Vida e morte em Michoacán: testemunhos
- Detalhes
- Roberto Ramírez, com Diário La Jornada
- 27/02/2014
Os motivos de uma rebelião
Os jornalistas do mexicano La Jornada fizeram um excelente trabalho em lugares e situações perigosas. Um contraste com o resto dos jornais mexicanos, mais parecidos com boletins do governo ou da falsa “oposição” vendida ao PRI (Partido da Revolução Institucional). Aqui, alguns trechos das reportagens e relatos.
Tancítaro: “as armas não serão entregues e continuaremos avançando”, asseguram
(...) Os comunitários são de Tancítaro e todos têm uma queixa pessoal. Dois deles são irmãos e perderam um primo e um cunhado, sequestrados e assassinados enquanto eram pagos seus resgates. Outro vem de uma família que sofreu o arrebatamento de quatro de seus integrantes, depois que foram a uma festa em Apatzingán. Todos são muito jovens. Um deles confessa que antes do levante nem sequer sabia atirar.
Eles esperam convencer a população de San Juan (para se juntar à luta), como feito em outros lugares. Resume uma das crenças da autodefesa: ‘o concreto é que sem as pessoas não somos nada. Se não nos querem, nós vamos à merda’.
O chefe do povoado, Bernardo Maganã, toma a palavra... Diz que o procedimento é o povo votar se aceita as autodefesas e, se aceitar, nomear um conselho para se encarregar de cuidar da relação com os armados.
- Querem que permaneçam as autodefesas?
- Sim! - É um grito unânime. Esta é a reunião mais numerosa de que se tem lembrança em muito tempo aqui, de onde se juntaram os grupos de autodefesas de Tancítaro.
Tancítaro, com seus 200 homens armados que portam armas de fogo, veio para retribuir. Em 16 de novembro do ano passado, os habitantes deste município receberam a ajuda das autodefesas de Tepalcatepec, Buenavista e arredores.
Claro, os primeiros que ganharam com o pagamento do favor foram os próprios habitantes de Tancítaro, pois limpando a área conseguem uma passagem segura a Uruapán, onde as necessidades de seus negócios e da sua vida cotidiana os obrigam a ir.
“Me sinto feliz, porque já podemos passar sem nenhum problema”, disse Jesús Bucio Cortés, homem de fala simples e dono, com seus filhos, de 60 hectares de abacate.
Bucio se corresponde, por meio de megafone, com a população de Jucutacato, para incorporá-la. Explica as razões conhecidas de sobra – o rosário de terror do grupo criminoso, como disse o governo, para não se meter nunca com os Cavaleiros Templários – e tenta desmontar os mitos sobre as autodefesas: “não viemos roubar, não estamos com ninguém de outro cartel”. Resolve a dúvida do dinheiro com um fato: os que foram despejados de suas hortas não estão dando 80% das colheitas, e no final as davam como perdidas.
Após o voto oral, a população se reúne separadamente para eleger os seus representantes. Rancores antigos vêm à luz, mas no final se nomeia o conselho e fazem piada sobre quem será o chefe das barricadas.
Por aí segue, à espera da decisão, o abacateiro Jesús Bucio, um dos quatro conspiradores iniciais de Tancítaro. Suportou o sequestro de um filho, o aumento da propina, a queima de dois pacotes de abacate, o assédio constante. Mas decidiu levantar-se em armas no dia em que encontraram o corpo de Maria Irene Villanueva Cuevas, uma menina de 15 anos, irmã de sua nora. Ficaram sequestradas por uma semana. Eles a violentaram, a torturaram e, depois de lhe enfiarem cinco tiros, continuaram pedindo resgate.
Fernando Camacho Servín, enviado, La Jornada, 24/01/2014
“Nós nos defendemos dos criminosos e dezenas foram detidos”, lamentam em La Ruana
La Ruana, Michoacán – Logo depois de suportar por mais de 10 anos as extorsões, sequestros, roubos e assassinatos dos Cavaleiros Templários, a comunidade michoacana de La Ruana decidiu “levantar-se em armas” contra o cartel, em fevereiro do ano passado. Mas a resposta das autoridades foi prender dezenas de pessoas, acusadas de crimes graves e enviadas para as prisões de segurança máxima em todo o país.
