Com dificuldades e contradições, um povo revolucionário sobrevive em Cuba
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- Alexandre Haubrich, de Cuba, especial para o Correio da Cidadania
- 20/03/2013
Nas estreitas ruas de Vedado, um dos bairros centrais de Havana, é difícil cruzar uma quadra sem ter de desviar de algum cubano que, sentado na soleira da porta de casa, com as pernas dobradas em direção ao peito, lê um jornal, fuma um charuto ou simplesmente observa o movimento de alguns carros antigos ou de senhoras que andam poucos metros para comprar frutas em uma pequena banca privada. Geralmente são aposentados. À tarde os mais jovens estão todos trabalhando, e os ainda mais jovens estão todos na escola.
Na pequena praia de Siboney, há 12 km de Santiago de Cuba, na outra ponta da ilha, é muito difícil encontrar uma mulher na rua. Os homens, sim, estão todos zanzando entre as casas, conversando. Alguns trabalham reconstruindo o patrimônio que o furacão mais recente destruiu. As mulheres estão em casa, cuidando dos afazeres domésticos. No fim da tarde chegam alguns caminhões carregados de trabalhadores, outros de crianças que há pouco se despediram dos professores em alguma cidade próxima.
Em um hotel de grande porte em uma região turística de Havana, diversos atendentes com cara de poucos amigos estão na recepção ou em guichês menores, onde se alugam carros ou se trocam euros ou dólares – mais o primeiro do que o segundo – por CUCs, a moeda cubana exclusiva para turismo e que criou um abismo de desigualdade entre os que trabalham nesse setor e todos os outros. Não é improvável que um funcionário hoteleiro esteja oferecendo a um turista gringo com quem conversa uma caixa de charutos por um preço dez vezes mais barato do que nas lojas oficias. A probabilidade de o charuto não ser da marca que diz ser é grande, mas também é possível que seja verdadeiro e tenha sido “retirado” da fábrica por algum funcionário padrão.
À frente do hotel, atrás do hotel e aos lados do hotel, outdoors lembram os feitos dos revolucionários e trazem como lemas frases de Martí, Fidel, Che, Raúl e Camilo. Outdoors como estes também estão nas estradas que levam a Siboney e em todas as pequenas cidades que se deve deixar para trás para ir de Havana, no extremo ocidente cubano, até Santiago de Cuba, a maior cidade ao Leste.
As quatro pequenas histórias são representativas de uma grande parte do cotidiano do povo cubano. Mas Cuba são muitas. Dizia Marx que apenas no comunismo as individualidades poderiam ser plenamente usufruídas. Na tentativa socialista de igualdade também se destacam as diferenças, seja entre as pessoas, seja entre cidades de grande e de pequeno porte, seja entre as regiões Ocidental e Oriental. Mesmo assim, em medidas variáveis, algumas questões estão sempre presentes para todos os cubanos. Para o bem e para o mal.
Escola e segurança
Durante o dia as ruas cubanas estão vazias de crianças. Nada. Nenhuma. Estão todas na escola, e só podem ser vistas ao meio dia, quando algumas saem para almoçar, ou no fim da tarde, quando voltam para casa – com exceção das menores, quase sempre sozinhas ou com amigos. A violência não é uma preocupação de ninguém. “Em Cuba estás sempre seguro”, parece um mantra combinado entre todos os que respondem sobre qualquer perigo em sair à noite por ruas nem sempre bem iluminadas.
Os Comitês de Defesa da Revolução (CDR`s) estão em todos os quarteirões, e deles participa grande parte dos vizinhos. Ali desenvolvem ações culturais, cuidam para que todos os adultos estejam trabalhando e para que todas as crianças estejam nas escolas, e cuidam para que nada aconteça na região sem que toda a comunidade saiba e se empenhe em resolver um possível problema. Não são espaços armados, é a própria relação de comunidade estabelecida entre os vizinhos que impede qualquer movimento estranho ao bairro e aos interesses da população. Quase não se vê guardas nas ruas, e é ainda mais difícil encontrá-los armados. É a população quem, armada principalmente de coesão e solidariedade, garante a segurança geral.
Enquanto as crianças estão na escola, os pais e mães estão trabalhando. Cada vez menos em serviços estatais. Para combater a crise econômica iniciada com o fim da União Soviética, o governo começou a abrir possibilidades de trabalho na iniciativa privada. Para tentar aumentar os salários, recentemente 400 mil pessoas foram demitidas, e estimuladas a se lançarem em negócios próprios. Saem com aporte financeiro e a possibilidade de voltar ao setor estatal caso não se acertem em suas novas empresas, mas saem. E muitos mais ainda devem sair. A crise econômica é séria. Mantém os salários baixos e faz os preços subirem.
