Sem enfrentar ‘fundos abutres’, governo Kirchner hipotecará o futuro da Argentina
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- Roberto Ramírez, de Buenos Aires para o Correio da Cidadania
- 25/06/2014
A decisão da Suprema Corte dos EUA de não levar o caso dos “fundos abutres” contra a Argentina aos tribunais de Nova York mantém firme a decisão em favor destes, ditada pelo juiz Thomas Griesa. De nada valeram as exortações “políticas” provenientes de diversos setores – do FMI e até mesmo do governo estadunidense, passando por setores de Wall Street -, que não se importam o mínimo com a Argentina, mas temem que este precedente seja uma corrente às futuras e necessárias “reestruturações de dívidas”.
A decisão é um duríssimo golpe para a Argentina, quando a “recuperação” posterior à debacle de 2001 está em seu pior momento. Numa canetada, jogou-se abaixo toda a “estratégia” do governo, que apostava na demora para não se ver obrigado a enfrentar maiores pagamentos da dívida externa, neste caso, com os abutres. Mas a decisão vem a reafirmar que “as dívidas têm de ser pagas”. E agora o governo enfrenta obrigações de 1,3 bilhão de dólares que devem ser abonados de imediato, e a possibilidade de que o resto dos titulares de títulos que não entraram nas trocas de bônus anteriores reclame um montante que poderia alcançar os 20 bilhões de dólares. Como as diminuídas reservas do Banco Central chegam a escassos 28 bilhões, enfrentar estes pagamentos de imediato é praticamente impossível.
O panorama poderia estar em uma perspectiva muitíssimo pior. Depois do default de 2001, a Argentina conseguiu – com importantes quitações – reestruturar mais de 90% de sua dívida, que vem pagando pontualmente. Nas condições ditadas por Griesa, se o governo viesse a pagar aos abutres antes de 1º de janeiro de 2015, toda a reestruturação cairia legalmente. 92% de credores teriam direito a reclamar e cobrar o mesmo, e nas mesmas condições dos abutres. Para terminar de fechar o cerco, Griesa proibiu que a Argentina pagasse a essa maioria de credores em outro lugar que não fosse Nova York (por exemplo, Buenos Aires ou outra praça). No entanto, nesta situação, se a Argentina girasse fundos a Nova York para pagar o próximo vencimento, Griesa embargaria estes fundos em benefícios dos abutres.
As novas circunstâncias colocaram a situação econômica argentina na perspectiva negra de uma crise, inclusive, mais grave do que a corrida cambial de janeiro passado. Ao desencadear-se, é também uma comoção política, com o risco de continuidade da própria Cristina na presidência.
As razões profundas de uma sentença
A decisão do Supremo Tribunal dos EUA surpreendeu a muitos, incluindo os analistas da imprensa mais conservadora. Esperava-se uma decisão “política” – seguindo os conselhos da Casa Branca, FMI, grande parte de Wall Street etc. –, pela qual se “chutasse” a bola para depois do fatídico fim de ano, dando tempo para negociar também com os abutres – para o que o governo argentino sempre esteve disposto, apesar de sua retórica…
Por isso, a primeira coisa é explicar as razões de fundo da decisão da Corte estadunidense. Este fundo é muito simples: o sistema judicial norte-americano (coroado por seu máximo tribunal) se mostra, mediante esta decisão, como garantidor dos contratos capitalistas. Estes sinalizam que, quando um devedor toma uma obrigação com um credor, tem que pagar, sem se importarem com as consequências sociais ou econômicas. Vivo ou morto, deve “honrar” seu compromisso e pagar. “A justiça dos EUA... sustenta que a dívida da Argentina é um contrato, e como tal seus termos devem ser honrados. Independentemente de quem fosse o titular da dívida: uma viúva ou um fundo abutre. E que, se contemplar exceções, estará incentivando futuros comportamentos excêntricos de outros países” (Bernardo Saravia Frías, especialista em direito financeiro, La Nación, Buenos Aires, 17/06/2014).
Efetivamente, assim funciona o sistema. Assim é o “direito” na barbárie capitalista: o credor pisoteia o devedor; o proprietário, o inquilino; o capitalista ao trabalhador; e o país imperialista, ao país dependente. Esta canonização do Deus Mercado é duplamente sagrada nos Estados Unidos, que se caracterizam também por uma série de ideologias que fazem parte de seu “ser nacional”, pelas quais as leis que o regem são as que mais representam fielmente as regras do jogo da oferta e da demanda, e da defesa da sacrossanta propriedade privada. Esta característica histórica, que vem desde sua fundação, hoje se potencializa na presente etapa neoliberal, que não foi fechada pela crise mundial.