Sem poder entender a razão pela qual defender-se dos criminosos é um crime, mais ainda quando as autoridades os deixaram sozinhos durante anos, nesta localidade seu povo concorda em uma reclamação: “soltem os nossos meninos”.
Os familiares e companheiros dos guardas da autodefesa, organizados por Hipólito Mora, relataram as histórias de terror que viviam em forma cotidiana, as quais os levaram a superar o medo de seus opressores e rebelarem-se com as armas na mão.
“Meu filho tinha 18 anos quando entrou na autodefesa, para cuidar de sua mãe. Se nós pegamos as armas foi porque não tínhamos governo que nos apoiasse e não íamos deixar que matassem a nós e a nossa família. Agora levam-nos para a prisão e eu penso que não é por aí”, reclama.
No meio das vozes que se levantam – às vezes no meio de lágrimas, mas também de gritos de raiva e indignação -, se escuta também a de um homem que se identifica como Samuel, que descreveu “o inferno de ver como todos os dias (os templários) matavam camponeses” por não aceitarem as cotas que lhes eram impostas pelos criminosos.
Outro habitante de La Ruana se junta aos vencidos para advertir enfaticamente: “Não vamos baixar as armas e nem entregá-las... Respeitamos o governo, mas se coloquem ao nosso favor. Por que só protegem os bandidos? Não, homem, não venham nos f...!
Fernando Camacho Servín, enviado, La Jornada, 24/01/2014
As extorsões do crime organizado, protegidas pelo Estado
(...) Em entrevistas separadas, Francisco Jiménez, da Coordenadoria Nacional Plano de Ayala (CNPA), e Victor Suárez, da ANEC, afirmaram que, sem financiamento e assolados pela extorsão do crime organizado, muitos produtores só cultivam para o autoconsumo, porque não estão em risco a colheita e a terra, mas a própria vida.
Jiménez, integrante da dirigência nacional da CNPA, apontou que não só a produção de limão e abacate foi afetada, mas que o pagamento da cota aos templários foi aplicado a toda produção agrícola. Os jornaleiros deveriam entregar 20 dos 80 pesos de seus salários diários. Os donos da terra pagavam 120 pesos por cada hectare de cultivo por mês; além disso, um mínimo de mil pesos por hectare de milho, e as adegas deveriam entregar pelo menos 100 pesos por cada tonelada de grão.
Jiménez apontou que a extorsão do crime organizado não só afeta os agricultores, mas todo o ramo produtivo. “Os templários cobram 8 pesos por cada quilo de carne que se produz no estado, e cinco pesos aos açougueiros por cada quilo vendido. Estima-se que cada um dos 113 municípios michoacanos obtém 1,5 milhão de pesos ao mês por cobrança de cotas”.
Arturo Cano, enviado, La Jornada, 23/01/2014
Autodefesas: “Se os templários voltarem, nos matam, mas vocês vão ser escravos”
O comandante Héctor Zepeda Navarrete fala com um morto nas costas, seu irmão Julio César, assassinado na segunda-feira, dia 13: “Eu digo ao povo: ‘se os templários voltarem, vão nos matar (as autodefesas), mas vocês vão ser escravos’”.
Não quebra a voz em um segundo. Parece orgulhoso da morte do seu irmão, mecânico e vendedor de peças mecânicas, e levou a revolta do seu povo contra os Cavaleiros Templários.
No mesmo dia que foi baleado, o povo se juntou na esplanada, em frente à prefeitura, e El Siete, chefe de praça dos templários, pôs os pés em polvorosa, com tudo, incluídos seus assassinos.
Eles permanecem por perto, nas margens dos povoados e nas colinas, como bem sabiam os guardas comunitários que, na quinta-feira, foram emboscados na vizinha Aguilila, onde caiu Alejandro López, de 18 anos.
Os patrulheiros das autodefesas param para comprar bebidas em uma venda. Por aí, quem sabe onde, anda o chefe dos assassinos, de nome Gerardo Coyarrubias Landín, El Negro... “Esse babaca tem pacto com o diabo”, disse o comandante a um homem na venda, conhecedor de que o buscaram por todas as colinas e becos. O Negro estava abaixo das ordens de El Siete, Carmelo Núñez Vargas, amo e senhor nesta área.
