Os primeiros passos na Europa
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- Fernando Moura, da Grécia, para o Correio da Cidadania
- 26/10/2015
O bote começa a ficar próximo da ilha. A excitação dos tripulantes é incontrolável. São muitos acenos de alegria à praia e agradecimentos a Alá. O piloto, iniciante na tarefa, tenta seguir a direção dos coletes salva vidas, lanternas ou faróis de carros, sinalizados por voluntários para o local ideal de desembarque. Chegando à praia, a excitação se transforma em alguns minutos de pânico para a maioria, principalmente em dias de mar bravo ou em chegadas noturnas.
A sorte deles é que do lado grego a operação está armada há tempos por voluntários autônomos, sozinhos ou em grupos de países europeus e dos EUA, exclusivamente para recebê-los - um alento, devido à total ausência da ONU e grandes ONGs internacionais. São muitos carros e vans que rodeiam diariamente toda a costa entre Molyvos e Sikamineas, no norte de Lesvos, com águas, isolantes térmicos, toalhas e, às vezes, roupas e comidas. Além de muita gente disposta a entrar no mar para garantir o melhor desembarque possível a todos.
Com o barco já em cima das pedras pontiagudas das praias locais, socorristas entram no mar para mantê-lo estável, enquanto diversas outras pessoas rapidamente carregam malas, bebês, idosas, mulheres e crianças, além de ajudar a maioria dos homens. Os que chegam apenas seguem o que dizem estas pessoas estranhas da Europa. Tudo à base de muitos gritos em diversos idiomas. A maioria dos barcos alcança a praia tranquilamente ainda com motor.
Muitos, porém, ficam à deriva a poucos metros de distância e, após intensas remadas braçais, se chocam com as pedras, onde tudo fica mais difícil e o nível emocional mais elevado.
Não tarda nem 20 minutos para que Alaa, ao lado da mulher e três filhas e já mais calmo após seu tenso e demorado desembarque noturno, reveja a cena de outra perspectiva. “Thank you! Thank you very much”, repete continuamente ao ver voluntários tirarem rapidamente os tênis e correrem para receber o novo bote que se aproxima. Em seguida, todos se juntam na praia, seguros, à espera dos próximos passos. Enquanto isso, uma menina síria, de uns três anos, abraçada e coberta por um voluntário, mantém um olhar hipnotizado, tranquilo e contínuo ao oceano. Talvez tentasse compreender tudo o que acabara de passar. Talvez nunca tivesse visto o mar antes.
Cada pessoa paga cerca de 1000 dólares para embarcar na Turquia sob muitos gritos, ameaças, socos e coronhadas. Em dias de mar bravo há descontos. Alguns afegãos pagaram entre 200 e 400 dólares. O que eles não sabem é que a sorte é lançada já na direção que saem de lá. Os que chegam ao leste da ilha são direcionados ao campo de Sikamineas, uma mera estação de ônibus com poucas lonas de cobertura. Enquanto os que chegam ao oeste são direcionados ao Oxy, um campo organizado em um estacionamento de uma balada, com roupas, comida e uma grande tenda para descanso na espera pelos ônibus.
Para chegar a ambos, porém, a caminhada é longa. Os voluntários levam o máximo de pessoas que podem em seus carros e vans, sempre com prioridades a famílias e idosas. Para o Oxy, eventualmente há ônibus para levá-los no período da tarde. Para Sikamineas, a maioria, principalmente os jovens homens, se vê obrigada a subir cerca de 4 km de serra, como se subisse a Rodovia dos Imigrantes. No pico, aguardam, sem qualquer informação oficial, possíveis chegadas de ônibus que os levem ao porto, em Mytilene, a 80 km de distância. Muitos ameaçam ir andando e voltam em cinco minutos.
“Estamos aqui há cinco horas. Sempre vem um ônibus e leva mulheres e crianças. Eu entendo, mas é complicado”, reclama o iraquiano Nawar Iltekrihi, que fugiu do Daesh (Estado Islâmico) dirigindo seu carro de Mossul à Turquia, onde o largou. Neste mesmo momento, uma nova leva de famílias chegava ao local, já lotado. Outra leva certamente estaria desembarcando ainda na praia e prestes a subir. “Aqui não tem táxis, restaurantes, nada. Eu só queria comer, pegar um táxi e ir embora”, conclui, sem qualquer preocupação financeira. Uma realidade de muitos iraquianos e, principalmente, sírios. Os demais não contam com a mesma capacidade. Após horas de espera, e muito caos a cada chegada de um novo ônibus, todos foram levados no mesmo dia a Mytilene.
Enquanto isso, a realidade no Oxy é completamente diferente. O local foi totalmente estruturado, no início de setembro, por um grupo de voluntários autônomos, organizado pela página ‘Help for Refugees in Molyvos’ do Facebook, após sofrerem pressão de alguns locais, reforçada pela polícia, para não manter refugiados na turística cidade de Molyvos. A coordenação torna possível a ajuda de qualquer pessoa que deseja passar dias, semanas ou meses. “O bom é que se temos uma ideia, aplicamos no momento. Se percebemos um erro, corrigimos na hora. Não precisamos de qualquer burocracia para isso, como as grandes ONGs”, explica o australiano Shaan Ali.