Soluções se transformaram em problemas
O forte estímulo ao turismo a partir dos anos 1990 e a criação de uma segunda moeda, puramente turística – o CUC –, foram soluções imediatas para inserir divisas na economia cubana, mas agora se tornaram problemas que acentuam a desigualdade e levam a parte do povo a ilusão da riqueza fácil e da ideologia capitalista. Quem trabalha com turismo ganha muito mais por conta da moeda supervalorizada em relação ao Peso Cubano e, no contato com os turistas, muitas vezes passa a acreditar que sair do país traria grandes vantagens financeiras.
São exceções, mas não é impossível encontrar cubanos que dizem abertamente querer sair do país. Mas nenhum deles quer ir embora por questões políticas. Todos os que pretendem deixar Cuba reclamam dos baixos salários e dos altos preços e acreditam que em outros países sua situação seria diferente – é o que veem, por exemplo, nas novelas brasileiras que infestam a televisão cubana todas as manhãs, bem cedo, e gruda os cubanos nos dramas burgueses de Por Amor e Insensato Coração. Nem todos têm a informação de que terão que pagar por privilégios que em Cuba são direitos, a começar por Saúde e Educação.
Direitos básicos garantidos
Todo cubano nasce com direito garantido à Saúde e à Educação. De uma simples gripe a um violento câncer, tudo será tratado de graça. Há pequenos postos médicos por todos os lados, inclusive nos museus e hotéis. E nada é pago. O filho de Maria, uma senhora de cerca de 60 anos que aluga quartos para turistas em Havana, teve aos 17 anos uma doença que subitamente o deixou sem os movimentos nas pernas e com outras limitações motoras. Desde lá, 18 anos atrás, três vezes por semana uma ambulância o busca para levá-lo ao hospital, onde segue seu tratamento. Nunca pagou um centavo por nada disso.
O mesmo acontece com a Educação. Faltam canetas em toda Cuba, mas não falta escola para ninguém. E é muito difícil encontrar um cubano com mais de 30 anos que não tenha pelo menos uma formação de Ensino Superior. Taxistas-engenheiros e agricultores-agrônomos são o que mais se encontra. É possível inclusive encontrar agricultores-filósofos. Até antes do fim da União Soviética, quando o país tinha melhores condições econômicas, todo cubano cursava alguma faculdade. Hoje nem todos o fazem, muitos passam da escola para cursos técnicos, buscando trabalhos que os podem pagar melhor – em Cuba são os trabalhos privados que dão mais dinheiro, por conta da dificuldade do Estado em manter um bom nível salarial.
A maior parte dos cubanos que trabalham no setor estatal ganha entre 350 e 500 pesos. Um diretor de escola ou um médico com muita estrada podem chegar a ganhar 600. O problema é que a dupla moeda, com o CUC valendo 24 pesos, e a predominância do turismo fazem com que os preços subam muito. Um pacote de bolacha recheada custa cerca de 2 CUC – o que quer dizer 48 Pesos, mais de um décimo do salário da maioria. Uma televisão nova custa 250 Pesos, mas todos as têm, muitas compradas usadas, outras presenteadas por parentes que trabalham fora do país.
A alimentação básica, em contrapartida, está garantida graças à instituição da libreta, um caderninho que controla o consumo de uma cesta básica altamente subsidiada pelo Estado. Alimentação e higiene básicas recebem esses subsídios até determinado limite de consumo pessoal. Por exemplo, todo cubano tem direito a um pão francês por dia na libreta, a cinco centavos de Peso. Pode comprar mais, fora da libreta, mas aí vai custar um Peso cada. Algo semelhante acontece com o leite: 20 centavos de Peso na libreta, 5 Pesos fora dela.
Os salários são baixos, é verdade, mas além de Saúde e Educação totalmente gratuitas e da cesta básica subsidiada, também o setor cultural é absolutamente acessível. Nos fins de semana se formam filas em frente aos cinemas e teatros, que cobram apenas dois Pesos Cubanos por sessão. A sorveteria Copélia, a maior e mais famosa do país, também recebe filas enormes, que fazem curvas em torno do parque que a cerca. A bola de sorvete custa 1 Peso Cubano, mesmo preço de alguns dos livros expostos na Feira do Livro de Havana – embora a maioria custe um pouco mais, cerca de 20 Pesos –, que acontece em um antiquíssimo castelo em um canto da cidade. Ônibus quase enfileirados saem do centro da capital todos os dias durante a Feira para levar a multidão ao reino dos livros.
