Eleições no Chile: tanto faz a presidente?
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- Marcelo Luis B. Santos, de Santiago, para o Correio da Cidadania
- 22/11/2013
As eleições presidenciais deste domingo no Chile, em primeira análise, não apresentaram grandes surpresas: Michelle Bachelet, a candidata da nova aliança de centro-esquerda (Nueva Mayoría) ganhou com ampla margem da candidata de centro-direita Evelyn Matthei (46,67% versus 25,01%), mas não levou no primeiro turno. Deve ganhar com folga o segundo turno, mesmo diante de uma perspectiva de guerra suja por parte da direita, em que sua tática do silêncio deve enfrentar uma candidata que não é conhecida por seus escrúpulos nem pela elegância e, sim, pela quantidade de palavrões que costuma proferir. Diante deste cenário aparentemente pouco interessante, se olhamos mais de perto, algumas constatações interessantes podem surgir.
Fragmentação da esquerda: bom ou ruim?
A fragmentação da esquerda ficou registrada nos nove candidatos que não conseguiram se alinhar para que algum tipo de esquerda ganhasse no primeiro turno. Este dado aponta para uma radicalização das candidaturas como resposta às expectativas da cidadania, cansada dos governos mornos de centro-direita (2010-2014) e centro-esquerda (1990-2010) que o Chile teve desde o fim da ditadura – no fim das contas, quase indiscerníveis em alguns aspectos, como política macroeconômica.
Durante este período, o país esteve imerso em uma grande inércia política, desencantado, desmotivado e desiludido com a tal da democracia. Mas é importante apontar que todas as outras oito candidaturas, umas menos outras mais sérias, são mais radicais que a de Bachelet. O fato de não ter vencido no primeiro turno favorece uma aproximação com estas candidaturas, podendo virar o leme do programa relativamente conservador de Bachelet um pouco mais à esquerda.
Além disso, pouco a pouco, outras barreiras que não permitiam um avanço em termos de justiça social, através de reformas estruturais na sociedade chilena, vão caindo e cada vez mais há indícios de que este período de inércia deveria chegar ao fim para evitar uma maior fratura social e revolta popular na sociedade chilena.
Não há mais desculpas
A chamada “transição democrática”, considerado o período imediatamente após a queda de Pinochet – e para alguns autores finalizado em 2009, quando a direita ganhou as primeiras eleições diretas no país desde o início desta transição –, foi um período caracterizado por diversos entraves à implementação de políticas profundas de orientação social. O primeiro entrave era a sombra de Pinochet, que mais de uma vez ameaçou retomar o poder à força com qualquer movimento mais radical proposto pelos novos governantes do país após sua saída. Esta tônica ficou gravada nas célebres e infelizes palavras de Patricio Aylwin, o primeiro dos presidentes do período de transição, o governo recém-nascido faria “justiça na medida do possível”.
O segundo entrave era o medo da esquerda, do comunismo, da guerra fria, toda essa propaganda massiva anticomunista dos anos 60 e 70, que ficou muito marcada e até hoje perpassa alguns segmentos da sociedade chilena. Marxista, trotskysta, socialista, comunista, anarquista, para boa parte da sociedade, significavam a mesma coisa que terrorista comedor de criancinhas.
O terceiro obstáculo era a ilusão do desenvolvimento, ufanamente promovida pelos meios de comunicação e pelos políticos tanto da Concertación como da Alianza, celebrando em tom de festim o “modelo chileno” de economia, centrado na extração de minerais, exportação de frutas e vinho e políticas de derrubada das barreiras alfandegárias (atualmente a média de impostos de importação está perto dos 3%), sem nenhum incentivo à indústria nacional ou planos sérios de longo prazo em termos macroeconômicos. Se o cobre sobe, superávit; se baixa, super crise.
O quarto é o cerco midiático, com oligopólios de meios de comunicação dominados por poucos grupos econômicos vinculados à ditadura, os quais alimentam todos os outros obstáculos anteriores com suas linhas editoriais alinhadas à ideologia neoliberal e às políticas de mercado predominantes.
