Chile: é tempo de se fazer memória
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- Grupo de São Paulo
- 14/10/2013
“Digo-o com calma, com absoluta tranquilidade: eu não tenho índole de apóstolo nem de Messias. Não tenho condições de mártir. Sou um lutador social que cumpre uma tarefa, a tarefa que o povo lhe deu. Mas que o entendam bem aqueles que querem retrotrair a história e desconhecer a vontade da maioria do Chile: sem ter carne de mártir, não darei um passo atrás. Que o saibam: só deixarei La Moneda quando o mandato que o povo me deu se cumprir.
Que o saibam, que o ouçam, que lhes fique profundamente gravado: defenderei esta revolução chilena e defenderei o governo da Unidade Popular, porque este é o mandato que o povo me entregou. Não tenho outra alternativa. Somente me crivando de balas poderão impedir-me de realizar esta vontade que é fazer cumprir o programa do povo”(Salvador Allende, 4 de dezembro de 1971) (1)
Este é um texto profético. Profeta do povo chileno, Allende adverte os poderosos. Antecipa sua própria história. Reafirma sua determinação em cumprir a missão que lhe foi outorgada pelo povo chileno.
Há quarenta anos - onze de setembro de 1973 – morria Salvador Allende Gossens, Presidente da República do Chile no auge de sua popularidade. Estava em seu terceiro ano de mandato. Portava-se como grande estadista. Seu programa de governo era ousado e sui generis: edificar o socialismo em democracia – pluralismo e liberdade. Enfrentava a divisão e a incompreensão de parte significativa das forças de esquerda e a sanha da direita.
Foi assassinado por militares chilenos. O processo golpista e o regime ditatorial que então se instalara contaram com o apoio do imperialismo norte-americano mancomunado com as forças mais retrogradas e reacionárias da sociedade chilena. A repressão militar foi cruenta e perversa. Segundo dados não oficias (2), mais de cem mil pessoas foram presas e torturadas; trinta mil foram assassinadas. A ditadura sangrenta massacrou o povo chileno por quase 17 anos. Ainda hoje o país sofre as consequências desses fatos. Os grupos políticos reacionários continuam com forte influência na economia, na política e na justiça. Várias “leis” impostas pelos militares permanecem vigentes e são aplicadas contra organizações populares. Na fortemente elitista sociedade chilena, o povo Mapuche, símbolo da resistência desde a invasão espanhola, continua vítima da repressão.
O Presidente Allende resistiu até a morte. Morreu em seu legítimo posto no Palácio de La Moneda. A sede do governo foi bombardeada, incendiada e invadida pelos traidores do povo chileno. O ditador Pinochet, ex-ministro de Allende, tornou-se figura emblemática das servis e sangrentas ditaduras latino-americanas. Vários países de Nuestra América sofreram processos semelhantes. No Cone Sul, ao Chile, somavam-se Argentina, Brasil, Paraguai e Uruguai.
É importante fazer memória. Fatos como esses não podem se repetir.
Os tempos são outros, é verdade, mas os riscos de retrocesso permanecem. O caso do Paraguai é um exemplo. O Presidente Lugo foi deposto “legalmente” e com apoio dos EEUU. Pura farsa! Como em outros casos, o cinismo não tem limites nas justificativas que se seguem a ocorrências do tipo.
O governo Obama continua atuando com ações bélicas via drones (robôs de sofisticada tecnologia – pequenas aeronaves sem piloto que espionam e bombardeiam). O presidente prestou seu apoio à alteração dos regulamentos de guerra, ou seja, autorização do uso “de força letal” longe das zonas de guerra. Nada mais que assassinatos em países estrangeiros de cidadãos tidos como “perigosos” para a segurança dos EEUU (legalização do assassinato, tal qual a legalização da tortura na era Bush). Além disso, permanece a base de Guantánamo, sinônimo de sequestros, prisões e torturas exercidas pelo Estado norte-americano.