Quando a Revolução acompanha a sociedade
O trânsito de veículos está longe de ser um problema em Cuba, mas nenhum dos carros antigos que circulam por qualquer cidade cubana precisa parar para que seu motorista ou seus passageiros observem os grandes outdoors revolucionários que estão por todos os lados. Os painéis trazem imagens de heróis como Che Guevara, Camilo Cienfuegos, Frank País e José Martí, sempre acompanhadas de frases fortes, marcantes. Os lemas revolucionários, nas vozes deles, de Fidel ou de Raúl são estímulos a seguir a luta ou lembranças sobre como aprimorar ações pessoais. “Sejamos como o Che”, dizem algumas, reproduzindo frase de Fidel.
A Revolução está em todos os lugares de Cuba, seja com os painéis seja com o povo organizado. Uma grande parte da população participa de alguma das organizações de massa – Central dos Trabalhadores Cubanos (CTC), União dos Jovens Comunistas (UJC), Federação das Mulheres Cubanas (FMC), Federação dos Estudantes Universitários (FEU), Associação Nacional dos Pequenos Agricultores Cubanos (ANAP, na sigla em espanhol), FAR (Forças Armadas Revolucionárias). Além dos espaços dessas instituições, presentes também de forma local e setorial, os cubanos estão organizados nos já citados Comitês de Defesa da Revolução, e também lá participam efetivamente, em reuniões deliberativas que chegam a reunir 40 pessoas do mesmo quarteirão em uma noite de domingo. Os CDR`s são como associações de bairro com funções político-cultural-sociais que vão muito além do comum nessas associações no Brasil.
Quando a sociedade acompanha a Revolução
O povo cubano é um povo educado, politizado e solidário – ainda que muitas vezes bastante fechado. Acostumou-se às dificuldades, acostumou-se a participar de toda a vida do país, acostumou-se a pensar e acostumou-se a pensar para além do próprio umbigo. Nenhum cubano é uma ilha. Todos souberam e se solidarizaram profundamente com o incêndio na boate em Santa Maria. Difícil encontrar alguém que, identificando um brasileiro, não engolisse em seco para dar os pêsames e manifestar solidariedade. Não há banalização da morte. Tremem de indignação contra injustiças cometidas em qualquer lugar do mundo, com a exata atitude que, para o Che, definia um revolucionário.
Internacionalistas, a morte de um presidente aliado é a morte de seu próprio líder. Muitos cubanos têm parentes ou amigos trabalhando na Venezuela, nas missões sociais criadas por Hugo Chávez. Mesmo os que não os têm lamentavam profundamente a doença do presidente venezuelano, baixavam a voz e os olhos para falar sobre ela. Os cubanos sentiram toda a doença de Hugo Chávez como a doença de um amigo.
Quando a sociedade não acompanha a Revolução
Mesmo os mais de 50 anos de Revolução não conseguiram ainda criar o “homem novo” sonhado por Che. Expurgados das instituições cubanas, o machismo, o racismo e a homofobia – este aparentemente com menos intensidade do que os outros – ainda persistem com força entre as camadas médias da população.
Em um estádio de beisebol, um ambiente predominantemente masculino, no jogo entre Industrialies – o time de Havana – e Cienfuegos – da cidade de mesmo nome –, alguns casais de homens circulavam tranquilamente nas arquibancadas. Um desses casais, dois homens mirrados, discutiu fortemente durante a partida com um outro homem, talvez o mais musculoso do estádio. Mas a discussão nada tinha a ver com a orientação sexual de ninguém. Era sobre o jogo, e o calor da discussão aos gritos entre desconhecidos em momento algum levou a qualquer ameaça de agressão – mesmo considerando a enorme disparidade entre os “oponentes”. Outras discussões assim aconteceram naquela noite e, mesmo sem separação entre as torcidas, nenhum caso de violência aconteceu.
Ao mesmo tempo, uma senhora que hospeda turistas fica incomodada com uma suíça que, noite atrás de noite, leva um cubano para repartir a cama. O incômodo não é por ser homem, mas por ser negro. “Geralmente esses que não querem trabalhar, que procuram mulheres europeias para tentar ir embora atrás de mais dinheiro, são negros. Não sou racista, mas geralmente são os negros que não querem trabalhar”, diz ela.
