Correio da Cidadania

Turquia: um golpe by USA-OTAN fracassado

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Não procede a proposta de autogolpe de Erdogan, 62, lançado durante a noite de 15 de julho por fração das forças armadas turcas. Atualmente, são irrefutáveis as provas sobre a seriedade do movimento contra o presidente e a reorientação da política turca em relação à Rússia. A análise do movimento militar e dos fatos permite igualmente induzir a matriz estadunidense do golpe. É quase impossível que o núcleo duro do comando da OTAN, capitaneado pelos USA, não estivesse a par da operação. E agora as provas materiais da direção USA começam a ser reveladas. As sequelas e os desdobramentos da fracassada operação são toda uma outra questão.

 

Parece piada, mas o major Murat Çelebioglu, do núcleo central do comando golpista, abriu grupo no WhatsApp, às 21:15, do dia 15 de junho, meia hora antes do início das operações, para mais facilmente coordená-las. A revelação das comunicações golpistas permite reconstituir, minuto a minuto, o lançamento, a luta pela estabilização, o anúncio do sucesso e o fracasso da aventura. E ela justifica não o direito, mas o dever de Erdogan de passar pelas armas os altos oficiais que ordenaram que se disparasse contra populares desarmados! (La Repubblica, Gianluca di Feo, 26.07.2016, p.6.)

 

Também não se mantém a proposta de golpe-opereta, desorganizado, com poucas tropas, ao estilo Brancaleone, sabido com anterioridade e permitido, por Erdogan, para assentar bote geral contra os direitos democráticos turcos. A história real é diversa. Os golpistas contavam com quase dez mil homens, 35 aviões, 37 helicópteros, 246 blindados, três navios. Por duas horas, o comando do golpe manteve a iniciativa. Após sair às ruas, controlar pontos centrais em Istambul e Ankara e anunciar o controle do país, outras tropas começaram a pôr-se em marcha, para aderir à revolta. Uma boa parte das três armas esperou saber para que lado soprava o vento para segui-lo sem expor-se ao perigo.

 

A adesão militar inicial ao golpe não foi maciça e imediata. Erdogan foi apoiado pela poderosa força policial-militar e por facção das forças armadas. Sobretudo, conclamou, às 0:26, a população à sair às ruas contra os golpistas. Dezenas de milhares de apoiadores e opositores do governo ocuparam o centro de Istambul, registrando a oposição irredutível aos oficiais nas vestes de salvadores da pátria. A memória das décadas terríveis de jugo castrense e talvez os sucessos recentes no Egito levaram enorme parte da população a compreender que o pior de tudo seria a ditadura.

Atirem na população!

 

Os golpistas levantaram a bandeira dos direitos humanos e ordenaram que suas tropas disparassem contra a população desarmada que manifestava contra o golpe e dificultava o movimento das tropas e blindados. Por WhatsApp, o coronel Sahin ordenou: “as praças devem ser despejadas de populares de qualquer modo. Não hesitem”. Pelas duas horas da manhã, os golpistas deslocavam-se com dificuldade, cercados por manifestantes que pressionavam soldados e suboficiais. O major Karabekir foi ainda mais enfático: “dispersem-nos, queimem-nos. Nenhum compromisso!” Os manifestantes marcharam para as pontes do Bósforo e o major Aygar comunicou no grupo ter liquidado “vinte ou trinta”.

 

O general Duzenti ordena que se atire na “multidão”. Em Ankara, se dispara sem dó sobre os civis. O Parlamento Nacional e o Palácio Presidencial são bombardeados. Milhares são feridos, mais de cem, mortos.

 

As más notícias, para os golpistas, começam a chegar. Na praça Taksim, em Istambul, tradicional local de concentração de manifestantes, os golpistas são cercados pelos blindados da polícia fiel ao governo e populares. Um F-16 é mandado em apoio aos golpistas, pondo em fuga manifestantes e policiais. Os combates se generalizam. Aqui e ali, aviões de combate e helicópteros a serviço do golpe atiram e matam manifestantes. Porém, se eles recuam e dispersam, a seguir, reagrupam-se e avançam. O que não avança, retrocede.

 

Possivelmente, o golpe se dissolveu ao perder a batalha das ruas. Para limpá-las, aviões, helicópteros, tanques teriam que disparar matando milhares de civis. Se os oficiais eram solidários da conspiração, muitos soldados pensavam que se tratava de operação regulamentar. Numa crise geral, a hierarquia militar se quebra com maior facilidade. Não é certo em que direção os soldados atirariam!

