Às voltas com o golpismo na Venezuela
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- Juan Carlos Monedero
- 20/02/2014
Pensamos, talvez com ingenuidade, que, com a vitória do presidente Maduro, nas últimas eleições, onde conseguiu mais de dez pontos de vantagem sobre os candidatos da Mesa da Unidade, a situação na Venezuela iria se tranquilizar. Capriles, o candidato derrotado nas presidenciais e eleito no estado de Miranda, participou, em dezembro último, de uma reunião do presidente com os cargos públicos locais e estaduais recém-eleitos. Reconheceu a vitória de Maduro e também sua legitimidade. Mas aí começou também a fragmentação entre as filas da direita.
O cenário de uma parte não menor da direita latino-americana sempre foi o do golpismo quando esteve fora do governo, e a repressão a qualquer dissidência ou alternativa quando habita os palácios presidenciais. Desta atitude, alimentada pelos Estados Unidos – para quem tudo ao sul do Rio Bravo é o seu “quintal” –, surgiu também como resposta a luta armada. O fim do governo sandinista em 1990 marcou o fim das saídas violentas da esquerda. Fracassou o primeiro levante zapatista (venceu o pacífico e midiático), fracassou Chávez em 1992, fracassou o Sendero Luminoso, estagnaram-se as FARC... Chávez entendeu e em 1998 fez mudanças no seu governo, trocando as armas pelas urnas. Mas participar das eleições não iria apaziguar a direita.
Desde o primeiro momento, Chávez se converteu no inimigo dos derrotados – já para as eleições de 1998, Aznar mandou Moragas, Arriola e, por acaso, Correa (da Gürtel, caso de corrupção e caixa 2 envolvendo membros do Partido Popular espanhol) para ajudar a candidatura da direita. Mas assim como o naufrágio da URSS em 1991 foi o começo do fim do Estado social na Europa, a renúncia à luta armada na América Latina veio acompanhada do agravamento do golpe da direita no continente. A direita só aceita a democracia se estiver no poder. Quando está fora, vale tudo para recuperá-lo. Em quase todos os lados. Ou não nos lembramos que Aznar chegou à política mentindo e se foi mentindo?
A extrema-direita venezuelana está de volta. Não está disposta a esperar a conjuntura de uma oportunidade eleitoral. Sempre tem pressa. Capriles já não vale, e volta a sabotar, colocar os mortos nas ruas, desestabilizar, contando como única base o apoio mercenário de boa parte das empresas de comunicação do mundo e da própria Venezuela (onde 80% dos meios estão nas mãos da oposição). Como seu candidato, Capriles, ganhou em dezembro as eleições no estado de Miranda e aceitou o resultado (não parece muito sensato dizer que foi fraude quando você mesmo é eleito), os candidatos dos Estados Unidos voltam a agitar a bandeira da violência para tentar encurralar o governo de Nicolás Maduro. Os mesmos que já provaram essa estratégia em breve golpe de 2002. Os mesmos que, se tomassem o poder na Venezuela, fariam do país um cemitério anexo a um cárcere.
As análises de uma parte da direita são as que foram levadas a um setor dela mesma, que segue sem querer entender o apoio popular ao processo bolivariano, a repetir a estratégia golpista. Ramón Piñango, do IESA (Instituto de Estudos Superiores de Administração) e diretor da “Unidade de Análises e conjuntura”, recomendava recentemente a Henrique Capriles se afastar de Leopoldo López e de seu plano de voltar à luta das ruas para desestabilizar o governo (Plano “Saída”). Em um documento publicado nestes dias na imprensa venezuelana, tinha as seguintes reflexões, entendendo que a estratégia golpista anterior só havia servido para reforçar mais ainda o apoio popular ao chavismo:
“1. O respaldo popular ao Chavismo segue sendo importante e majoritário;
2. As medidas anunciadas pelo presidente Maduro têm dado sinais para o povo de que o governo está atuando;
3. O governo conseguiu posicionar a matriz de responsabilidade do setor privado na escassez e na especulação;
4. Os vínculos de Leopoldo Lopez com Alvaro Uribe e o paramilitarismo quebram a relação com o governo de Santos;
5. O respaldo das Forças Armadas à revolução bolivariana é irrestrito;
6. A agenda do Plano ‘Saída não tem nem terá respaldo popular, o povo da Venezuela ,por tradição cultural, isola os violentos;
