A atual Guerra do Paraguai
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- Caio Ferretti
- 31/10/2012
Apenas dois quarteirões separam o senador paraguaio Roberto Acevedo da entrada de sua casa. Passa das 18h em Pedro Juan Caballero, cidade do Paraguai que faz fronteira com o território brasileiro, e as ruas já estão escuras. Sentado no banco de trás de uma caminhonete vermelha adesivada com a campanha política do irmão, prefeito da cidade, Acevedo está acompanhado de um segurança e do motorista. Em questão de segundos, um carro ultrapassa velozmente a caminhonete e descarrega uma rajada de balas de fuzil AK-47 e de metralhadora M16.
Por volta de 60 tiros atravessam os vidros e a lataria, sem chance de revide. Motorista e segurança morrem. O senador, verdadeiro alvo, leva apenas dois tiros no braço e sobrevive. O atentado falhou – e o político, que é um dos principais expoentes na luta contra o narcotráfico nas fronteiras do Paraguai, seguiria atuando contra as facções. Trabalho arriscado para um lugar onde organizações criminosas agem na base da bala, autoridades estão corrompidas e plantações de maconha movimentam a economia. E quem financia e comanda tudo isso? Um detalhe na cena do atentado indica a resposta: o carro de onde saíram os tiros que tentaram calar Acevedo tinha placas de São Paulo.
Os disparos contra o senador aconteceram em 2010 e são apenas um exemplo da situação caótica da região leste paraguaia, gigante produtora de Cannabis. A polícia federal estima que entre 80% e 90% de toda a maconha produzida no Paraguai venha direto para o Brasil. Tamanha porcentagem movimenta volumosas quantias de dinheiro e atrai traficantes. Vamos às contas. “Um hectare produz 8 mil plantas de maconha por safra. São cerca de 3 toneladas da droga por hectare. O quilo, na saída da plantação, custa uns US$ 10. Ou seja, 1 hectare rende US$ 30 mil. Como acreditamos que existem em média 6 mil hectares de plantações no Paraguai, são US$ 160 milhões de renda para o crime organizado só nessa primeira fase da negociação. Até o consumidor final, isso se multiplica várias e várias vezes, e o lucro do tráfico passa dos bilhões”.
Quem faz o cálculo é Antônio Celso dos Santos, delegado da polícia federal brasileira instalado na capital paraguaia há dois anos e meio. E o que faz um delegado federal atuando no país vizinho? Ele mesmo explica: “A criminalidade do Paraguai está intimamente interligada à brasileira. Por isso é importante que a gente faça esse trabalho de repressão aqui onde a droga é produzida, em conjunto com a polícia local”.
PCC e CV na chefia
Quando diz que o crime paraguaio está “intimamente interligado” com o brasileiro, Antônio Celso não exagera. São facções do Comando Vermelho e do PCC (Primeiro Comando da Capital) que dominam grande parte do plantio de maconha no leste do Paraguai. Para importar a planta, exportam traficantes. “Sabemos que a maioria da maconha que entra no Brasil é de uma forma ou de outra coordenada, financiada e tudo mais por brasileiros, tanto ligados ao CV quanto ao PCC”, revela o delegado. “As plantações no Paraguai atraem essa massa criminosa”. As organizações perceberam que era muito mais lucrativo pular os intermediários e passaram a investir diretamente na plantação do outro lado da fronteira.
A incursão do narcotráfico brasileiro no Paraguai começou a dar sinais mais evidentes no fim da década de 90, quando Fernandinho Beira-Mar, considerado o chefe do CV, foi para o departamento de Amambay (o país é dividido em departamentos e não em estados). Durante anos ele atuou em parceria com as quadrilhas que comandavam o tráfico na região, mas em 2001 as coisas mudaram. Na época, o clã da família Morel dominava a produção e a exportação da droga. Eram considerados os reis da maconha no Paraguai, mas foram dizimados a mando de Beira-Mar, que tomou conta do negócio. “Depois disso piorou muito. Agora eles vêm para morar, compram fazendas, têm toda uma estrutura e muitos homens. Entre Capitán Bado e Pedro Juan Caballero já tem uns 400 membros desses grandes grupos brasileiros”, estima o senador Acevedo.
Um contingente que já se espalhou e se fixou em terras paraguaias. Investigações da polícia federal brasileira até mapearam os principais redutos dessas facções. A região mais ao norte da fronteira com o Brasil, onde fica Pedro Juan Caballero, é uma área com grande atuação do PCC – não à toa o atentado ao senador Acevedo foi atribuído a essa organização. Um pouco abaixo, na cidade de Capitán Bado, é o Comando Vermelho que dá as cartas. “Se jogasse uma rede nessas regiões de fronteira e pegasse todos os brasileiros, menos quem tem algum comércio legal, vai dar uns 90% de procurados pela polícia”, calcula Antônio Celso. “Uma época eu brinquei com o pessoal do Paraguai dizendo que, se a polícia regional abordasse todos os brasileiros da região de Pedro Juan Caballero, a maioria dos caras do PCC seria presa”.
E não é só a violência, a maconha gera um problema social para o Paraguai. Os pequenos agricultores, campesinos, estão trocando os tradicionais milho e feijão para plantar maconha. “Muita gente está se arriscando nesse mercado”, diz Acevedo. “Mexe com muito dinheiro. Eles compram juízes, policiais e até jornalistas. Tem repórter pago para falar mal de quem apoia o combate, para tirar a credibilidade. Já teve policial paraguaio que foi preso no Brasil transportando maconha. E na política também, os cartéis já elegem deputados, vereadores, prefeitos, governadores... Está virando uma Cidade do México. É que tem muita demanda do Brasil, não é?”