A revolta já estava cantada... Por isso, quando a população se levantou atrás do homicídio do mecânico, as casas dos templários já estavam abandonadas. Nos dias anteriores haviam levado suas famílias e muitas outras coisas. Deixaram vazias umas 20 casas.
Neste município, os conspiradores eram poucos. Iam aos municípios próximos e já sob o controle das autodefesas para coordenar. Alguém os viu e lhes apontou dedo... para Julio César – uma pessoa direita, um lutador social, define seu irmão – e assassinaram-no na frente de sua mãe.
Arturo Cano, enviado, La Jornada, 25/01/2014
Saquearam nossas casas; não deixaram nem uma colher
El Camalote, Michoacán – Esta é a primeira vez em um ano e meio que os Bravo param por estas terras. Voltam a suas casas, abandonadas e saqueadas, nas quais os Cavaleiros Templários não deixaram nem os talheres.
A primeira coisa que fazem Matías e Homero Bravo é colocar sobre os ombros coletes brancos que os identificam como policiais comunitários. Procuram obter suas credenciais, convencidos de que o conluio dos governantes com o crime organizado não lhes deixa outro caminho a seguir.
“Os bandidos dizem que ‘todo mundo tem seu preço’. Felizmente, nós, comunitários, não temos preço. Por isso somos os únicos que vamos poder acabar com o crime organizado”.
A tragédia dos Bravo se repete em muitos lugares de Michoacán, onde centenas e milhares de pessoas têm sido despejadas dos veículos, casas e terras pelo cartel. No caso dos Bravo, as casas seguem ali, em ruínas.
A tragédia desta família começou em 17 de junho de 2012, quando o velho Matías recebeu como presente do dia dos pais o assassinato de seu filho Rafael.
A família não pôde nem completar a novena. No terceiro dia, enquanto rezavam no rancho do velho Matías, receberam a notícia de que os assassinos haviam entrado em suas casas e estavam à sua procura. Onze membros da família fugiram pelos becos enquanto suas casas eram saqueadas.
Ao voltar para a sede municipal de Coahuayana, a primeira ação de Bravo era se inscrever nas autodefesas: querem tramitar suas credenciais de policiais comunitários.
Arturo Cano, enviado, La Jornada, 20/01/2014
Dono de uma oficina mecânica coordena três grupos, “na briga, na revolução”
Estrada Apatzingán-Aguililla, Michoacán - É um homem pequeno, conhecido como Comandante Patancha. O cartaz que fizeram em sua honra brilha na enorme camionete em que chega. “Por um Aguaje livre”, diz o letreiro que o distingue.
Dono de uma oficina mecânica e comerciante de ferro velho, Patancha coordena três grupos “na briga, na revolução”, como ele disse.
- Por que decidiu se juntar às autodefesas?
- Porque quiseram acabar com a minha família. Queriam levar a minha menina. E eu tinha que cuidar dela. Quase implorei por duas semanas, quando pedi auxílio às autodefesas para que chegassem a El Aguaje.
- Como sabia que queriam levá-la?
- (Um dos chefes) chegou e me disse que tinha intenções com minha menina e iriam levá-la.
- Que idade tem sua filha?
- Está com 16 anos.
- O que mais lhe fizeram?
- Tinha um compadre muito querido, Elías. Mataram o seu pai, o mataram, mataram sua filha, meu afilhado, toda nossa família. Um dia vocês vão a Chila e podem constatar onde estão todas as cruzes, uma atrás da outra, toda família.
- O que faziam as autoridades municipais?
- Todos os prefeitos que entraram no Partido Revolucionário Institucional no estado de Michoacán entraram para a brincadeira. Os comandantes de suas equipes de segurança eram os templários.
Arturo Cano, enviado, La Jornada, 27/01/2014
Leia também:
Movimentos mexicanos de “autodefesa” e “polícias comunitárias” entre a rebelião e a cooptação
Tradução: Daniela Mouro, Correio da Cidadania.