7. Qualquer ação violenta contra o governo unifica as forças Chavistas;
8. A agenda de Leopoldo Lopez não corresponde aos assuntos de política nacional;
9. As ações de Leopoldo López buscam deslocar a liderança de Capriles”.
A imprensa internacional voltou a ser cúmplice pela enésima vez da tentativa golpista. Por um lado, os que planejam uma ideia vulgar de justiça e dividem culpas pela tentação da inocência. São os que falam de “bandos” ou de “extremistas de ambos os lados”, como se fosse o mesmo estar no governo e ser um golpista. Por outro lado – maioria –, fazendo parte diretamente da estratégia golpista e acusando o governo de Maduro de ilegítimo. Já sabemos que para a imprensa europeia isso de ganhar as eleições é uma estupidez, quando não ganham seus patrões (Lembram-se de Papademos na Grécia e de Monti na Itália? E de Rajoy, assumindo dar de ombros aos compromissos eleitorais que o levaram à presidência?).
As acusações feitas contra o governo bolivariano apenas se sustentam quando se conhece a realidade do país. A direita golpista venezuelana está armada, está vinculada com o paramilitarismo colombiano e sempre tem como estratégia encher as ruas de mortos para tentar estreitar o cerco contra o governo. Como ocorreu em 2002, volta-se a tomar conhecimento de conversas prévias, onde se anunciava que as manifestações iriam terminar com mortos – denunciadas pelo presidente Maduro –, ou a aparecer, como em tantas outras ocasiões, mercenários contratados para gerar desordens. Por outro lado, outros vídeos demonstram como a polícia bolivariana tem um comportamento bem diferente do que vemos em outros países, incluindo Espanha. Não esquecendo que um dos três mortos era um militante chavista (qualquer morto, seja qual for o seu signo, merece compaixão). Mas essas informações não aparecem na mídia: não servem para criminalizar a Venezuela.
Claro que existem grupos populares no país caribenho com capacidade de resistir a um golpe de Estado (como ocorreu na Espanha em julho de 1936). Quisera a direita golpista que não existissem. E existem, ademais, os 100.000 kalashnikov que Chávez comprou para armar as milícias bolivarianas. Na América Latina, sabem que os golpes de Estado organizados pelos Estados Unidos são parte da política do continente. Quem quiser entrar à força na Venezuela vai se encontrar com o povo pela frente. Além do mais, e isso a direita não suporta, as forças armadas são comprometidas com sua missão de resguardar o povo, e não aos latifundiários e aos grandes empresários. Teríamos de ver o que se passaria na Europa se uma força política como o Syriza ganhasse as eleições na Grécia. Na América do Sul, aprenderam suas lições. Allende não morreu em vão.
Na Venezuela, não há enfrentamento entre dois bandos nem choques entre “hordas”. Há um governo legítimo e uma minoria que não está disposta a deixar de governar. Claro que na Venezuela existem sérios problemas econômicos (lembram-se de que há uma crise mundial?), não menos sérios problemas de segurança (vinculados a um conjunto completo de causas, no qual não é a menor delas um modelo de consumo que faz acreditar que quem aos 15 anos não tem tudo já é um perdedor) e problemas igualmente graves de gestão administrativa (onde a corrupção endêmica do país segue pendente, apesar de várias tentativas do governo em resolvê-la).
A condição petroleira do país gera problemas estruturais contra os quais ainda não se encontrou solução eficaz, mas de nada ajuda a permanente espada de Damocles do golpismo para enfrentá-los. Não seria demais que os amigos dos golpistas e das revoluções coloridas tirassem suas mãos sujas da Venezuela e deixassem o governo governar. Não é simples fazê-lo quando um governo poderoso está sempre pondo paus nas rodas (não nos lembramos da Espanha, das dificuldades adicionadas na luta contra a violência do ETA, pela atitude beligerante da França?). Sem justificativas como as que brindam os violentos, a via eleitoral para que a oposição ofereça ao país sua alternativa se torna mais clara conforme os erros do governo pavimentem o caminho de seus oponentes. Mas não em um cenário de ameaça golpista.