Equivocadamente, o governo argentino, setores da patronal e da oposição e, inclusive, setores empresariais e das finanças em nível internacional esperavam que a Corte ianque responderia de maneira mais “política”, atendendo ao fato de que muitas dívidas não podem ser pagas completamente no meio da crise mundial. Que, além do mais, tomasse em consideração que está em curso uma série de reestruturações da dívida, como a da Grécia, com quitação, e outras circunstâncias do tipo. Esperavam, enfim, que o direito não fosse “apolítico”, que fosse “realista” em suas decisões. Mas a Corte ianque se dedica a tutelar as regras do jogo clássico do sistema capitalista.
Todos os caminhos conduzem a Griesa
Como já apontamos, este golpe cai em um momento muito difícil da economia argentina. Mesmo se se consegue algum tipo de acordo de pagamento com os abutres, é um golpe que potencializa as restrições e a crise, a escassez de dólares, as tendências recessivas e, paralelamente, o aumento da inflação, induzida, outra vez, pela desvalorização do peso. Tudo isso ameaça se aprofundar, colocando novamente o país à beira de uma crise econômica generalizada.
Esta situação limita as alternativas reais do governo. Ninguém espera, realmente, um gesto de “soberania”, mas que se vá além da retórica de “Pátria ou Abutres” lançada pela propaganda kirchnerista. Ao mesmo tempo, a mesma Cristina, em seu último discurso (o ato nacional do “Dia da Bandeira,” em 20 de junho), disse umas mil vezes que está disposta a negociar com Griesa e seus abutres... nas condições que marca a “justiça” imperialista. Cristina descarta expressamente um enfrentamento sério.
Além disso, um choque deste tipo iria em sentido absolutamente contrário a tudo que o governo vem fazendo no último período, com o apoio firmado de toda a patronal argentina: o arranjo sob controle do FMI das contas nacionais, o fabuloso acordo de pagamento pela estatização da Repsol, o acordo com os demandantes no CIADI (Centro Internacional de Acerto de Diferenças sobre Investimentos), o recente acordo com o Clube de Paris. São todas amostras de que o “relato nacional e popular” do kirchnerismo terminou...
O governo já está despachando negociadores para se reunir com o juiz Griesa, na busca de algum acordo com os abutres sob a fórmula de pagar uma parte em dinheiro e outra em bônus, em uma série de anos (como foi paga a Repsol). E se conseguissem um acordo assim, e se mais abutres subirem seu reclamo, negociariam algo parecido. O resultado seria deixar o país hipotecado por décadas.
Uma política revolucionária para a dívida externa
Uma das fábulas pós-modernas ainda vigentes diz que, entre o neoliberalismo selvagem (que hoje impera mundialmente) e as alternativas revolucionárias (que se estimam como “utópicas” logo após a queda do Muro), existe a alternativa mais “realista” de outro capitalismo... Um capitalismo “bom” e “produtivo”, e não “neoliberal-usurário”. Lamentavelmente, a autêntica “utopia” é a fábula de “outro capitalismo é possível”. Algo que vem se expressando na América do Sul, em diversos graus e formas, com os distintos governos “nacionais e populares” da Venezuela e Argentina, e com o PT no Brasil, como uma variante muito mais “moderada”.
No entanto, a hora da verdade – como demonstra o caso argentino – se impõe: a realidade da dependência de nossos países, inclusive para os gigantes como o Brasil.
Esta dependência – que é característica semicolonial no fundo – não se pode solucionar “negociando” dentro das instâncias e regras do jogo ditadas pelas metrópoles. Só se pode sair dessa situação com uma ruptura revolucionária. Isso começa por não pagar a dívida, mas de nenhuma maneira pode se reduzir a esta medida. É que nada se soluciona como um mero default. Ao mesmo tempo, o não pagamento da dívida exige acompanhamento de um programa revolucionário, que, entre outras medidas, deve incluir a estatização total dos bancos e do comércio exterior, o monopólio estatal de gestão das divisas, a expropriação de todas as empresas vinculadas aos credores estrangeiros ou de países que sofram represálias etc. etc.
Os casos históricos de saída exitosa dos insaciáveis usurários das dívidas públicas foram aqueles que aplicaram medidas revolucionárias. O grande exemplo é o da Revolução Russa de 1917.
Roberto Ramirez é editor da revista argentina Socialismo o Barbarie.
Traduzido por Daniela Mouro, do Correio da Cidadania.
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