 

Tradicionalmente, o alto comando não arrisca a sorte da corporação em aventura que se defronte frontalmente com a população, quando secundada por forças policiais e frações das forças armadas. Os regimentos que partiram para apoiar o golpe retornaram aos quartéis e os que se mantiveram na neutralidade começaram a pronunciar-se pela legalidade. De madrugada, o major Çelebioglu, moderador do grupo, escrevia: “a operação fracassou, partam!”

O coronel Dogan escreveu-lhe, perguntando: “devemos escapar?” E recebeu como resposta: “faça o que puder para continuar vivo, comandante!” Oficiais fugiram de helicóptero para a Grécia, onde são pouco amados. Foram enviados de volta para a Turquia! Repetia-se na Turquia o grito do coronel Tamarino, do exército brasileiro, derrotado pelos conselheiristas de Canudos: “é tempo de murici! Cada um cuide de si!”

 

Roubar não é feio. Feio é não saber carregar

 

Os fatos sugerem em forma irretorquível a matriz do movimento e seu grande inspirador. Os três regimentos que iniciaram o golpe são precisamente as tropas de ponta do exército turco nas Forças de Intervenção Rápida da OTAN. Elas têm combatido sob ordens dos USA no Afeganistão, sob o comando do general John F. Campbell, um “boina verde” oportunamente reformado há pouco. Nessas tropas, sequer uma mosca se move, sem a licença para tal dos USA. No golpe de junho, foi essencial a base aérea turco-estadunidense de Incirlik, de onde decolaram os aviões cisternas que abasteceram os caças a serviço do golpismo. Também não o fariam sem o conhecimento dos USA.

 

Se os estadunidenses não viam o que acontecia debaixo do seu nariz, o serviço de vigilância russo, reforçado na região devido à intervenção aérea na Síria, teria notado a movimentação inusitada, compreendendo imediatamente seu sentido. No ato, teria informado Erdogan. O governo turco não confirmou essa informação, mas o primeiro-ministro do país acabou de informar que o primeiro e mais decidido apoio ao governo turco veio de Moscou, momentos após o início do golpe! Disse, portanto, o que podia dizer. Mas o que teria motivado e, possivelmente, precipitado o golpe USA-OTAN?

 

Sobretudo com os acontecimentos na Síria, a Turquia viu reforçar-se seu papel histórico de ponta-de-lança da ofensiva “ocidental” contra a URSS, no passado e, agora, contra Putin. Vergar a Rússia é imprescindível ao imperialismo estadunidense para desarticular a República da China, única forma de reconstruir a sua hegemonia planetária e relançar, por algumas décadas, a expansão do capital estadunidense. Mesmo às custas de uma eventual guerra com a Rússia e, a seguir, contra a China.

 

A ofensiva dos Estados Unidos, levando a reboque seus aliados, radicalizou-se nos últimos anos, passando a propor, se necessário, confronto militar direto, que se espera restrito. As ações mais clamorosas foram a desestabilização da Ucrânia, com a proposta de localizar forças da OTAN ao longo da fronteira russa e a longa ofensiva pela destruição do Estado sírio, tradicional aliado russo. Anteriormente, destruiu-se o Iraque e a Líbia e pôs-se novamente sob controle o Egito. A desvalorização do preço do petróleo, bancada pela Arábia Saudita, outra fiel aliada dos USA, destina-se a por a economia russa e venezuelana de joelhos. O golpe no Brasil e a vitória de Macri na Argentina são momentos menores, mas importantes dessa articulação internacional. Os BRICS deve também ser desarticulados.

 

Poderosa contraofensiva

 

Ao menos até agora, a contraofensiva russa foi vitoriosa. Putin estreitou os laços com a China, dando parcialmente as costas à Europa. Apesar da economia duramente atingida, apoiou as repúblicas surgidas na sua fronteira com a Ucrânia e anexou a Criméia, tradicional território russo. Os USA e a Europa retrucaram com duríssimas sanções econômicas, que motivaram iguais medidas russas em relação sobretudo à Europa. Na Síria, os USA, Israel, Arábia Saudita e Turquia ajudaram a construção do Estado Islâmico, apoiado nas populações sunitas e em fundamentalistas europeus e asiáticos, para colocar por terra a Síria e enquadrar o Iraque.

 

Foi certeira a resposta militar russa, em aliança com a guarda revolucionária iraniana e o hezbollah libanês. Ela desequilibrou rapidamente a guerra em favor da autonomia do Estado sírio. Hoje, já não se fala em afastamento de Bashar al-Assad, que propõe a reconquista de todo o país. Com o cerco de Aleppo, a guerra pode chegar ao fim, se novas forças não forem incorporadas à luta. A operação russa na Síria registrou a recomposição material e moral do exército russo, após o sucateamento promovido por Boris Yeltsin (1991-99). Foram lucro marginal os magníficos negócios feitos pela indústria bélica russa, prestigiada por sua ação na Síria.

