Correio da Cidadania

‘Exemplo escocês deve catalisar luta pela independência em toda a Europa’

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“Por trás do plebiscito, houve uma clara polarização entre os que defendem uma sociedade mais igualitária, que tenha o Estado de bem estar social como paradigma, e aqueles que defendem o neoliberalismo e têm Londres como referência. Esta foi a polarização subjacente ao plebiscito pela independência escocesa”, disse Plinio Arruda Sampaio Junior, professor da Unicamp, que passa uma temporada de pesquisas em solo inglês, na entrevista que concedeu ao Correio.

 

Em sua visão, mesmo com a derrota do ‘sim’, os escoceses obtiveram vitórias práticas e imediatas, além de terem expressado a atual “crise federativa” do Reino Unido, o que em breve pode se refletir em movimentos semelhantes de independência na Irlanda e no País de Gales. Além do mais, prosseguem as repercussões em outros processos separatistas espalhados pela Europa, como o da Catalunha, que nesta sexta, 19, aprovou lei que permite a convocação de consulta popular sobre a independência.

 

O economista considera que o movimento escocês foi uma espécie de marco de reação popular às políticas neoliberais, que por sua vez geraram uma forte crise de representatividade nas democracias de todo o continente.

 

“Um dos fatores de força da campanha do ‘sim’ foi a rejeição aos partidos tradicionais ingleses, isto é, o conservador, o trabalhista e o liberal-democrático. Do ponto de vista econômico, o que se discutia era uma maior independência, por assim dizer, fiscal. A capacidade de ganhar autonomia na arrecadação de imposto e nas decisões sobre como gastá-lo. Essa foi a questão central”, resumiu.

 

A entrevista completa pode ser lida a seguir.

 

Correio da Cidadania: Primeiramente, como analisa o referendo pela independência da Escócia do Reino Unido, convocado após acordo entre os primeiros-ministros deste país e da Inglaterra?

 

Plínio Sampaio Jr.: Entendo o referendo como uma reação do povo escocês contra a dominação inglesa. Mas, diretamente, é contra os efeitos do neoliberalismo na Escócia, que, basicamente, foram a desindustrialização e a deterioração do Estado de bem estar no país.

 

Por trás do plebiscito, houve uma clara polarização entre os que defendem uma sociedade mais igualitária, que tenha o Estado de bem estar social como paradigma, e aqueles que defendem o neoliberalismo e têm Londres como referência. Esta foi a polarização subjacente ao plebiscito pela independência escocesa.

 

Do ponto de vista mais geral, o que estamos assistindo é ao desmembramento do império inglês, parte de uma reacomodação geral na divisão internacional do trabalho, provocada pelo avanço e aprofundamento da globalização. Esse é o quadro mais geral envolvido.

 

Correio da Cidadania: Como avalia o jogo de ganhos e perdas, entre o ‘sim’ e o ‘não’, que esteve presente nesse plebiscito?

 

Plínio Sampaio Jr.: Em minha opinião, os escoceses, como um todo, teriam saído ganhando se o ‘sim’ fosse vitorioso. Teriam tomado maior controle do seu destino. E a polarização por lá é claríssima. O ‘sim’ é uma ampla coalizão que representa a esquerda. O ‘não’ é uma ampla coalizão, que até possui elementos do partido trabalhista, mas não da esquerda; na verdade, representa os mais conservadores.

 

Do ponto de vista escocês, não tenho dúvida alguma de que o ‘sim’ representou o voto pela maior independência e maior igualdade, ainda que sem questionar os parâmetros do neoliberalismo. A aposta era que isso seria possível. Outra questão é se, de fato, seria possível.

 

Do ponto de vista do Reino Unido, a separação escocesa teria representado um golpe monumental. Passou a chamar Reino Unido quando a Escócia se juntou à Inglaterra. A fundação dessa nação começa na fusão da Escócia com a Inglaterra. Pelo lado histórico, seria uma derrota imensa. Economicamente, teriam perdido uma fatia importante, sobretudo, a principal fonte de petróleo.

 

Teriam ainda prejuízos militares, porque a frota nuclear inglesa está sediada na Escócia e um dos compromissos da campanha do ‘sim’ era desnuclearizar a Escócia. O que, do ponto de vista inglês, introduziria um fator de fraqueza e vulnerabilidade. O poder de negociação inglês seria enfraquecido por conta da menor força militar.

 

Politicamente, a separação da Escócia jogaria a Inglaterra ainda mais para a direita. Porque entre 85 e 90% dos deputados escoceses são de esquerda, sejam trabalhistas ou mais à esquerda. Os conservadores praticamente não têm voto. Com a retirada da Escócia do parlamento, o equilíbrio político inglês se deslocaria, portanto, para a direita de maneira muito clara, no plano imediato.

 

É importante ressaltar que a Escócia não é o único foco de problema no Reino Unido. Na verdade, a Inglaterra vive uma crise federativa grande. Com a vitória do ‘sim’ escocês, o País de Gales começaria uma política de independência e a Irlanda também.

 

Correio da Cidadania: Mas agora, com a vitória do ‘não’, o que a Escócia, a Europa e os movimentos mais progressistas perdem e como vê o futuro das lutas pela independência?

 

Plínio Sampaio Jr.: Mesmo com a derrota do ‘sim’, as forças progressistas tiveram uma grande vitória na campanha do plebiscito, à medida que a sua principal bandeira foi assumida pelos partidários do ‘não’ e, até mesmo, explicitamente reconhecida pelo establishment político londrino.

