Arábia Saudita: o paraíso dos decapitadores
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- Robert Fisk
- 26/01/2016
A orgia de decapitações na Arábia Saudita – 47 no total, incluindo a do respeitado clérigo xiita Nimr Raqr – foram dignas de ações do Estado Islâmico (EI). Talvez se tratasse disto. Porque este extraordinário banho de sangue no reino sunita dos Al-Salud – destinado claramente a enfurecer os iranianos e todo o mundo xiita – volta a sectarizar um conflito religioso que o EI tentou polarizar por todos os lados e meios.
A única coisa que faltava era o vídeo das decapitações – porque as 158 decapitações do ano passado estavam perfeitamente em sintonia com os ensinamentos wahabistas do “Estado Islâmico”. A famosa máxima “sangue chama sangue”, de Macbeth, se aplica, sem dúvida, aos sauditas, cuja “guerra contra o terror” agora justifica derramar o sangue que ainda resta, tanto sunita quanto xiita. Mas com que frequência aparecem os anjos do Deus Misericordioso ao ministro do interior saudita, o príncipe Nayef bin Mohamed?
Pergunto isto porque o Sheikh Nimr não era qualquer clérigo. Passou anos formando-se como erudito em Teerã e na Síria como uma liderança xiita venerada nas orações de sexta-feira da província oriental da Arábia Saudita. Um homem que se manteve distante dos partidos políticos, mas exigiu eleições livres e foi detido com certa regularidade e torturado – como contou o mesmo – por se opor ao governo sunita wahabista saudita. Sheikh Nimr acreditava e pregava que as palavras são mais poderosas que a violência. A caprichosa teoria das autoridades sauditas de que este banho de sangue não foi sectário – pois decapitou tanto a sunitas quanto a xiitas – se assemelha muito com a clássica retórica do EI.
Depois de tudo, o EI corta as cabeças dos “apóstatas” sunitas e dos soldados sírios e iraquianos sunitas tão facilmente como mata aos xiitas. O Sheikh Nimr teve a mesma sorte que teria em mãos de altas lideranças do “Estado Islâmico”, só que a recebeu dos sauditas – ainda que sem um juízo peudo-legal, como denunciado pela Anistia Internacional.
Mas os assassinatos representam muito mais que o mero ódio dos Al-Saud sobre um clérigo que se alegrou com a morte do ex-ministro do interior da Arábia Saudita – o pai de Mohamed bin Nayef , o príncipe herdeiro Nayef Abdul al-Salud – com a esperança de que iria ser “comido por vermes e sofreria os tormentos do inferno em seu túmulo”. A execução de Nimr dará um novo impulso à rebelião houthi no Iêmen, que os sauditas têm invadido e bombardeado este ano em tentativa de destruir um aliado dos xiitas. Enfureceu a maioria xiita em um Bahrein governado por sunitas. Os próprios aiatolás iranianos já declararam que a decapitação provocará a ruína da família real saudita.
Também enfrenta o Ocidente com o mais embaraçoso dos problemas do Oriente Médio: a contínua necessidade de humilhar-se e prostrar-se diante dos ricos e autocráticos monarcas do Golfo, ao mesmo tempo em que expressa timidamente seu mal-estar pela grotesca carnificina que os tribunais sauditas acabam de impor aos inimigos do reino. Se o EI houvesse cortado cabeças de sunitas e xiitas em Raqqa – especialmente a de um clérigo xiita tão problemático como o Sheikh Nimr – poderíamos estar seguros de que David Cameron teria tuitado seu desgosto por um ato tão repugnante. Mas o homem que deixou até a bandeira britânica a meio mastro diante da morte do último rei deste macabro estado wahabista vai utilizar uma cuidadosa linguagem diplomática para comentar tais decapitações.
Em contrapartida, muitos homens sunitas da Al Qaeda também perderam a cabeça – literalmente – nas mãos dos verdugos sauditas, e a pergunta que fazem em Washington e nas capitais europeias é se estão os sauditas tratando de destruir o acordo nuclear iraniano ao obrigar seus aliados ocidentais a apoiar estas atrocidades. No obtuso mundo em que vivem, os sauditas seguem fazendo gala da coalizão “antiterrorista” de 34 nações, majoritariamente sunitas, que supostamente formam a legião de muçulmanos que se opõe ao “terror”.
As execuções foram, sem dúvida, uma forma sem precedentes de dar as boas-vindas ao Ano Novo por parte dos Al-Saud – ainda que não tão espetacular publicamente como o castelo de fogos artificiais de Dubai, que teve lugar enquanto ardia um dos melhores hotéis dos Emirados. Mais além das implicações políticas, porém, também há uma pergunta óbvia a ser formulada, no mundo árabe, sobre a Casa de Saud: ficaram loucos os governantes da Arábia Saudita?