Os homens da praia de Siboney, aqueles que estão zanzando pelas ruas enquanto suas esposas cuidam da casa, não só conversam entre eles. A cada mulher que passa os gracejos acontecem, de estalar de lábios simulando beijos até as velhas cantadas grosseiras. Siboney extrapola o nível comum, mas esse tipo de situação é normal em toda a ilha.
Quando a Revolução não acompanha a sociedade
As dificuldades econômicas são uma realidade, e é difícil distinguir o que é resultado do bloqueio estadunidense, do passado colonial e da inserção em uma região historicamente explorada e, como tal, pobre. Fato é que essas dificuldades existem, e o turismo, além de criar desigualdades antes inexistentes, mostra aos cubanos que nos países capitalistas algumas pessoas têm muito. Só esquece de mostrar que muitas outras pessoas não têm nada ou quase nada, já que geralmente não são os pobres os que fazem turismo pelas praias do Caribe. Essa situação cria em alguns cubanos um descontentamento que, em certos, casos, faz com que pensem em sair do país. Em outros casos, mais comuns, o que se procura é melhorar um pouco a condição financeira, poder dar-se alguns luxos a mais, sem precisar sair do país. É aí que entra o “jeitinho cubano”.
Da mesma forma pela qual o turismo virou incremento de renda ao Estado, virou incremento de renda à população. Do charuto retirado da fábrica – ou falsificado – até as corridas de táxi supervalorizadas, as formas de conseguir alguns CUCs a mais – o que faz grande diferença no orçamento, dada a supervalorização em relação ao Peso Cubano – são as mais variadas.
Não existe taxímetro em Cuba. As corridas são negociadas, e o preço é sempre jogado lá em cima para acabar cobrado – se bem negociado – lá embaixo. Mas isso é um problema de turista, os cubanos quase não andam de táxi, a não ser táxis coletivos – carros maiores que vão pegando as pessoas e seguindo o trajeto que melhor se adapte às necessidades de todos. Moedas de Peso Cubano com o rosto de Che Guevara também são vendidas a turistas. Valem três Pesos, ou seja, 12 centavos de CUC – equivalente ao dólar –, mas são vendidas por pelo menos 5 CUCs. Carros alugados parados por policiais rodoviários que subentendem a possibilidade de suborno também não são improváveis. Mas também existem versões legalizadas desse “jeitinho”, como o serviço de guia turístico oferecido a todo instante nas proximidades dos principais museus e praças.
Ao redor de alguns pontos turísticos ou dos hotéis mais caros alguns cubanos pedem aos turistas artigos raros na ilha. A chegada desses artigos a Cuba é dificultada pelo bloqueio, que encarece qualquer importação. Sabonetes e canetas estão entre os mais pedidos. Comida, jamais.
Volta ao capitalismo?
Com participação política e dificuldades econômicas, os cubanos vivem. Sem luxos, com alguma desigualdade recente, mas com os direitos básicos garantidos, eles vivem. Com o bloqueio estadunidense e com parcerias com Venezuela, Rússia e China, a Revolução sobrevive e muda. As possibilidades de volta ao capitalismo abertas pela criação de mais e mais empresas privadas são refutadas pela população. É difícil encontrar alguém que queira desistir do socialismo. A crítica é sempre à economia, mas a manutenção do sistema político parece ser vontade de todos. Um taxista que admite querer o capitalismo de volta usa o modelo chinês como exemplo do que queria para seu país. A discussão sobre as mudanças do modelo, chamadas em Cuba de atualizações, envolve o medo de retorno ao capitalismo, mas o discurso oficial – com o qual a população concorda – é de que não se abrirá mão de nenhuma das conquistas da Revolução.
A dificuldade na renovação de quadros, por outro lado, é uma realidade. Os cubanos mais velhos, que nasceram antes ou junto com a Revolução, mostram preocupação sempre que perguntados sobre a juventude do país. A constante presença de estrangeiros cria nos jovens expectativas e interesses que antes não existiam, quase sempre relacionados ao consumo. Ao mesmo tempo, a União de Jovens Comunistas é uma das organizações mais fortes do país, e o novo nome forte do governo cubano, vice-presidente recém empossado, é Miguel Díaz-Canel, 52 anos, cuja trajetória política está totalmente ligada à UJC.
Em entrevista recente o líder revolucionário Fidel Castro, ao responder pergunta sobre as atualizações do modelo, disse que “a maior mudança foi a Revolução”. Se teremos outra mudança desse tamanho – no caminho inverso –, é impossível prever, mas a sociedade cubana, com todas suas contradições, está convicta de que preservar suas conquistas é essencial. E organizada para isso.
Alexandre Haubrich é jornalista.
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