 

A principal ideia dos defensores da independência – o repúdio às políticas neoliberais que destituem a sociedade de qualquer controle sobre seu destino – saiu claramente fortalecida. A derrota da independência não ofusca o consenso criado em torno da ideia de que tal como está não dá para ficar. E isso é, em si, uma grande vitória, pois derrota a base do neoliberalismo, a fé no fim da História.

 

Os independentistas também tiveram vitórias práticas, pois, mesmo derrotados, conseguiram impor ao Parlamento Inglês a necessidade de mudanças constitucionais e políticas de grande envergadura. Portanto, o fim da campanha não significa calmaria. A Grã Bretanha tem dias agitados pela frente.

 

O exemplo escocês também deve catalisar a luta pela independência na Europa como um todo. Pelo entusiasmo gerado e pela altíssima capacidade de mobilização popular, mesmo derrotada, a campanha do ‘sim’ representa um salto de qualidade na reação popular contra os efeitos desastrosos do neoliberalismo. A crise política e federativa inglesa começa agora a supurar e a propagar-se. Ouso dizer que, assim como o neoliberalismo teve em Margareth Thatcher um marco na Europa, o movimento pela independência da Escócia representa o início de uma reação contra o neoliberalismo no continente.

 

Correio da Cidadania: Acredita, então, que o processo escocês seguirá incentivando um separatismo em outras partes da Europa e do mundo?

 

Plínio Sampaio Jr.: Não tenho nenhuma dúvida. O que acontece aqui é de grande relevância para a Europa inteira. Porque, em caso de separação escocesa, haveria efeito dominó em vários lugares, e de maneira imediata em Barcelona. Uma separação agora praticamente detonaria e catalisaria o processo de separação da Catalunha da Espanha.

 

A Europa vive uma crise econômica, financeira, política e ideológica, que se manifesta em cada lugar de uma maneira. Mas o denominador comum é o povo se sentir completamente destituído de qualquer representatividade. Esse é o fator determinante, que provoca a guinada nacionalista e instabilidade.

 

No fundo, o neoliberalismo castra o poder político. E ao castrar o poder político do cidadão, deixa todo mundo ao sabor do mercado. A sociedade agora começa a reagir.

 

Correio da Cidadania: Entre aqueles que apoiaram a independência, que peso tiveram as causas históricas e nacionalistas, ao lado dos motivos mais ideológicos e pragmáticos?

 

Plínio Sampaio Jr.: Qual é o nacionalismo escocês? É um nacionalismo defensivo, não é chauvinista, excludente, muito menos imperialista e ofensivo. A Escócia é uma região pobre da Grã Bretanha, que foi bastante prejudicada depois da intervenção da Thatcher na política. E o que se viu agora foi uma reação a tal situação.

 

Outro aspecto importante é que a atual conjuntura é reflexo da monumental crise de representação que se abate sobre todas as democracias, sobre a Europa de modo geral e a Grã Bretanha em particular. Um dos fatores de força da campanha do ‘sim’ foi a rejeição aos partidos tradicionais ingleses, isto é, o conservador, o trabalhista e o liberal-democrático.

 

Na verdade, a campanha condensou uma série de contradições. Assistimos a busca, pelo povo escocês, de uma alternativa ao impasse em que eles se encontram dentro do império, dentro da Europa e dentro da globalização.

 

Correio da Cidadania: Numa região marcada por fortes conflitos religiosos, o fator confessional e eclesiástico pesou na disputa?

 

Plínio Sampaio Jr.: Isso é importante na situação irlandesa. Na escocesa, e tenho lido e acompanhado bastante os debates, tal questão não foi posta. Não passou por aí. Passou pelo desespero do povo em controlar seu destino. Esse foi o mote. Quem manda no povo, quem manda no destino da sociedade?

 

A iniciativa escocesa é um esforço de sua comunidade em procurar um caminho de saída do império, ganhar maior autonomia relativa. Claro que a autonomia que está posta, na prática, é limitada. Trata-se de um país de economia pequena, com pouco maia de 5 milhões de habitantes, integrado economicamente à economia inglesa e sobretudo europeia.

 

Do ponto de vista econômico, o que se discutia era uma maior independência, por assim dizer, fiscal. A capacidade de ganhar autonomia na arrecadação de imposto e nas decisões sobre como gastá-lo. Essa foi a questão central, o que na prática estava em jogo. Porque, do ponto de vista comercial, monetário e tecnológico, a Escócia está integrada de maneira orgânica às economias da Inglaterra e União Europeia.

 

Os problemas são vários. A Escócia não é uma coisinha qualquer. É uma confusão grande para a Inglaterra.

 

Correio da Cidadania: Como se posicionaram, a partir de sua observação, a população do Reino Unido de forma geral – na Inglaterra, Irlanda do Norte, País de Gales e na própria Escócia?

 

Plínio Sampaio Jr.: A força econômica e o poder político se concentram em Londres. Londres é próspero, um lugar onde, entre aspas, o neoliberalismo deu certo. Em compensação, todo o resto da Grã Bretanha sofre problemas. E estão começando a experimentar níveis de pobreza semelhantes, por assim dizer, aos que nós conhecemos na América Latina. O que é uma realidade nova. Isso, de um lado, provoca sentimento nacionalista (defensivo, como disse) e, de outro, o sentimento xenófobo, guinado à extrema direita.

 

As pesquisas de opinião pública registraram, portanto, uma antipatia pelo ‘sim’ na Inglaterra mais propriamente. Mas houve simpatia evidente pela campanha do ‘sim’, pela independência escocesa, em Gales e na Irlanda.

 

 

Valéria Nader, jornalista e economista, é editora do Correio da Cidadania; Gabriel Brito é jornalista.


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