Quem lança a primeira pedra?
Quando a Arábia Saudita, com ajuda de David Cameron, foi eleita para o Conselho de Direitos Humanos da ONU, em 2013, o fato foi considerado uma farsa. Agora, poucas horas depois de que os sauditas muçulmanos sunitas cortassem a cabeça de 47 dos seus inimigos – entre eles um proeminente clérigo muçulmano xiita – essa designação parece ainda mais grotesca. O mundo e os direitos humanos estão escandalizados, e o Irã xiita fala de um “castigo divino” que destruirá a Casa de Saud. Multidões atacam a embaixada saudita em Teerã. O que há de novo no front?
Durante séculos foram buscados castigos “divinos” de distintas maneiras contra governantes do Oriente Médio, o mais recente contra Bashar Al Assad da Síria, que segundo o ministro francês do exterior “não merece viver neste planeta”. Já faz muito tempo, também, que os sauditas incitam os EUA a “cortar a cabeça da serpente iraniana”, mas obviamente se conformaram, ao menos até agora, em cortar apenas a do Sheikh Nimr. Nem todos os gritos e uivos poderão deter o fluxo de petróleo dos poços sauditas, nem evitarão que os amigos do reino sigam se utilizando de “dribles” para desculparem-se de seus escândalos.
As execuções são “assunto interno”, talvez “um passo atrás, um retrocesso”, e sem dúvida “acontecimentos que não contribuem com a paz no Oriente Médio”. Toda esta verborragia clássica, devo citar, de Crispin Blunt, o presidente conservador do Comitê de Assuntos Exteriores da Câmara dos Comuns britânica, foi produzida horas depois da decapitação em massa. Também declarou ao Canal 4 britânico que “temos de julgar quando é apropriado intervir com os sauditas em tais questões”. É claro que sim. Eu apostaria que nunca. Depois de tudo, não é possível fazer tremularem as bandeiras a meio mastro quando o último rei da Arábia Saudita falecer de morte natural, para em seguida mostrar nervosismo quando os sauditas começam a separar os pescoços dos seus inimigos.
Apesar do quadro desfavorável, há um pequeno passo que aqueles que protestam, se indignam e rugem pela recente carnificina saudita podiam considerar, se conseguirem se acalmar o suficiente para se concentrar na letra pequena. Porque a resolução que instituiu o Conselho de Direitos Humanos das Nações Unidas – algo de que os sauditas se enchem de orgulho por pertencer – prescreve que todos os membros eleitos devem manter os mais altos níveis de promoção e proteção dos direitos humanos. A Assembleia Geral da ONU é quem elege os membros que ocuparão os 47 lugares do conselho, e tem a faculdade de suspender, mediante votação de todas as partes, os direitos e privilégios de qualquer membro do conselho que com persistência haja cometido violações graves e sistemáticas dos direitos humanos durante sua ocupação no cargo.
Mas eis aqui a dificuldade. Os servis líderes ocidentais é que objetariam a menor insinuação nesse sentido contra a Arábia Saudita – David Cameron, obviamente, junto com seus colegas da França, Alemanha, Itália, de quebra toda a União Europeia e os Estados Unidos – e a qualquer beneficiário da generosidade saudita, e assim teríamos que atestar o absurdo voto do Irã contra o reino. O Irã, vejam vocês, pendurou uns 570 prisioneiros – entre eles 10 mulheres – tão somente na primeira metade de 2015. Isso quer dizer dois enforcamentos diários de “criminosos” e “inimigos de Deus”, cifras que excedem às dos pobres sauditas, que há apenas dois anos punham anúncios para contratar mais verdugos oficiais. Em março, seis sunitas foram executados no Irã em um enforcamento em massa.
Em outras palavras, o “que atire a primeira pedra” – frase que seria literal se os talibãs ainda tivessem o poder no Afeganistão – seria bem feito se olhasse para o próprio histórico. E ademais dos Estados Unidos (28 execuções em 2015, sem contar os ataques com drones, “matanças seletivas” e outros assassinatos extrajudiciais), temos que recordar que no Conselho de Segurança da ONU podemos encontrar vigorosos defensores dos direitos humanos como a China e a Rússia.
Assim, os sauditas têm pouco com que realmente se preocupar com o que diz respeito à ONU, Estados Unidos ou David Cameron. Até a revolução.
Robert Fisk é correspondente do diário britânico The Independent, de onde este artigo foi retirado, no Oriente Médio.
Traduzido por Raphael Sanz, do Correio da Cidadania.
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