Memória de Martin Luther King: ao final de sua vida era um socialista declarado
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- Lee Sustar
- 25/02/2016
Praticamente todos os políticos do Partido Democrata, negros ou brancos, reivindicam o legado de Martin Luther King Jr.
Esquecem, intencionalmente, o fato de que nos seus últimos anos de vida, antes do assassinato em 1968, King rompeu com o presidente democrata Lyndon Johnson por conta da Guerra do Vietnã e o fracasso de sua administração em fazer cumprir os direitos civis no sul dos EUA. Isto é algo que nenhum democrata de hoje estaria em condições de fazer.
Apesar de as reformas exigidas por King durante a maior parte da sua vida serem tímidas em relação às demandas dos negros nacionalistas mais radicais, foram condenadas pelos mesmos democratas que, desde sua morte, têm tentado fazer com que King se converta em um ícone e um símbolo da acomodação negra ao sistema.
Para entender a guinada à esquerda de King é necessário ter em conta as lutas de classe que se encontram sob o movimento pelos direitos civis, assim como o caráter da organização de King, a Southern Christian Leadership Conference (SCLC).
Quando Martin Luther King Jr. apareceu como líder do boicote aos ônibus de Montgomery nos anos 50, já estava à frente de um movimento local cujo exemplo foi seguido em dezenas de outras cidades do sul dos EUA nos anos seguintes. A organização que ajudou a fundar, a SCLC, abriu várias sedes territoriais, mas basicamente era um grupo de organizadores profissionais que se transladava de uma cidade a outra, envolvendo-se nas lutas já iniciadas por estudantes, trabalhadores ou camponeses negros locais.
O objetivo da SCLC não era ajudar estes ativistas a se desenvolverem independentemente, senão liderá-los na luta não violenta contra os segregacionistas e os policiais violentos que apoiavam as leis de Jim Crow. Segundo líderes da SCLC como Hosea Williams e Wyatt Walker, o governo federal se veria obrigado a intervir para apoiar os ativistas por direitos civis e, assim, deter o caos.
A princípio a estratégia parecia funcionar. Uma decisão do Supremo Tribunal apoiou o boicote aos ônibus de Montgomery. O presidente Kennedy introduziu em 1963 a legislação sobre direitos civis depois das marchas e manifestações de Birmingham e também de quando policiais de Los Angeles atacaram reiteradamente as manifestações organizadas pela SCLC em 1962. Sangrentos enfrentamentos em St. Augustine (Florida) e Selma (Alabama) empurraram o sucessor de Kennedy, Lyndon Johnson, a submeter à aprovação do Congresso a Lei de Direito ao Voto, em 1965.
Kennedy e Johnson apoiaram os direitos civis somente quando pensaram que era necessário para manter afastada a rebelião militante negra. De fato, queriam evitar inimizades com a parte mais conservadora e direitista de seu partido, a Southern Dixiecrat. King e os protestos da SCLC seriam permitidos enquanto se mantivessem não violentos, e se limitariam a lutar contra a segregação no sul, sem questionar a discriminação econômica racista com amplas raízes no capitalismo dos Estados Unidos.
Até 1965, a credibilidade de Martin Luther King havia diminuído entre os ativistas do sul. A cultura da SCLC de chegar a uma cidade no meio de uma revolta, dar-lhe visibilidade nos meios de comunicação e negociar um acordo, irritava tanto os ativistas negros locais quanto o crescente setor radical e não violento do Comitê de Coordenação Estudantil, que estava tentando apoiar os negros do sul no desenvolvimento de uma liderança própria.
Entretanto, o negro nacionalista Malcom X começou a defender, não sem razão, que a não violência propagada por King e o SCLC expunha os negros a agressões policiais e ataques racistas.
As críticas a King tiveram um novo alicerce em Selma, em 1965, onde a polícia golpeou e lançou gases contra os ativistas que tentavam marchar até a capital do estado do Alabama, Montgomery. Quando uma segunda marcha foi organizada, a polícia não a impediu. Entretanto, King levou os manifestantes de volta a Selma para não desafiar a ordem judicial. Esta retirada, junto com a aceitação por parte de King de certas concessões simbólicas das autoridades de Selma, foi qualificada como traição por muitos radicais.
As diferenças se fizeram ainda mais latentes um ano depois de que James Meredith, o primeiro estudante negro a ir à Universidade do Mississippi, foi baleado durante seu protesto solitário pelo estado. King e o líder da SNCC (Coordenação do Comitê Estudantil Não-Violento, na sigla em inglês), Stokely Carmichael, (mais tarde conhecido como Kwame Ture) estiveram entre os líderes por direitos civis que se uniram às centenas de ativistas que completaram a marcha de Meredith no verão de 1966.
Acossados por brutamontes racistas e pela brutalidade policial ao longo de todo o caminho, os manifestantes se uniram com entusiasmo ao cântico Black Power de Carmichael e começaram a prestar atenção em suas ideias nacionalistas. Ainda que King tenha se negado a se unir com outros líderes negros mais conservadores em seu ataque ao slogan Black Power, por supostamente ser racista, tampouco prestou seu apoio, justificando que implicava violência e, portanto, distanciaria um potencial apoio político branco.