 

A Europa e a Turquia assistem perplexas a ofensiva estadunidense. Se houver guerra, será lutada no Velho Mundo, com destaque para Turquia, Ucrânia, Polônia e talvez Alemanha. Sem superestimar suas forças, Putin declarou abertamente que usará armas atômicas táticas, se o território russo for invadido. Nos “jogos de guerra”, surgem, no mínimo, amplas regiões da Europa Oriental e Ocidental arrasadas, centenas de milhares de mortos, depressão geral da economia europeia. Com os USA, com seus territórios intocados, funcionando, mais uma vez, como “salvadores da lavoura”.

 

As sanções bilaterais seguem causando perdas econômicas para a União Europeia, com destaque para a Alemanha, tradicional fornecedora da Rússia. Fábricas alemãs transferem-se para a Rússia para contornar as proibições comerciais e industriais. Na Alemanha, França, Portugal, Grécia, fala-se cada vez mais na inutilidade e perversidade econômica, para a Europa, de tais sanções. Esse murmúrio vai crescer com a saída da União Europeia da Inglaterra, tradicional menino de recados dos USA na região. Sobretudo, o apoio europeu à destruição da Síria e da Líbia causou maré, vista como apocalíptica, de prófugos que desembarcam no Velho Mundo.

 

Um ataque inesperado

 

O abatimento de SU-24 russo, em novembro passado, por caça turco, foi, como disse Putin, golpe traiçoeiro e injustificável. E ele desprestigiava as forças armadas russas, que jamais conheceram nada semelhante quando da URSS. A resposta de Putin foi imediata, ainda que comedida. Impôs duras retaliações econômicas à Turquia, tradicional fornecedora de hortifrutigranjeiros à Rússia e local de veraneio de multidões de russos. Sobretudo, a Rússia reforçou seu controle antiaéreo e deixou claro que abateria qualquer avião sobrevoando a Síria, que julgasse ameaçar suas forças. O resultado foi que os aviões turcos tiveram de abandonar os céus da Síria e de suas imediações.

 

O rápido retrocesso do Estado Islâmico em favor da autonomia do Estado sírio pôs por terra toda a política turca na região. Os curdos fortaleceram-se, igualmente, em parte apoiados pelos USA. A suspensão das relações econômicas com a Rússia causou enormes perdas. O belicismo USA colocava a possibilidade de a Turquia se transformar em campo de batalha, contra o poderoso vizinho, para favorecer o longínquo aliado. O apoio USA ao golpe militar anti-islâmico no Egito exigia que Erdogan pusesse as barbas, que não tem, de molho. A maré de refugiados sobre a Europa lançava para as calendas a possibilidade de ingresso pleno da Turquia em União Europeia mal das pernas.

 

O bloco político-social comandado por Erdogan decidiu mudança radical de rumo, através do restabelecimento e aprofundamento das relações com a Rússia, mesmo que entre os dois Estados não haja um amor até então não revelado. Trata-se de um namoro ou convivência oportunista. O presidente turco pediu desculpas pelo abatimento do avião russo e prometeu abrir sindicância contra o piloto responsável pelo ato. Piloto que, como se acaba de saber, estava envolvido na conspiração golpista. Ou seja, o abatimento não fora determinado pelo governo turco, mas possivelmente por Washington, para envenenar as relações turcas com a Rússia.

 

Marcaram-se visitas bilaterais entre os dois chefes de Estado, para o próximo mês.  Prometeram-se restabelecer os velhos tratados e discutir novos. Nada de tudo isso é certo e líquido. Entretanto, a mera neutralidade turca em relação à Rússia tem gravíssimas consequências para a política militarista dos USA e OTAN na região. Constitui igualmente golpe violento nas facções de classe dos grandes Estados europeus que apoiam a aventura belicista - Alemanha, França, Itália, Inglaterra, Espanha. Na Turquia estão sediadas importantes tropas de ação rápida e as bases do país encontram-se entupidas de armas atômicas sob o controle estadunidense.

 

Talvez a grande pergunta que ainda precisa ser respondida é se o projeto de golpe ainda não totalmente detalhado e consolidado foi antecipado para impedir o lançamento da nova orientação diplomática turca. Em todo caso, seu fracasso piorou o cenário que procurava anular, em um nível ainda difícil de determinar. A Turquia é apenas uma jogada importante no xadrez macabro do imperialismo estadunidense pela reconstrução de sua hegemonia. Esse jogo será acelerado com a estreia no tabuleiro da inefável rainha da proposta de vitória  cabal sobre a Rússia e a China, a qualquer custo, Hillary Clinton.

 

Mário Maestri é historiador.

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