Nas últimas eleições presidenciais, e aproveitando que Chávez não era o candidato, a oposição esteve a ponto de voltar ao governo. A tarefa deveria centrar-se em assinalar as deficiências da gestão de Maduro e ir preparando um modelo de país alternativo que convencesse a maioria. Capriles entendeu e por isso se afastou da via violenta. Outros, como Leopoldo López e Maria Corina Machado, querem tirar Capriles do jogo e ocupar o seu lugar com uma estratégia de confronto, sonhando com um cenário líbio e sírio para a Venezuela. Porque o barulho que se faz com a Venezuela sempre tem a ver com a mesma coisa: a sua condição de país com as maiores reservas de petróleo do mundo. Uma peça cobiçada. Por isso ontem foram contra Chávez e hoje são contra Maduro. Que a Venezuela esteja nos noticiários não tem nada a ver com a violência. Tem a ver com quem tem petróleo e não é obediente às ordens do norte.
Junto a essa luta internacional eterna para controlar o petróleo venezuelano, outra coisa muito importante tem a ver com os conflitos internos dentro da oposição venezuelana. Seria importante que todo o país fosse consciente de que esses que querem governar a Venezuela para substituir o chavismo não têm aversão ao fato de seus compatriotas deixarem a vida nos confrontos. Porque para essa direita golpista da Venezuela, como a de tantos outros lugares, sua única pátria sempre é o próprio interesse. Sua democracia é uma tela. E do mesmo modo que comemoraram o recente golpe em Honduras ou as constantes tentativas de derrubar à força Cristina Fernandez, Evo Morales e Rafael Correa, sua vitória seria fazer a Venezuela voltar à noite escura da qual, depois, não se falaria mais nos meios de comunicação.
O povo da Venezuela tem dado seu apoio a Maduro. E a obrigação de qualquer democrata é fazer valer sua legitimidade frente a qualquer agressão golpista, como a que agora mesmo está sofrendo, embora a pressão midiática torne difícil essa tarefa. Os inimigos da democracia não descansam em seu empenho. Que não nos vençam pelo cansaço.
Juan Carlos Monedero é cientista político e professor da Universidade Complutense de Madrid.
Blog: http://www.comiendotierra.es/2014/02/15/a-vueltas-con-el-golpismo-en-venezuela/ - Retirado de Rebelión, http://www.rebelion.org
Traduzido por Daniela Mouro, do Correio da Cidadania.
Comentários
A acusação de que o professor Monedero está a defender os corruptos chavistas não se sustenta, uma vez que ele mesmo a cita como um sério problema daquele país. E, quando faz a absurda acusação de que o professor quer defender gangues de motocicletas, nosso comentarista Cláudio Santos perde o rumo, em definitivo.
Se a direita que voltar ao governo, que aguarde. Que garanta a realização do plebiscito e, mais, convença o povo venezuelano de que o neoliberalismo lhe trará mais benefícios que o chavismo. Assim conseguirá, constitucionalmente, dentro das regras do jogo, se livrar de Maduro antes do final do mandato. Como sabe que vai perder, a direita não quer esperar e apela para o vale-tudo.
Aliás, se é tão democrática quanto sua imensa propaganda afirma, porque é que a direita também não implanta plebiscitos desse tipo nos países em que está no comando, Santos?
Ou seja, essas riquezas devem servir, têm que estar disponíveis, prioritariamente, para gerar mais lucros para as grandes corporações dos EUA. Então, quando um determinado governo ousa contrariar esta visão, como foi o caso de Hugo Chávez e está sendo o de Maduro, ele tem que, a qualquer custo, ser eliminado.
Quem quiser entender o que se passa, de fato, na Venezuela, tem que levar isso em conta em suas avaliações. Certo Sr Cláudio Santos?
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