Correio da Cidadania

A captura do desenvolvimento por interesses corporativos na ONU

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Nos últimos dez anos, mais de um trilhão de dólares saíram da América Latina e Caribe na qualidade de Fluxos Financeiros Ilícitos (FFI). Contrariamente ao que se poderia pensar, mais de 80% de toda essa fuga de dinheiro corresponde a atividades comerciais, ou seja, têm a ver com práticas de elisão, evasão e fraude tributária de grandes corporações. O resto corresponde à corrupção e o crime organizado.

 

Se toda essa massa monetária servisse para financiar o desenvolvimento sustentável da região, poder-se-ia reduzir significativamente suas profundas desigualdades, sem depender tanto das fontes externas de financiamento. Basta dizer que esse saque supera a soma do Investimento Direto Estrangeiro (IED) com a Ajuda Oficial ao Desenvolvimento (AOD). É por isso que a cúpula de Adís Abeba é tão importante, já que deve alcançar um acordo coerente em matéria de financiamento para o desenvolvimento dos países do sul.

 

Lamentavelmente, tudo indica que, em lugar de abordar essa agenda de maneira decisiva, muitos dos blocos dos países mais poderosos do planeta - que seguem afetados pelas crises fiscais - veem em Adís Abeba a oportunidade de que suas grandes empresas privadas façam novos negócios. Quer dizer, converter o processo de Financiamento para o Desenvolvimento (FpD) das Nações Unidas em um mecanismo para sair da sua própria crise.

 

Essa aposta por privatizar o desenvolvimento implica que os fluxos de AOD sejam destinados ao setor privado, em lugar de irem diretamente aos projetos de desenvolvimento. Também, que se consagrem os esquemas de Parcerias Público-Privadas (PPPs), especialmente em infraestrutura, mas também em serviços, como a solução para a crise global. Mobilizar recursos públicos para alavancar investimento privado significa transferir o risco do setor privado ao público, quer dizer, aos contribuintes, e gerar novos riscos de endividamento público.

 

Para ninguém é um segredo que as PPPs têm um enfoque de lucro, diferentemente do enfoque de direitos humanos, igualdade de gênero, sustentabilidade ambiental, territorialidade e interculturalidade que devem estar presentes na hora de executar projetos de infra-estrutura. Pois o desenvolvimento é mais que cimento, e os países em desenvolvimento, incluídos os da Comunidade de Estados Latinoamericanos y Caribenhos (CELAC), têm isso bem claro, pois seguem sustentando, semana após semana, na Organização das Nações Unidas (ONU), que o desenvolvimento é antes de tudo um assunto do setor público.

 

O “FpD” é o único processo global no qual todos os países do mundo têm voz própria para revisar as regras econômicas e financeiras internacionais com o mandato explícito de fomentar o desenvolvimento dos países do Sul. Desta forma, deve-se impedir que este termine sendo assaltado pelos interesses privados, relegando a um segundo plano os temas centrais, como a reforma da arquitetura financeira global, a neutralização dos “fundos abutres”, o imposto sobre as transações financeiras e o fim dos paraísos fiscais.

 

É possível que o único aporte de Adís Abeba seja o acordo para estabelecer um espaço multilateral para regular a tributação internacional e abrir essa discussão chave, que hoje se concentra somente nas mãos de 34 países ricos integrantes da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE).

 

Neste momento, a sociedade civil internacional, que acaba de lançar uma campanha global para “Que as Transnacionais Paguem o Justo”, aparece unida aos países do Sul nas negociações para defender a criação de uma iniciativa mundial, com um amplo mandato, que trate dos incentivos tributários, evasão e elisão das corporações e grandes riquezas, e transparência e intercâmbio de informação. Apesar disso, até hoje os países membros da OCDE – onde está a maior parte das transnacionais - não estão dispostos a compartilhar o espaço. Sua oposição é tão forte nas  negociações que essas só poderiam ser resolvidas na mesa dos ministros em Adís Abeba.

 

Ademais, um desafio central está na última cúpula do FpD. É evidente que vários países desenvolvidos querem acabar com esse processo, nascido em inícios do século XXI como uma conquista histórica do mundo em desenvolvimento e liderado pela região latinoamericana, como espaço político onde se renegociam constantemente as regras do jogo.

 

Se está claro que o FpD quer ser marcado pela implementação dos Objetivos do Desenvolvimento Sustentável (ODS), pela continuação e ampliação dos Objetivos de Desenvolvimento do Milênio (ODM), de nenhuma maneira se deve aceitar que o FpD termine reduzido a uma espécie de Think Tank financeiro da luta contra a pobreza, tirando-lhe todo o perfil político de reformas econômicas mais amplas em favor do desenvolvimento sustentável. Em tal sentido, os representantes latinoamericanos de mais alto nível devem ir a Adís Abeba para defender o espaço do FpD como ferramenta política.

 

Em um contexto de rebilaterização das relações internacionais, 2015 poderia ficar para a  história como o ano do multilateralismo, quando os líderes dos 194 países do mundo vão discutir, no marco da ONU, toda a agenda Pós-2015 das próximas décadas: os recursos econômicos para o desenvolvimento em Adís Abeba em julho (FpD) e a luta por uma visão integral do desenvolvimento em Nova York em setembro (ODS), para terminar com um acordo eficaz para enfrentar a mudança climática em Paris em dezembro (COP21).

 

A Conferência de Adís Abeba deve marcar o ritmo dos futuros acontecimentos, e os países da região têm que agir ativamente para gerar mudanças globais mais além da conjuntura atual. Trata-se nada menos que do futuro da humanidade. Isso que está em jogo.

 

Se Adís Abeba se circunscreve a financiar somente os ODS, privilegiando as PPPs em geral, privatizando o desenvolvimento, então o multilateralismo vai desaparecer em favor dos “fundos abutre”, a financeirização das economias e o domínio das corporações. Os temas econômicos que estão por trás do FpD requerem a renovação das propostas e de uma estratégia de implementação sólida mais além de julho, e isso não pode ficar somente nas mãos dos países do Sul.

 

Em nossa região, tudo dependerá da cidadania atenta e da mobilização da sociedade civil e movimentos sociais frente ao perigo da captura da ONU e da agenda do desenvolvimento por parte de interesses corporativos.  Faltam seis semanas.

 

Katiuska King, economista, ex-ministra coordenadora da Política Econômica do Equador; Miguel Santibañez, coordenador regional da campanha “Beyond 2015” na América Latina; Ana Tallada, presidenta da Rede Latinoamericana sobre Dívida, Desenvolvimento e Direitos – LATINDADD; Óscar Ugarteche, economista, Universidade Nacional Autônoma do México - UNAM.

 

Tradução: Rodrigo Ávila

 

 

Publicado na Auditoria Cidadã da Dívida  - www.auditoriacidada.org.br

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