Qual a herança da Revolução Francesa?
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- Lincoln Secco
- 18/07/2016
A Revolução Francesa finalmente acabou. Ao menos para os intelectuais e políticos (socialistas ou conservadores) que outrora a invocavam no hexágono francês em nome da République. Já faz algum tempo, é verdade.
Em 1889 a burguesia francesa se deixou liderar por uma ala republicana, particularmente depois da aventura do ex-ministro da Guerra General Boulanger, que tentara fazer o seu Coup d’État.
O chamado boulangismo provocou a resistência republicana e condicionou a transformação da Revolução Francesa numa espécie de mito fundador da Terceira República.
Ideia de Revolução
A maioria dos homens e mulheres daquela época concordava com certa ideia da Revolução. E fundamentalmente acordavam entre si que um processo revolucionário de importância europeia, talvez mesmo mundial, havia acontecido na França, independentemente da visão que tinham dele.
As bases daquele “acordo” haviam sido assentadas não por socialistas, mas por liberais. Thiers, Guizot, Mignet e a impressionante Madame de Stäel-Holstein, uma aristocrata que mantinha um círculo de pensadores ao seu pé, aceitaram o processo como um bloco.
Mignet, por exemplo, revelou que o sujeito daquele processo tinha que ser a classe média (entenda-se: a burguesia). Mas para se manter, ela precisou mobilizar o povo e este reivindicou para si o governo. Eis a chave que abre a porta à explicação do terror. O papel atribuído aos jacobinos era o de destruir o Antigo Regime. O de Napoleão Bonaparte era erguer a nova sociedade diante de uma Aristocracia estabelecida que se ria do parvenu e de sua nobreza fake.
Esse era, grosso modo, o modelo de explicação histórica construído no período da Restauração (1815-1830). Ele foi herdado por Marx, pela esquerda jacobina do século seguinte e pelos comunistas.
É verdade que entre os marxistas houve extenso debate e em geral eles deixaram o individualismo burguês e os direitos humanos em segundo plano. Não se apropriaram de fato da Revolução Francesa. Eric Hobsbawm em seu livro Ecos da Marselhesa diz explicitamente que os marxistas mais retiraram do que deram àquele modelo de explicação liberal de 1789.
Segundo Centenário
Conta-se que na época do bicentenário o líder chinês Deng Xiao Ping teria dito que ainda era cedo para se falar da Revolução Francesa. Na verdade, ele queria dizer que não se devia falar de outra revolução ainda mais recente: a chinesa.
O segundo Centenário da Revolução (1989) se deu no sentido inverso à celebração do primeiro. O contexto era outro: o neoliberalismo avançava, a socialdemocracia girava à direita, o Estado de Bem Estar foi acometido por uma crise fiscal e, finalmente, o ano de 1989 coincidiu com a queda do Muro de Berlim e o fim do socialismo real.
Neste ínterim a historiografia já havia atacado o modelo liberal da Revolução que surpreendentemente ela julgava ser “marxista”. É importante lembrar que depois de Outubro de 1917 a herança da Revolução Francesa se misturou à da Revolução Russa. As comparações históricas eram quase inevitáveis.
A revisão historiográfica tentava agora mostrar que na longa duração a Revolução tinha sido só uma derrapagem na história. A França já vinha se desenvolvendo num sentido capitalista antes e seu verdadeiro take off industrial só aconteceu no Segundo Império (1852-1870), o de Napoleão III. Além disso, o revisionismo visou destruir a ideia de uma luta entre a burguesia e a nobreza.
Sem entrar no mérito intrínseco ao debate historiográfico, a questão que desejo discutir aqui é: se é verdade, como diz Hobsbawm, que muitos dos historiadores revisionistas miraram nos comunistas, mas acertaram nos liberais clássicos, por que isso foi possível? A pergunta é relevante porque aqueles historiadores não eram, salvo exceções, assumidamente de Direita.
A burguesia liberal que havia aceitado a Revolução em bloco, agora cedia lugar à barbárie, na expressão de Vito Letizia. 1789 tornava-se desnecessário. Simples assim.
