Por que o Podemos fracassou
- Detalhes
- Emmanuel Rodríguez
- 04/07/2016
Fracasso é uma palavra pesada demais, mas certamente a mais apropriada para um partido que como nenhum outro se empenhou na retórica de “vencedores” e “perdedores”, que desde o começo insistiu que tinha nascido para “vencer”. A palavra se torna ainda mais adequada se levarmos em conta que, na eleição de 26 de junho (26J), Unidos Podemos não foi vencido por ninguém que não ele próprio.
A vitória não foi, obviamente, do PSOE, que perdeu 100 mil votos em relação às eleições de 20 de dezembro de 2015 (20D). E a duras penas podemos atribuí-la ao partido dirigido por esse grande leitor de código de barras que é Mariano Rajoy. O Partido Popular (PP) somou quase 700 mil votos a mais do que na eleição anterior, dos quais 400 mil foram subtraídos do Ciudadanos (Cs) e outros 300 mil de outras fontes (a maioria, de abstencionistas). No total, o bloco conservador PP-Cs obteve apenas 300 mil votos a mais. Não é grande coisa. A “Espanha da direitona”, expressão tão cômoda quanto explicação universal para os esquerdistas, desempenhou nesta eleição um papel menor. Precisamente, o de uma minoria formada por 23% dos 34 milhões de espanhóis com direito a voto (sem contar os inscritos no estrangeiro).
A verdade é que a coligação Unidos Podemos recebeu um milhão e cem mil votos a menos do que somavam as suas partes, — Podemos, as confluências e a Esquerda Unida (IU), — em 20 de dezembro do ano passado. E é certo, também, que esse 1,1 milhão de votos apareciam em todas as pesquisas prévias que, sem grandes variações, apontavam a ultrapassagem do PSOE. Pois bem, na urna, Unidos Podemos ficou atrás do PSOE não somente em número de cadeiras no parlamento, como também em número absoluto de votos. Quase um de cada cinco eleitores que estava disposto a votar exclusivamente em Unidos Podemos decidiu ficar em casa ou fazer outras coisas.
A razão? Desta vez, não percam tempo pedindo informação no balcão. Dirão a vocês que a confluência foi um fracasso. Se forem da corrente “populista” da organização (o lado de Iñigo Errejón), dirão nos bastidores que a IU não agrega, que a liderança de Pablo permanece, que o eleitorado moderado se assusta etc. Se forem daqueles que atentam um pouco mais aos dados, explicarão que uma parte dos eleitores de um partido (IU), que várias vezes esteve perto de decidir não disputar mais eleições, não se sentia confortável com a campanha (a propósito, dirigida por Errejón), ou que tantas hashtags meigas e tantas bandeiras da Espanha acabaram relegando a segundo plano o eleitor tradicional das esquerdas.
Certamente, quem dizia nas pesquisas que iria votar em Unidos Podemos e não teve a vontade de fazê-lo pode argumentar todo tipo de razões. Haverá decerto os que não foram votar por preguiça, por estarem cansados de tantas eleições, ou simplesmente porque naquele dia fazia muito calor. Também haverá os que vão fornecer argumentos políticos: não compareceram descontentes com a prepotência do partido que “sempre vence”, ou porque para votar “socialdemocracia” é melhor deixar que governe o original, ou porque a confluência não os convencia, já que não passava de uma lista fechada, sem primárias nem validação democrática, ou então porque estão de saco cheio de um partido que em termos de nova sociologia da vida cotidiana se resume a buscar o voto coxinha. E assim um largo etcétera se projetará em todas as direções.
Mas toda essa casuística, que no fim acaba sendo infinita, apenas pode interessar aos aprendizes de dirigente de campanha, aos especialistas em análise eleitoral e àqueles partidos que se interpretam a si próprios segundo os marcos da política convencional.
Se o que se quer é uma explicação, convém não prestar muita atenção ao marketing eleitoral e começar a entender o fracasso no marco bem mais complexo do ciclo político, da crise política que o 15M abriu. A “apatia do voto no Podemos” tem muito menos a ver com as razões individuais do que com a falta de convencimento coletivo ao redor de um projeto político, de cuja construção temos sido testemunhas privilegiadas. Vale dizer que o Podemos cresceu como escolha real de governo pela única razão de ter sabido surfar sobre uma onda de mudança, feita de uma esfera pública crítica e ativa, de uma multidão de movimentos saídos antes e depois do 15M, e de uma lógica de comunicação em rede que opera além dos meios de comunicação convencionais.
No dia 26 último, na realidade desde bastante tempo, uma parte majoritária desse espaço permaneceu inativa. E o fez por aborrecimento com a política profissional, por falta de convencimento no projeto, ou por simples incapacidade para poder defendê-lo. Para ficar com uma única imagem: quando nos últimos dias, em qualquer ambiente familiar ou de trabalho, alguém anunciava que não votaria em Unidos Podemos por N razões, não aparecia ninguém com capacidade de convencê-los, pelo menos usando argumentos, para que votasse. Ninguém comparecia para explicar que, apesar dos inúmeros defeitos do Podemos, ainda mereceria que se apostasse nele.
