Correio da Cidadania

Hoje na Argentina

0
0
0
s2sdefault

 

 

A Argentina está vivendo um tenso e exacerbado tempo pré-eleitoral. As contradições entre os poderosos interesses materiais e imateriais e as políticas oficiais têm múltiplas expressões na cotidianidade do país.

 

A feroz oposição midiática, mais os partidos, as facções, corporações e poderes vários vêm recorrendo a todos os meios honestos e desonestos que sua imaginação e recursos proporcionam. Sua oposição sistemática se transformou em uma espécie de conduta robotizada que opera automaticamente, sem importar se se trata de uma medida “pequena” ou uma de alcance transcendental da qual não escapam as leis votadas no Congresso Nacional, onde vigora o bloqueio oficialista e seus aliados. Para a oposição (com nuances, é verdade) nada do que vem ocorrendo no país desde 2003 é considerada uma conquista positiva. O governo seria uma grande mentira, um formidável aparelho de engano. O país estaria às vésperas de uma desintegração, sendo seus governantes uns saqueadores profissionais. Esta imagem, veiculada em letra escrita e replicada nos canais de televisão, é reproduzida pontualmente por determinada imprensa européia, cuja espanhola se esforça para atingir os melhores resultados.

 

Feito um tanto insólito (o chamaremos de “contra natura”) que meios monopolistas cresceram desmesuradamente a favor das ditaduras militares, particularmente na última década padecida pela Argentina, deram letra e conduziram uma oposição retalhada e absolutamente acéfala de propostas alternativas e embarcada exclusivamente na negação, no desconhecimento e na difamação. São esses meios de comunicação os líderes de uma oposição grotescamente brancaleônica, dramaticamente desprovida de figuras relevantes e incapaz de oferecer programas e propostas que superem o nada e a polêmica mal pensada.

 

À falta de propostas alternativas explícitas, a resposta é a negação sistemática que, de fato, implica no retorno à Argentina que naufragou em 2001-2002, destruída pela ditadura militar mais sangrenta conhecida nestas latitudes e a imediata venda da soberania nacional a preços de liquidação, durante as duas gestões menemistas e pela não menos ameaçadora gestão De la Rúa.

 

O que está acontecendo na Argentina se insere em um drama planetário que assume características próprias em cada região, segundo as correlações de forças específicas.

 

Aqui (na Argentina) o capital financeiro e sua facção vernácula também mostram suas presas. Expropriador de enormes riquezas obtidas em pesos argentinos, habitualmente transformados em dólares, exportados a paraísos fiscais e fundos de investimento, esse capital parasitário que resiste em reverter sequer uma parte das suas utilidades ao país, não aceita medidas reguladoras do governo que de alguma maneira possam colocar limites às suas especulações.

 

Os donos da pampa úmida, uma das planícies mais férteis do planeta, também contrapõem radicalmente seu poder às políticas que são instrumentadas desde 2003, quando Néstor Kirchner assumiu a presidência. Ganhando dinheiro em magnitudes que fariam inveja a produtores de outras áreas agropecuaristas do mundo, e acostumados a que sua voz e seus interesses fossem decisivos nas determinações oficiais, resumem-se em ódio pelas retenções que devem pagar pelas exportações de suas produções, porque o governo sancionou uma legislação que protege os seus operários, entre os mais desprotegidos de todo o proletariado argentino, e fazendo com que os barões do país sintam que esta primazia está sendo disputada.

 

Aos mencionados grupos de poder, haverá que agregar os gigantes do comércio mundial de grãos e derivados de óleo, que quase monopolizam a exportação das colheitas (este ano em torno de 103 milhões de toneladas entre cereais tradicionais e derivados de óleo). No lugar de obter cinco pesos e meio (câmbio atual) por cada dólar que recebem por suas vendas no exterior, aspiram a uma desvalorização desmedida, que levada a cabo representaria uma elevação brutal e generalizada de preços. Sendo que os extraordinários lucros de quem monopoliza as aludidas exportações se realizam fundamentalmente no exterior, então, pouco os interessa ou importa o bem-estar das massas populares, ou seja, o mercado interno.

 

Entre os interesses feridos pelas políticas kirchneristas, que visaram extrair o país do poço negro do desespero a que foi levado em 2001-2002, deve-se agregar uma massa de poderosos estudos de habilidosíssimos advogados colaboradores do menemismo na devastação do país, e que hoje estão defendendo os mais tenebrosos interesses antinacionais e antipopulares.

 

Como foi dito mais acima, militam nos exércitos dos inimigos irreconciliáveis das políticas oficiais os grandes meios de comunicação tradicionais, para quem a lei de mídia aprovada pelo parlamento representa um duro golpe e ao mesmo tempo um formidável avanço da expressão aberta e democrática. Somente o grupo Clarín, cujas opiniões e interesses se valem da propriedade de mais de 250 empresas de TV aberta e a cabo, organismos de imprensa dispersos em todo o território argentino etc., é também proprietário em sociedade com o grupo La Nación da mais importante fábrica de papel jornal, forjada durante a ditadura militar por meio de procedimentos mafiosos, que estão sendo investigados por uma justiça fundamentalmente, ainda, subordinada aos interesses materiais do capital mais concentrado.

 

E a propósito do poder judiciário, que aprovou todas as ditaduras e conspirou por todas as aberrações contrárias ao interesse nacional e popular, deve-se dizer que está sendo objeto de um processo de democratização expressado em seis leis, aprovadas por ambas as câmaras do parlamento. Pela primeira vez na história argentina, está sendo discutido publicamente o caráter oligárquico e corrupto de uma justiça doente de nepotismo, que serviu fielmente aos poderes mais reacionários e que hoje se mostra dividida. Como consequência, surgiu um movimento de juízes, fiscais e quadros do judiciário em geral que se somou ao clamor por uma democratização deste poder.

 

Mais além dos seus erros, que não devem ser ocultados, alguns de magnitude, a administração kirchnerista trouxe à Argentina uma verdadeira dose de liberdade, como provavelmente o país nunca conheceu. Do ponto de vista material e social, o crescimento foi de uma magnitude extraordinária. A Argentina não apenas saiu de uma situação que a colocou a ponto de uma fragmentação, senão que gerou um conjunto de políticas sociais sem comparação, numa América do Sul onde certamente ocorreram avanços notáveis. A ferocidade dos ataques, as nunca provadas acusações contra o governo, a minimização dos seus gigantescos feitos e conquistas em 10 anos de gestão mostram até onde os representantes de um país desatualizado se propõem a defender suas ainda poderosas posições.

 

Na Argentina (na verdade em cada país sul-americano) se vive um episódio de um drama mundial que em não poucos casos já pode ser qualificado como uma catástrofe. As políticas anticíclicas aplicadas nestas latitudes são vistas com ódio e absoluto menosprezo por poderes internacionais, que veem nelas péssimas refutações às políticas que estão degradando milhões de europeus, com particular crueldade os mais jovens. O futuro de nossos povos dependerá da capacidade e vontade de aprofundar os processos em curso e, em medida não menos importante, da solidariedade e apoio mútuo entre governos capazes de elaborar e desenvolver coincidências básicas.

 

León Pomer é historiador argentino.

Traduzido por Raphael Sanz, para o Correio da Cidadania.

0
0
0
s2sdefault