Hobsbawm fornece um conjunto de elementos explicativos para isso. Entre eles destaca que os historiadores da tradição republicana eram professores de província e não intelectuais da mídia; e que Paris deixara de ser a cidade das revoluções para se tornar o lócus enobrecido da classe média.
A barbárie administrada
Ainda assim, a pergunta central persiste sem resposta: por que, apesar disso, as classes dominantes europeias, acostumadas a dominar com uma hegemonia assentada em princípios liberais e no consentimento de seus “inferiores sociais”, passaram a desdenhar aquilo que parecia o arcabouço irrenunciável do “povo francês”? Refiro-me à democracia eleitoral, às liberdades democráticas e a uma economia de mercado convenientemente regulada para sustentar a cidadania social. Como isso foi possível?
Não há uma explicação única. Os sistemas representativos que o historiador revisionista François Furet opunha à democracia direta das ruas, em sua explicação da Revolução Francesa, soçobram dia a dia. Os tecnocratas das principais instituições que comandam a economia europeia não são eleitos. A economia foi naturalizada e como disse Vito Letizia, o governo deixou de ser “político” e um novo vocabulário incorporou a ideia de “governança”.
Não se elege alguém para arbitrar a luta de classes, mas para administrar coisas. A gestão é eminentemente técnica e os contestadores são jogados no limbo dos ideólogos. Curiosa inversão: os marxistas criticavam a ideologia como uma consciência invertida e indicavam uma futura “administração das coisas”. Mas a superação da política seria resultante da revolta universal do proletariado e não a resultante de uma reengenharia de gestores.
No final da Segunda Guerra ainda seria possível ver o conservador Charles De Gaulle, o comunista Maurice Thorez e o futuro presidente socialista François Mitterand num mesmo lado. Já no século 21 o filme de Robert Guédiguian Le promeneur du champ de Mars (no Brasil: “O Último Mitterrand”) exibia a melancólica constatação de que Mitterrand se considerava o último presidente da França. Depois dele, viriam os gestores... E para evitar o mal maior da família Le Pen os franceses tiveram que optar por Jacques Chirac, pelo playboy envelhecido Sarkozy e, finalmente, o ennuyant François Hollande, tedioso até em suas aventuras noturnas.
Eu acrescentaria finalmente outro elemento para o descrédito daquele modelo liberal da Revolução Francesa: quem é o “povo francês”? Para os netos de argelinos o que representam os ideais de 1789 ensinados na escola?
O mesmo poderia ser perguntado para os povos de Espanha ou aos imigrantes em qualquer canto da Europa. As principais seleções “nacionais” da Eurocopa são conjuntos de estrangeiros naturalizados em busca de fama ou dinheiro, embora alguns tentem cantar o Hino nacional que ainda antecede os jogos de futebol.
Ao mesmo tempo, surge na contramão dos grandes países o nacionalismo dos pequenos. Sucessivos plebiscitos são inventados para afirmar o sentimento nacional. Não é um paradoxo, mas as duas faces de um processo que se totaliza exatamente nesses momentos que parecem negá-lo.
A globalização gera uma classe média sem pátria, mas os trabalhadores em seus subempregos acham que ainda têm. O capital abre fronteiras enquanto uma classe operária ressentida tenta encontrar a identidade no seu pequeno torrão natal.
Seria ainda possível uma ideologia capaz de amalgamar um “povo” em qualquer grande país da Europa? E se for possível, estaria ela no repertório de valores de 1789?
Afinal, qual a Herança da Revolução Francesa?
Nota:
1) Este texto foi escrito para um debate sobre o livro “Diálogos com Vito Letizia – As origens das aspirações modernas de liberdade e igualdade”, organizado em junho de 2016 pelo coletivo Cemap-Interludium. Entre as várias intuições do autor da obra há uma que merece ser destacada. Ele estabelece um cotejo entre a comemoração do primeiro centenário da Revolução Francesa. Eu desenvolvo exclusivamente essa comparação como veremos a seguir.
2) Vito Letizia diz literalmente que “o socialismo é estranho à Revolução Francesa”.
Lincoln Secco é historiador.