No local, os recém-chegados entram na fila por bilhetes grátis de ônibus e comidas. Em seguida, basta esperar e pegar roupas disponíveis para doação, já separadas entre bebês, crianças, mulheres e homens. Suas roupas molhadas são penduradas por toda a região. A equipe de trabalhadores é inteiramente formada pelos voluntários autônomos e alguns grupos. Após algumas semanas, porém, a ONU disponibilizou uma grande barraca para espera e garantiu seu logo presente no local.
A prioridade síria
Já em Oxy, a hipocrisia europeia começa a tomar forma. Únicos tratados legalmente como refugiados, e não imigrantes econômicos, os sírios são colocados em ônibus direcionados ao campo Kara Tepe, em Mytilene, enquanto os demais são levados ao campo de Moria. Em Kara Tepe, o sentimento é de um acampamento de férias, já em Moria, antigo centro de detenção local, a sensação é de estar de fato em uma prisão lotada.
“Não concordo com isso, mas é o que nos dizem para fazer”, lamenta o alemão Basil Boyacos, 21, que viajou sozinho de Hamburgo para ajudar no que “fosse preciso”. Este é o sentimento unânime de todo o voluntariado local. Todos sabem que não há uma pessoa sequer que não esteja fugindo de uma guerra e, ainda, de uma guerra iniciada por fortes interesses econômicos e participação direta da Europa e dos EUA.
Em Kara Tepe, os sírios têm diversas barracas disponíveis para se acomodar e o registro que lhes concede um mês de estadia na Grécia é feito no mesmo dia. Há diversas ONGs internacionais, como Médicos sem Fronteiras, Save the Children, Islamic Relief, entre outras, mantendo frequência de comida, água e cuidados a crianças. Os sírios, porém, têm boa capacidade financeira e podem se alimentar também nas barracas em frente e até se hospedar em hotéis no centro, como turistas comuns.
Em Moria, ao contrário, a energia de um antigo centro de detenção é o que prevalece e a burocracia elevada para o registro mantém os refugiados por até cinco dias no local. A alimentação distribuída por organizações é escassa. Apenas alguns voluntários autônomos oferecem comidas, mas sempre insuficiente para o tamanho da fila e da fome. “Muitas ONGs recebem doações do mundo inteiro para ajudar os sírios, então elas têm que prestar contas disso. Entre as organizações islâmicas, também há um sentimento de solidariedade mais elevado em relação aos sírios do que aos outros”, explica um voluntário de Manchester. “Nós, ao contrário, viemos para ajudar a humanidade. Não me importa se são sírios, afegãos, senegaleses ou iraquianos”, conclui, após uma tarde inteira em Moria distribuindo comida, brincando com crianças e melhorando, no que for possível, a infraestrutura do lugar.
Para conseguir o mesmo registro de um mês de estadia na Grécia, todos se amontoam em frente a uma espécie de prisão dentro da prisão, onde entram seis pessoas de cada vez. São seis cabines no local, mas há relatos de que apenas duas são utilizadas, o que gera a demora. Policiais constantemente empurram agressivamente as pessoas que começam a se aproximar da frente da fila para estudar como anda todo o processo.
A saída da ilha
Assim que conseguem o registro, falta pegar as grandes filas para comprar os bilhetes das balsas rumo a Atenas ou Kavala, ao norte do país. A segunda opção é mais cara e disponível apenas para as quartas e sábados. Em seguida, o embarque é feito de uma forma organizada pelo exército e separada dos demais turistas, que entram antes. Dentro do barco, não há mais distinção. Crianças brincam e correm por todo lugar e a mistura de culturas mostra sua face mais humanizada. Nas cafeterias, gregos interagem continuamente com sírios, maioria no barco para Kavala, e vice-versa. Na chegada, todos seguem seus rumos. Ainda, como uma grande massa em busca de uma vida em paz e oportunidades de estudos.
O afegão Milad Jafari, 16, já passou por todo este processo em Mytilene com sua família, em uma época ainda mais complicada. Acampou em uma praça no centro de Atenas por alguns dias à espera de dinheiro pelo Western Union. Seguiu longas viagens. Alguns ficaram na Áustria, alguns na Alemanha. Após mais de duas semanas, ele chegou a Lysekil, na Suécia, são e salvo na casa de seu irmão. “Fiquei pensando hoje em toda a minha jornada. Superei a morte por vezes e vezes”, afirma por skype. De agora em diante, sua busca será ainda mais árdua e duradoura, podendo levar anos. Terá a missão de estudar e trabalhar como um cidadão refugiado, enquanto torce para receber o asilo no país.
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Fernando Moura é jornalista.