionagem e da inteligência, o uso de drones (aviões não-tripulados), assim como o lançamento de ataques cibernéticos e militarizados”, explica o portal.
Trata-se de “operações militares confusas”, isto é, uma espécie de versão organizativa da guerra na qual “um Pentágono dominante funde suas forças com outras agências governamentais, como a CIA (Agência de Inteligência Central), o Departamento de Estado e a DEA, e forças testa-de-ferro estrangeiras, em complexas missões combinadas”.
É uma estratégia que impactou fortemente as populações e que provocou fortes críticas por parte de amplos setores das sociedades centro-americanas. Segundo eles, não somente a luta contra o narcotráfico fracassou e não resolveu os graves problemas relacionados a este fenômeno, como por trás deste processo de remilitarização da região estariam ocultos os verdadeiros objetivos dos EUA e de seus aliados centro-americanos: seu reposicionamento político-militar na região, o controle da exploração dos principais recursos naturais e a criminalização dos protestos sociais, com um muito provável aumento da violência e da repressão.
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Originalmente publicado no Opera Mundi - http://operamundi.uol.com.br/
Giorgio Trucchi é jornalista e vive em Manágua, Honduras.