Correio da Cidadania

Uruguai: ‘Maruja’ e José, a política de paraísos artificiais

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“As coisas da terra bem pouco existem, a verdadeira realidade só está nos sonhos?”, Charles Baudelaire

 

Hoje, o Uruguai é capa na imprensa de todo tipo e nas coberturas de televisão do mundo, após aprovar, em parte, a lei de descriminalização do cultivo e venda de maconha. Absurdamente, o consumo é legal enquanto o cultivo e a venda não. Por ora, se legaliza e estabelece o monopólio estatal da venda controlada e limitada, sendo permitido o cultivo doméstico para uso pessoal.

 

Falta a aprovação no Senado, que é certa. É quase certo também que a oposição conservadora ao governo de José Mujica tente um referendo revogatório; ou o próprio Mujica! A oposição quis usar este recurso há um mês para anular a lei de descriminalização do aborto (outra lei democrática, como também é a lei do matrimônio homossexual), mas estava longe do poder de convocatória necessário. E no caso da maconha, a opinião pública tem muito mais oposição à lei.

 

Não devemos pensar, como já dito, que por isso o governo da Frente Ampla, ao enfrentar essa opinião conservadora, passa por cima dos princípios do cálculo eleitoral. É o contrário.

 

Da penalização à medicalização, da sociedade disciplinar à sociedade do controle, estamos diante de uma tendência geral deste governo. Trata-se apenas de uma contracorrente compensatória superficial, já que a corrente profunda vai em sentido contrário: congelamento salarial, reforço da polícia, perda dos direitos trabalhistas.

 

Em abril, um ministro disse que “o modelo de crescimento com forte dose de primarização tende a se desgastar e concentrar-se na redistribuição da riqueza na perspectiva holística”. Imediatamente, outros membros do governo foram pra cima dele. Mas, logo depois, o “modelo do modelo” uruguaio, isto é, o “modelo Lula-Dilma”, de derrame de apenas algumas gotinhas, foi posto em questão pela mobilização popular.

 

E como isso é muito mais limitado no Uruguai! Os reajustes salariais dos funcionários públicos serão insignificantes, o que provoca a ampla e sustentada mobilização dos sindicatos docentes.

 

Na realidade, a razão pela qual as classes dominantes permitem um governo da Frente Ampla é sua capacidade de contenção e controle do movimento popular, por dentro. Se isso começa a se desgastar, aparecem os problemas de qualquer governo do tipo socialdemocrata. E o que fazer?

 

Recuperar a confiança de sua base popular com reformas redistributivas reais? Difícil, porque o “keynesianismo em um só país” contra a hegemonia mundial, em um país pequeno e sem muitos recursos, não se sustenta. Dura o que durar a bonança dos preços internacionais e os impostos arrecadados da estrangeirização da economia.

 

Podemos compreender Baudelaire visitando Marx. A riqueza em nossa sociedade “se apresenta como um enorme acúmulo de mercadorias. A mercadoria é... uma coisa que... satisfaz necessidades humanas, sejam quais forem. A natureza dessas necessidades, originárias, por exemplo, no estômago ou na fantasia, em nada modifica o problema”.

 

Quando o material adequado para o estômago deixa de existir, deve-se investir em mais fantasia, e o controle da "soma" imaginado por Huxley em seu "Admirável Mundo Novo" é um problema político. O Uruguai bate recordes em alcoolismo ou igrejas pentecostais.

 

Carlos Real de Azúa enriqueceu o país pensante e inquieto de quarenta anos atrás, que não existe mais. Uma das “invariáveis” que viu na história de nossa “sociedade amortecedora” é a capacidade de contenção, compartimentação e amortização do dissenso social. Democratizar a política é parte disso.

 

A confusão aumenta quando alguns setores radicais acreditam que devem simplesmente se opor a esta lei sobre a maconha.  É deixar de ver o problema principal. Nós não gostamos nem do controle nem da medicalização da vida, mas não podemos deixar de aproveitar este retrocesso forçado nos métodos policiais, dos juízes e do sistema prisional.

 

Cresce a superlotação nas prisões do Uruguai, a delinquência da miséria está no centro dos noticiários. Em breve, nós vamos ter de lutar em outro referendo, promovido pela oposição de direita, que quer julgar como adultos os jovens infratores.

 

Neste contexto, também no caso da maconha é imprescindível lutar contra o sistema repressivo, mesmo se os fatos estiverem parciais ou distorcidos. Há de se acabar com o sonho para que a realidade desperte.

 

Tradução de Daniela Mouro, Correio da Cidadania.

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