“Temos que transformar nosso movimento em algo positivo e criativo”, afirmou quando pedida sua opinião sobre Carmichael. Para os militantes negros, King era visto como um traidor. Mas para os democratas liberais, preocupados pela influência das ideias do nacionalismo negro e pelas revoltas generalizadas em cidades do norte, a posição de King parecia um apoio velado ao Black Power.
King reconheceu que tentava construir uma ponte da forma mais ampla possível. “Se o governo quer que mantenha as pessoas na não violência, terá que conceder-me algumas vitórias”. De fato, King não tardaria em enfrentar os democratas do norte de maneira aberta. Com a abolição da última lei segregacionista de Jim Crow e com a Lei do Direito ao Voto de 1965, King fixou sua atenção ao crescente movimento de militantes negros do norte.
A ruptura final com o presidente Johnson chegou em abril de 1967, quando King incitou os Estados Unidos a retirar-se da guerra “colonial” no Vietnã.
Quando um já importante número de senadores democratas estava contra a guerra, a maior parte dos ativistas por direitos sociais manteria seu apoio à administração Johnson. Jornais liberais como o New York Times ou o Washington Post, que haviam se mostrado próximos a King durante as lutas pelos direitos sociais no sul, agora o atacavam por sua posição contrária à guerra.
Um vingativo Lyndon Johnson permitiu ao FBI intensificar seu acosso a King e outros líderes da SCLC. O presidente ficou indignado quando soube da intenção de King em liderar uma Marcha dos Pobres em frente ao capitólio de Washington.
Johnson e os democratas haviam confiado durante muito tempo na tática da não violência e no apoio de King a seu partido como contrapeso ao crescente número de radicais do Black Power. Quando King denunciou a guerra em 1967, os democratas começaram a considerá-lo um traidor.
De todas formas, a ruptura de King com os democratas não o ajudou a angariar apoios dos negros do norte, onde as revoltas de rua apareciam em dezenas de cidades. A política dos nacionalistas negros mais radicais – em especial sua preferência pela autodefesa contra a violência racista – parecia estar mais perto das revoltas nestas circunstâncias.
Atacado da direita à esquerda, King se viu forçado a repensar sua carreira e a organização que liderava, a SCLC. “Devemos admitir que nossas conquistas ficaram limitadas no sul”, disse em um encontro da direção da SCLC em 1967, e que a SCLC tinha de conclamar uma “radical redistribuição da riqueza e do poder”. Em diferentes ocasiões, King manifestou a seus colaboradores que os Estados Unidos necessitavam um socialismo democrático que garantiria trabalho e acessos para todos.
Outros líderes da SCLC, como Andrew Young, Jesse Jackson e Ralph Abernathy, eram contrários aos planos da Marcha dos Pobres. As sedes locais da SCLC no sul haviam sido descuidadas em tentativa de organização contra a segregação em Chicago, e os grupos do norte também eram muito débeis.
Por outra parte, os planos de King enfrentaram outro setor de orientação capitalista da SCLC, a Operation Breadbasket, dirigida por Jesse Jackson. “Se você está interessado em seguir seus planos que não podem manter as linhas da organização, siga adiante”, disse Martin Luther King em resposta às críticas de Jackson a sua marcha. “Se queres cavar seu próprio nicho a nível social, adiante, mas por Deus, me deixe em paz”.
Em qualquer caso, os democratas consideraram como traição a campanha de King pela gente pobre e a direita dizia que podia provar que King era um comunista. Todos estes fatores, somados à campanha presidencial do governador segregacionista do Alabama, George Wallace, fizeram que a vida de King começasse a ser ameaçada.
Frente à hostilidade da administração Johnson, as críticas, tanto por parte dos negros nacionalistas como do establishment negro, e com sua organização dividida, King se encontrava mais isolado politicamente do que nunca quando foi assassinado em Memphis, no dia 4 de abril de 1968, menos de três semanas antes de que a campanha dos pobres começasse. King havia viajado a Memphis para apoiar a greve dos trabalhadores negros da saúde (ele foi o único ativista de impacto estadual que declarou tal apoio).
Não passou muito tempo depois de sua morte para que os meios de comunicação das classes dominantes começassem a transformar a imagem de Martin Luther King na de um santo inofensivo.
Para conseguir isto, tiveram de enterrar o legado real de Martin Luther King, tanto do líder das primeiras lutas do movimento por direitos civis, que rechaçou aceitar as petições de paciência e moderação de seus aliados democratas, como o mais radical líder negro do final dos anos 60, cuja visão de que a sociedade deveria mudar havia se ampliado substancialmente.
Lee Sustar é editor do Socialist Worker.
Retirado de Jacobin Magazine.
Traduzido do espanhol por Raphael Sanz, do Correio da Cidadania