Pinochet morreu, seus fantasmas um a um foram perdendo o sentido. Até o presidente Piñera admitiu que os civis haviam sido “cúmplices passivos” dos crimes contra a humanidade perpetrados pelo general golpista. A guerra fria congelou e a crise do capitalismo reacendeu a esperança e a necessidade de busca de propostas de sociedade alternativa. A primeira geração de chilenos sob a suposta democracia já cresceu, se endividou descontroladamente confundindo riqueza com crédito e percebeu que as promessas de primeiro mundo eram retóricas e vazias de substância. Saiu e continua saindo às ruas para gritar sua insatisfação e deixa evidente o abismo entre o discurso maquiado da politicada e a realidade da rua.
Por último, as redes sociais e os meios digitais provêm alternativas para aqueles que discordam dos titulares do centenário El Mercurio ou das redes privadas de Televisão construírem suas opiniões e encontrarem mais gente que discorda do discurso oficial e/ou do discurso midiático, configurando um cenário de articulação política mais fértil que o das notícias monolíticas dos oligopólios midiáticos nacionais.
O misterioso sistema binominal
No entanto, existe um último obstáculo (ou talvez seria o primeiro) de extrema importância: a constituição chilena, datada de 1980, feita a portas fechadas pela ditadura. Entre outras coisas, o sistema eleitoral, chamado binominal, é viciado e perpetua uma divisão bipolar e simétrica de poder entre dois grupos, levando a uma espécie de “ditadura dos acordos”, em que se torna impossível realizar mudanças mais radicais. Fundamentalmente o sistema indica que os parlamentares sejam eleitos em blocos e os vencedores serão o candidato mais votado do bloco mais votado e o candidato mais votado do segundo bloco mais votado. Para que dois candidatos de uma mesma tendência sejam eleitos, a coalizão tem que dobrar o resultado da segunda coalizão mais votada (como se vê na Figura 1).
O resultado é que o parlamento tem ficado historicamente dividido entre direita e esquerda, meio a meio, e os independentes geralmente ficam fora (como ocorreu no caso mostrado na Figura 3). Isso é particularmente relevante se consideramos que a própria constituição define que, para alterar seu texto, são necessários 4/7 dos votos, portanto, se o parlamento se divide meio a meio, não tem ovo nem galinha: fica tudo como está.
Figura 1: Exemplo de “doblaje” na eleição atual para Senador, em que a soma da primeira maioria (Nueva Mayoría) dobra a segunda colocada (Alianza). Mesmo que o candidato individualmente tenha mais votos (como Manuel Rojas Molina), acabou pasando Pedro Araya Guerrero (ver asteriscos). Fonte: Servicio Electoral de Chile.
Figura 2: Neste segundo caso, o candidato da direita Laurence Golborne perdeu a vaga para Carlos Montes, mesmo tendo obtido cerca de 15.000 votos a mais que seu opositor. Fonte: Serviço Eleitoral de Chile.
Figura 3: Neste último caso, a deputada mais votada, do Partido Progressista, com 27,99% dos votos, não foi eleita pois perdeu para as coalisões tradicionais de direita (30,45%) e esquerda (34,53%), embora os candidatos individuais tenham tido votação inferior. São as contradições deste sistema. Fonte: Serviço Eleitoral de Chile.
O grande desafio: assembleia constituinte
Dessa forma, o foco da eleição atual não deve ser a presidência, mas o parlamento. O movimento estudantil que eclodiu em 2011 acabou de levar quatro de seus líderes na condição de deputados, dois deles comunistas. O PC dobrou sua bancada. Diz-se que finalmente estão dadas as condições, pois uma combinação da coalizão de esquerda (Nueva Mayoría) com os vitoriosos independentes – eleitos apesar do sistema binominal – resulta em um quórum favorável para votar uma assembleia constituinte.
Nesta perspectiva, aparentemente, Bachelet teria uma oportunidade única na história recente de promover mudanças mais radicais na sociedade chilena, empoderada pelos movimentos sociais, pelo clamor por uma Assembleia Constituinte, pelo enfraquecimento da direita e dos oligopólios midiáticos. Muitos são os céticos que estão convencidos que Michelle e seus asseclas não seguirão esta senda. Em pouco tempo saberemos se a futura presidenta irá enfrentar esta briga ou se prefere continuar ratificando e retificando uma carta magna ilegítima.
Marcelo Luis B. Santos é consultor e educador em Comunicação e Democracia.
Twitter: @celoo