A Batalha de Gênova (4): 20 de julho – a sexta-feira negra
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- Gregório Maestri
- 15/09/2016
O Correio da Cidadania republica uma série análises de Gregório Maestri sobre a violenta repressão da polícia italiana aos protestos antiglobalização em Gênova (Itália), no encontro do G-8 realizado na cidade há 15 anos – entre 19 e 22 de julho de 2001 (e publicado à época dos acontecimentos). O autor elaborou suas análises, à época, a partir de uma incursão na história do país.
Sexta-feira, 20 de julho. Meio dia. Um grito agudo de sirene inicia as manifestações oficiais anti-G8. A marcha do dia anterior foi tranquila: tudo promete que a grande caminhada será divertida e pacífica. No máximo, alguns empurrões entre policiais e manifestantes. É grande a emoção entre os mais de cem mil manifestantes. A mobilização inicia em paz.
Porém há algo muito estranho. Os blacks blocks misturam-se à longa coluna. Depredam. Queimam. Agridem aqueles que se opõem ao vandalismo. A polícia nada faz. Apenas segue tranquila os blocos negros, atacando a multidão confusa quando eles se retiram.
As forças policiais começam a cortar a longa coluna em grupos menores. Sem razão, batem, prendem e lançam gás lacrimogêneo e jatos de água ácida. Os que se afastam da manifestação são cercados e agredidos. Bombas de gás são lançadas diretamente nos manifestantes.
Milhares de manifestantes e jornalistas constatam a coordenação entre os Blocos Negros e a polícia. Militantes vestidos de negro são vistos e fotografados entrando, saindo e descansando nas delegacias genovesas. Infiltrados, os anarquistas insurrecionalistas serão usados, antes, durante e após a marcha para criminalizar a manifestação.
Excitação macabra
A polícia ataca, quando em situação favorável, batendo em manifestantes indefesos. Muitos deles são jovens inexperientes. As instruções dos organizadores são que se sentem e levantem as mãos, em sinal de não violência. Velhos, adultos e adolescentes apanham duramente, no chão, de mãos levantadas!
Grupos de policiais isolam, cercam e ferem manifestantes com cassetetes, socos e pontapés. Os golpes de cassetete, dados em ângulo reto, não cessam nem mesmo quando a vítima sangra, chora ou desmaia. Anarquistas e autonomistas organizam ataques às forças policiais para desviar a pressão dos manifestantes indefesos. Alguns poucos caminhões blindados são queimados.
Os helicópteros informam os policiais – e seus homens dos blacks blocks, acredita-se – onde atacar manifestantes escondidos, isolados e perdidos. A polícia golpeia os flancos das colunas e os helicópteros lançam bombas entre a multidão compacta. Procura-se impor o terror.
No fim da tarde, no meio de densas nuvens de gás e agressão generalizada, um jovem de 20 anos é assassinado com tiro na cabeça disparado por um policial, desde dentro de veículo blindado. Carlo Giuliani é um entre os milhares de genoveses presentes no ato. A reconstituição do assassinato comprovará que portava nas mãos extintor que fora jogado do veículo contra os manifestantes. A notícia espalha-se motivando raiva e medo.
Apenas os amigos
À exclusão dos Blocos Negros, qualquer manifestante é agredido. Adolescentes, adultos, idosos. Homens e mulheres. Pacifistas e autonomistas. Evangélicos e comunistas. Italianos e estrangeiros. Empregados e desempregados. Jornalistas, fotógrafos, médicos, enfermeiros, funcionários da Cruz Vermelha credenciados e uniformizados.
Milhares de manifestantes portam filmadoras e máquinas fotográficas. Eles são golpeados e presos e os aparelhos, identificados a projéteis, destruídos. Temem-se as provas da barbárie. Policiais são filmados lançando gás lacrimogêneo em ambulâncias, após quebrarem os vidros. Um câmera da BBC permanece no hospital, desfigurado. Uma jornalista alemã teve o pulmão perfurado.
Ajudados pelos helicópteros e atiradores nos tetos, as forças policiais empurram os manifestantes para armadilhas. Embretados nas estreitas e tortuosas ruelas da cidade medieval, são batidos duramente. Agridem manifestantes sentados descansando nas pequenas e típicas praças da Gênova antiga.
Envolvidos por nuvens de gás lacrimogêneo, sem poderem ver e respirar, golpeados por policiais com máscaras e protegidos por armaduras futuristas, manifestantes entregam-se ao medo e ao pânico. Sem terem como escapar, apanhavam até que os policiais se cansassem.
Santiago é aqui
Um cenário dantesco de gritos, medo, gás, histeria, sangue, explosão, fumaça e terror invade grande parte da cidade. Mesmo os que nada sofreram temem uma repressão sem travas. As forças policiais estão por toda parte, em qualquer canto.
Os hospitais e prontos-socorros enchem-se. Ossos quebrados. Fraturas expostas. Olhos e pulmões perfurados. Lesões faciais e cranianas. Os feridos leves fogem das estruturas médicas, onde são fichados e presos. Feridos são algemados às macas. E se médicos e enfermeiros exigem que sejam soltos, policiais respondem que perderam as chaves.
Os policiais começam a prender manifestantes sem critérios. Os que são encontrados com garrafas de plástico, sanduíches e mochilas são denunciados como agressores. Os presos gravemente feridos são mandados aos hospitais, os demais são maltratados nas delegacias. Dinheiro, documento e cartões de crédito são sequestrados e, comumente, destruídos. Assim, os manifestantes não podem identificar-se.
Nas prisões, jovens feridos são agredidos física e verbalmente, amontoados em posições insuportáveis e humilhantes. Muito numerosas, mulheres jovens, adultas e idosas são explicitamente bolinadas, em pseudorrevistas. Policiais urinam sobre prisioneiras. Os manifestantes não acreditam no que vivem.
Ferir e humilhar
Presos permanecem horas proibidos de ir ao banheiro. Sobretudo as torturas verbais provocavam o choro, a depressão, a lassidão fisiológica. Centenas de presos urinam e defecam nas roupas diante de companheiros. Presos são transferidos para prisões "secretas" no norte da Itália, esvaziadas preventivamente. O motivo da prisão e os destinos não são comunicados. Por dias, os advogados do GSF procuraram os desaparecidos.
Os direitos legais são desrespeitados: nada de telefonema, advogado, ducha, comida, troca das roupas etc. Os maus-tratos prolongam-se por dias. Policiais divertem-se batendo em velhas feridas. Saúdam Mussolini, juram de morte os comunistas. Lembram que agora têm os endereços dos prisioneiros. E que ninguém sabe onde se encontram.
Na Itália, as ligações entre as forças policiais e militares e a direita são profundas. Policiais e militares participam e apoiam partidos pós-fascistas, como MSI; neofascistas, como Força Nova, Flama Tricolor, Frente Nacional etc.; ou ‘reformados’, como a Aliança Nacional.
Sob o controle quase total da direita, a mídia privada e pública noticia a violência dos manifestantes e anuncia que a marcha do dia seguinte foi suspensa, devido à "morte acidental" de Giuliani, horas depois que os organizadores já haviam decidido mantê-la, em honra ao jovem genovês. Polícia e governo esperam que a lição tenha posto fim à oposição das ruas. Não pôs.
Leia também:
A Batalha de Gênova (3): A antiglobalização em branco, vermelho e negro
A Batalha de Gênova (2): Os senhores da guerra e o povo antiglobalização
A Batalha de Gênova (1): uma cidade-símbolo da globalização
Gregório Maestri, arquiteto, é belga, italiano e brasileiro.
Leia a publicação original em nossa edição 261.