A Batalha de Gênova (3): A antiglobalização em branco, vermelho e negro
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- Gregório Maestri
- 19/08/2016
O Correio da Cidadania republica a partir desta semana uma série análises de Gregório Maestri sobre a violenta repressão da polícia italiana aos protestos antiglobalização em Gênova (Itália), no encontro do G-8 realizado na cidade há 15 anos – entre 19 e 22 de julho de 2001 (e publicado à época dos acontecimentos). O autor elaborou suas análises, à época, a partir de uma incursão na história do país.
A questão operária esteve quase ausente do debate anti-G8. Foram, porém, os "macacões azuis" que inauguraram a luta em Gênova. Em 13 de junho, metalúrgicos da Ilva manifestaram-se contra a perda de 1.200 empregos. A fábrica fora fechada pela administração de centro-esquerda por motivos ecológicos. Eles são duramente reprimidos pelas forças policiais reunidas para o G8 ao se manifestarem contra as demissões.
Na mesma época, a Fiom-Ggil, o maior sindicato metal-mecânico italiano, rompe com o imobilismo dos sindicatos de orientação católico-integracionista (CISL e UIL) e lança greve geral de 24 horas contra os reajustes somíticos. Dezenas de milhares de operários marcham através da Itália. Em Nápoles e Palermo, desempregados e ex-prisioneiros manifestam-se violentamente contra a miséria vivida sob a riqueza capitalista.
Muitos macacões azuis e desempregados estarão em Gênova, dentro das manifestações, fora do GSF. Os sindicatos anticapitalistas de base – Cobas, SlaiCobas, SinCobas etc. – chamam greve nacional contra o G8 para sexta-feira, 28 de julho, data da primeira grande manifestação anti-G8.
A confederação sindical que reúne a CGIL, a CISL e a UIL, socialdemocrata, não adere ao GSF (Fórum Social de Gênova) e às manifestações, colocando sob tensão sobretudo a base sindical da grande CGIL, mais classista, que exige mudança de orientação de sua direção, após cinco anos de retrocessos trabalhistas históricos sob o governo Oliveira. Na semana anterior, em encontro mundial sindical, Cofferati, líder da CGIL, é vaiado ao propor que "a globalização (...) deve ser administrada, não eliminada".
Ser ou não ser
O ex-PCI, agora PDS, tenta manter um pé no barco, o outro na terra. Parte de sua base quer ir ao GSF, participar da manifestação. A direção gostaria de estar na mesa do G8. Promotores de guerras, privatizações, liberalizações, os líderes do PDS são vaiados nos debates. O ex-primeiro-ministro D'Alema, senhor da guerra do Kosovo, protesta contra o anti-G8. As hesitações reabrem feridas. O PDS, antigo "partidão", agora é "partideco": caiu de 1/3 para 16% dos votos na última eleição! O resto da Oliveira está a favor do G8.
Domingo, 15 julho. Primeiros encontros: "Luta contra a pobreza e a desigualdade". Debates, seminários. Tensa tranquilidade. Segunda, 16. Primeiro dia do GSF. Na cidade, vinte mil policiais e dezenas de milhares de manifestantes. A tensão aumenta. Assim, através da Itália, explodem bombas. Governo e mídia responsabilizam os anarquistas e terroristas e aumentam a pressão policial.
Nos anos 1970, os serviços secretos da Itália, dos EUA e da OTAN promoveram atentados terroristas no país para lançar a opinião pública contra a esquerda. A "estratégia do medo" não funciona como antes. Em Milão, acaba de terminar o processo do atentado da Praça Fontana, velho de 30 anos. São apontados como responsáveis pós-fascistas do MSI, agora no governo, guiados pelos serviços secretos.
As bombas querem pôr fim à simpatia que cerca o "povo da antiglobalização". É difícil se opor à luta pela natureza, pela paz, contra a pobreza e as doenças. E a globalização está desprestigiada. É geral a angústia causada pelos longos anos de vacas magras, loucas e agora aftosas. De mutações climáticas e desastres ecológicos. De jogos de guerras brincados nos pátios da Europa até as novas notícias de então eram ruins. Mais de 13% da população italiana vive no limite ou na pobreza. O tratado de Kyoto foi pro lixo, o escudo espacial pras estrelas. A Palestina está na fogueira. A Argentina na latrina. O Brasil espera a vez!