Enxugando gelo
E o que leva os brasileiros a não plantar no Brasil? Acevedo com a palavra: “É uma boa pergunta e que eu sempre me faço. Capitán Bado é a maior produtora de maconha do mundo. Faz fronteira com Coronel Sapucaia, no Brasil. A terra é a mesma, mas na cidade brasileira você não vai encontrar uma só planta. Só pode ser por envolvimento de autoridades”.
Mas essa não é a única razão que favorece. O Paraguai possui gigantescas áreas desabitadas por ter uma população muito pequena – e mal distribuída. São cerca de 6 milhões de habitantes espalhados em 400 mil km², ou seja, 15 vidas por km², mas restritas a alguns centros urbanos. Tanta área ociosa – e despolicializada – colabora para que os traficantes, muitas vezes, plantem em fazendas alheias, sem que os donos fiquem sabendo. E se é fácil plantar lá, mais fácil ainda é trazer para cá. Diversas cidades brasileiras e paraguaias nessa região são juntas, sem uma linha clara que indique a existência de uma fronteira. “A gente até brinca que você toma uma cerveja no Brasil e vai ao banheiro no Paraguai. O trânsito de veículos e pessoas é muito grande, não tem como controlar”, diz o delegado Antônio Celso.
E se não dá para controlar a fronteira, a solução encontrada para amenizar o caos foi outra. Em 2008, assim que assumiu o cargo, o ministro paraguaio César Damián Aquino, diretor da Senad (Secretária Nacional Antidrogas), bateu à porta do governo brasileiro para pedir ajuda. “Eu tive a ousadia e a cara dura de ir comentar a nossa situação”, gaba-se. O ministro Aquino queria retomar uma parceria com a polícia federal do Brasil para intensificar as operações de corte de maconha diretamente nas plantações. “Tínhamos condições de fazer apenas duas operações por ano”.
O acordo foi feito – e caberia ao governo brasileiro financiar as incursões. No ano passado, segundo a PF, foram seis investidas nas plantações paraguaias, o que custou cerca de R$ 700 mil ao Brasil para derrubar por volta de 800 hectares de folhas – em peso, 2.400 toneladas. Para este ano estão previstas nove operações. Sucesso? Para a Senad e a PF, sim. Mas o senador Acevedo vê com outros olhos. “Isso é só para apresentar números à imprensa. O governo paraguaio não considera a erradicação da maconha prioridade. Ao contrário, eles acham que é uma fonte de renda para o país. Essas operações não vão acabar com o problema”.
Acevedo tem certa razão no que diz. Tanto as operações no Paraguai quanto as apreensões no Brasil ainda representam uma porcentagem muito pequena do total produzido. Façamos os cálculos. São estimados 6 mil hectares de plantações em terras paraguaias, o que equivale a 18 mil toneladas de droga por safra. Se até 90% vêm para nós, são cerca de 16 mil toneladas inundando o mercado brasileiro. Quanto a PF informa que foi apreendido em 2010 no Brasil? Por volta de 300 toneladas.
La colombianización
Mas se não é a atuação policial ofensiva que desatará o nó no Paraguai, o que será? O deputado Elvis Balbuena, do Partido Liberal Radical Autêntico, tem sua sugestão: a regularização da maconha no país. Balbuena preocupa-se porque, em sua avaliação, o narcotráfico por lá está tomando proporções incontroláveis – e ele teme por um fenômeno que chama de colombianização. “Temos aqui um grupo
criminoso denominado Exército do Povo Paraguaio, que se proclama idealista, defende os valores populares e vem realizando sequestros para dar legitimidade à sua luta. Nós pensamos que, com tantas plantações de maconha no Paraguai, esse grupo pode buscar autofinanciamento no narcotráfico. É basicamente o que aconteceu com as FARC na Colômbia.”
Por isso o deputado Balbuena começou, há três anos, a levantar a discussão da legalização em seu país. No início foi chamado de louco e acusado de ter vínculo com o crime. A Igreja Católica, através da Conferência Episcopal Paraguaia, fez um manifesto para que o tema não fosse levado adiante, pois fomentaria o uso entre os jovens. Mas Balbuena seguiu: “Nós acreditamos que o uso existe de qualquer maneira, mas com a proibição surgem os grupos marginais”. Seu projeto de lei, ainda sendo aperfeiçoado antes de ser apresentado ao partido, libera que os usuários possam cultivar até dez pés de maconha para uso pessoal. Em caso de uso medicinal comprovado, a cota sobe para 50 pés. Além disso, o porte também seria descriminalizado.
Certo, mas uma dúvida plaina. Se é o Brasil que consome quase toda maconha produzida no Paraguai, se é o nosso crime organizado que conturba a situação por lá, não seria ineficaz legalizar no Paraguai e manter a restrição aqui? Elvis Balbuena responde: “Correto. O único caminho é que os países se ponham de acordo e saquem da lista das Nações Unidas a maconha como produto considerado droga perigosa. Legalizar no Paraguai tende a melhorar a situação, mas só à medida que o Brasil, a Argentina e outros países também discutam o tema”. Falando ao telefone com a reportagem, num espanhol lento para ser bem compreendido, o deputado finaliza: “A maconha existe e ninguém pode negar. Vai continuar existindo e não há força que possa combatê-la. Cedo ou tarde os governantes vão entender que a legalização é o único caminho que temos”.
Caio Ferretti é jornalista.