O imperialismo continua forte e cada vez mais ousado. Agora, legalizou o “grampo”. As denúncias de Edward Snowden são prova disto. Este cidadão e ex-espião norte-americano (CIA/NSA) desnudou o império. Denunciou o globalmente massivo programa de vigilância e espionagem eletrônica levado a efeito pela NSA (Agência Nacional de Segurança dos EEUU) contra sua própria população e o resto do mundo.
O disparatado episódio contra o presidente da Bolívia Evo Morales é desdobramento dessa denúncia. Ao mesmo tempo comprovou a truculência do império, o desrespeito a outras nações soberanas, e a subserviência de países europeus (Portugal, Espanha, França e Itália). Esses países fecharam seus respectivos espaços aéreos para trânsito da aeronave presidencial boliviana que voltava de viagem oficial à Rússia. Obedeceram como servos da gleba — sem qualquer pudor quanto à própria soberania. A Áustria não ficou atrás. O presidente Evo Morales permaneceu detido (sequestrado) no aeroporto de Viena durante quatorze horas. Revistaram seu avião à procura de Snowden. Para arrematar essa insólita história, o governo socialista (!) francês, com razões esfarrapadas, foi o primeiro a pedir desculpas. Seguiram-se os demais, cada qual com seus farrapos de razões.
Por outro lado, em todo o mundo são evidentes os sinais de descontentamento dos jovens e das populações empobrecidas, vítimas dos processos de ajuste econômico neoliberal. As manifestações se multiplicam. Os manifestantes exprimem desilusão e repudiam as estruturas políticas. Elas não lhes dizem nada, estão desmoralizadas.
As revoltas de rua não se limitaram aos países pobres ou em desenvolvimento, como é o caso do Brasil, ou aos que vivem processos políticos especialmente traumáticos, como o Egito. Elas também ocorreram na União Europeia e nos EEUU. A diferença maior que existe em relação aos tempos de Allende é que as reivindicações são difusas e as forças de esquerda estão desfiguradas (toscos fantasmas do que já foram) e, muitas das vezes, apenas envolvidas em medíocres esquemas de poder, a qualquer preço. Em contraposição, as forças da direita reacionária e truculenta continuam, como na época de Allende, organizadas e sem escrúpulo. Procuram submeter as manifestações aos seus interesses antipopulares.
A integridade, a postura política e a coragem de Salvador Allende, bem como a tragédia chilena, têm conteúdo forte. Levam à reflexão. Podem e devem inspirar as forças políticas em gestação no seio da juventude.
La História No Esta Muerta.
Notas:
(1) - Registrado por Darcy Ribeiro no ensaio “Salvador Allende e a Esquerda Desvairada”, escrito poucos dias após a tragédia do La Moneda. Darcy Ribeiro, “Gentilidades”; coleção L&PM Pocket; v. 44, Pg.113).
(2) - Dados oficiais: durante a ditadura de Augusto Pinochet no Chile entre 11 de setembro de 1973 e a 11 de março de 1990, de acordo com os relatórios da Comissão de Verdade e Reconciliação (relatório Rettig) e a Comissão Nacional sobre Prisão Política e Tortura (relatório Valech), a cifra de vítimas diretas de violações aos Direitos Humanos no Chile ascenderia, pelo menos, a cerca de 35.000 pessoas, das quais cerca de 28.000 foram torturadas, 2.279 delas executadas e cerca de 1.248 continuam como detidos desaparecidos. Além disso, cerca de 200.000 pessoas foram para o exílio e um número não determinado (de várias dezenas de milhares) teria passado por centros clandestinos de detenção.
José Juliano de Carvalho Filho, Elisa Helena Rocha de Carvalho, Carlos Alberto C. Vieira, Guga Dorea, João Xerri, Silvio Mieli, Thomaz Ferreira Jensen – membros do Grupo São Paulo.