Para entender a derrota do Podemos, é preciso atrever-se a fazer uma pequena viagem no tempo, para pelo menos cinco anos atrás, quando, num dia como hoje, o 15M estava montando as acampadas das praças com o grito “chamam de democracia, mas não é”. Naquela época, o movimento evitava a construção de lideranças pessoais, defendia uma política horizontal e amateur, e tinha no centro de suas preocupações incluir o maior número possível de gente comum. O sucesso do Podemos nos seus primeiros tempos, quando se declarava um partido “antipartido”, se deveu a ter se apresentado como uma xérox política do 15M, expandindo-se segundo o mesmo padrão de proliferação que as assembleias locais (círculos) e a sua replicação nas redes.
A primeira crise se deu quando o Podemos começou a aparecer na cena apenas como um partido a mais, com a sua direção oligárquica e seus infinitos pegas-pra-capar pelo poder interno, e quando a sua estratégia de transversalidade veio abaixo com a irrupção do Ciudadanos. Daquela faixa de 15-18% de expectativa de voto, em que estavam encalhados desde o segundo semestre de 2015, não se descolaram por seus próprios acertos, mas pelo sucesso das candidaturas municipalistas em algumas cidades, segundo novas formas de comunicação, envolvimento e organização mais próximas do 15M. A partir delas, o Podemos voltou a elevar o seu teto eleitoral. A memória das municipalistas impulsionou as possibilidades do Podemos, no momento em que apareceu como “confluência” e obteve os seus melhores resultados eleitorais.
Nesta eleição, contudo, já não sobrava muito daquele impulso social e disseminado. O único feito desta campanha eleitoral foi confirmar a ausência dele. As patriotadas, a fala moderada, a “socialdemocracia” e o triunfalismo só colheram a indiferença. E muitos, enfim, não foram votar. A única diferença significativa entre a campanha do 20D e do 26J foi o grau em que esta apareceu como campanha de partido, que encontra cada vez menos elementos de ressonância fora dele.
Não é um problema exclusivo da direção do Podemos, como também de uma lógica compartilhada pela “nova política” que esteja voltada exclusivamente a restabelecer a representação. De fato, foram perdidos votos em todas as regiões autônomas. Mais de 200 mil em Andaluzia e outro tanto em Madrid. Juntas, somaram 40% desse 1,1, milhão de “votos ausentes”. Mas também foram perdidos nas “confluências”, onde a direção da campanha dependia muito menos de Madrid do que dos ativos locais: 130 mil em Valência, 80 mil na Catalunha e mais de 60 mil na Galícia. Foi um aviso aos navegantes de que o legado municipalista não é eterno e que os pactos de gabinete tampouco conseguem sempre passar por “nova política”.
Durante o último ano e meio, Podemos prometeu essencialmente duas coisas: 1) que podiam ganhar as eleições; 2) que uma vez no governo dariam uma resposta cabal às exigências por mudança. A segunda promessa sempre foi duvidosa e, com certeza, em algumas de suas manifestações locais, como no caso de Manuela Carmena (prefeita de Madrid), completamente desmentida. Já a primeira promessa funcionou como um entorpecente para uma infinidade de gente, que por puro interesse (porque desejava participar da indústria da representação), por necessidade de crer ou por boa fé pensou que este era o momento próprio da política profissional, a hora de delegar a vez a um grupo inteligente e capaz para deslanchar o que a “gente” não conseguiria fazer por si própria. Na urna, essa promessa provou ser, uma vez mais, falsa. Sem a “gente” e sem política que vá além dos especialistas e do jargão dos políticos profissionais, não se vence eleição, ao menos se o que se pretende é impulsionar um projeto de mudança real.
O terremoto do 26J pode desencadear novos sismos. Pode deflagrar a guerra interna ao partido, entre partidários de Pablo e de um Errejón que, apesar de ser o principal responsável por este fracasso, considera que chegou a sua hora. Ou pode, na melhor das hipóteses, promover movimentos de mudança e reflexão que, quando não encalham em soluções mágicas (como aquelas superficiais de uma mudança de rumo e discurso), quiçá podem servir como uma saudável reviravolta interna. Seja como for, sem entender que a radicalização democrática não se encaixa bem nos canais da política institucional, nos partidos oligárquicos convencionais e na adesão inquestionável a figuras carismáticas, se voltará a cair nas mesmas ilusões do 26J.
As suas senhorias da “nova política” deveriam enxergar e começar a pensar de outras maneiras. Desgraçadamente, é muito improvável que recuperem o frescor e a visão que, faz apenas alguns anos, eram o sentido comum daquela onda gigantesca pela mudança, aquele que, num dia como hoje de 2011, pensava em ampliar e multiplicar o que já se tinha conseguido em seis semanas de acampadas nas praças.
Leia também:
‘Brexit’ amedronta, espanhóis voltam a votar em Rajoy e desiludem Podemos na Espanha
Emmanuel Rodríguez é historiador, sociólogo e ensaísta, editor de Traficantes de Sonhos e colaborador da Fundação dos Comuns.
Retirado do Contexto y acción, e traduzido por Bruno Cava, da Universidade Nômade.