A globalização dos pobres
Terça, 17. Bicicletas. Ônibus. Trens. O povo de Gênova chega aos milhares. Quarta, 18. Primeira marcha oficial: "Todos Juntos!", a manifestação dos "imigrados", organizada para ser uma "marchinha", tem sucesso inesperado. Mais de cinquenta mil manifestantes. Italianos. Europeus. Multidões de norte-africanos, negro-africanos, asiáticos, ex-soviéticos, os novos escravos do velho paraíso capitalista.
Exige-se a regularização dos imigrantes. Fronteiras abertas. Direitos de solo para todos. O fim do racismo. Para abafar o sucesso da manifestação, explode carta-bomba na redação de Rede 4, um dos três canais televisivos berlusconianos. Ela justifica tentativa da polícia de entrar no estádio onde se alojam os militantes dos centros sociais autônomos.
Na mesma noite, incendeiam-se os escritórios milaneses da Select, empresa de trabalho provisório, outra "liberalização" do governo da Oliveira. Nos dias seguintes, alarmes falsos de bombas sacodem Bolonha, Gênova, Nápoles, Turim, Roma e Milão. Logo se compreenderá o objetivo da grande orquestração do medo.
Quinta, 19, o Dia D. Gênova já acolhe multidões de manifestantes. São numerosos os membros dos centros sociais. Jovens lombardos. Militantes do PRC. Importantes delegações estrangeiras: francesas, espanholas, gregas, iranianas. São fortes as colunas dos anarquistas-insurrecionalistas, os Blacks Blocks, que marcham ao som dos tambores, com suas roupas e bandeiras negras. Boa parte desse povo é estranho ao GSF e à Rede No Global.
Bandiera nera, la vogliamo? No!
Na chegada a Gênova, membros dos Blacks Blocks jogam garrafas contra os policiais que, surpreendentemente, não respondem às provocações. Porém, com o resto dos manifestantes, o nível de tolerância é mínimo. Qualquer cara feia começa a ser duramente reprimida.
Na Zona Vermelha, milhares de cidadãos excelentes já se hospedam nos hotéis de luxo da cidade blindada ou no Cruzeiro European Vision – chefes de Estado, esposas, burocratas, capitalistas, milionários. Os jornalistas alojam-se em quatro outros cruzeiros também alugados a preço de ouro.
O exército nacional, apoiado no serviço militar obrigatório, nos moldes das forças armadas cidadãs inventadas pela Revolução Francesa, foi substituído por um exército ‘profissional’ pelo governo Oliveira. Agora, na Itália, os militares voluntários são trinta mil. O resto são mercenários.
Nos tetos dos prédios e nas esquinas, vigiam cinco mil comandos e vinte mil policiais. São, sobretudo, tropas relacionadas com a OTAN, envolvidas com a Iugoslávia e o Kosovo, treinadas para ver combatentes na população civil. Está presente a sinistra força especial Folgore. Os mares são controlados pelos Consubin, especialistas em sabotagem marinha. Centenas de helicópteros varrem os céus.
A cenoura e o bastão
Os esgotos são fechados. Os transportes públicos, interrompidos. A proibição de circulação na Zona Vermelha dificulta o abastecimento de restaurantes, supermercados, farmácias. Quando podem, impulsionados pelo medo, os cidadãos comuns fogem da cidade militarizada.
O G8 começa oficialmente com o calendário humanitário preparado pelo governo Oliveira para abafar a fogueira anti-neoliberal. Inicialmente, serão abordadas questões "humanitárias": combate à pobreza planetária; investimentos privados para a "solução" da crise mundial de saúde, educação, emprego. Dão-se umas “pilas” para a luta africana contra a Aids.
Oliveira preparara o banquete. A "Casa das liberdades" apenas serviu-o, com fartura. A entrada foi a cenoura das intenções humanitárias servida abundantemente à opinião pública mundial. A seguir, o "povo da antiglobalização" teve como prato único o duro bastão da repressão, inimaginavelmente salgado.
Leia também:
A Batalha de Gênova (2): Os senhores da guerra e o povo antiglobalização
A Batalha de Gênova (1): uma cidade-símbolo da globalização
Gregório Maestri, arquiteto, é belga, italiano e brasileiro.
Leia a publicação original em nossa edição 260.