Aleppo e as lágrimas de crocodilo derramadas na ONU
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- Robert Fisk
- 23/12/2016
Lá estava Samantha Power fazendo suas ceninhas de “vergonha” na ONU. “Não há sequer um ato de barbarismo contra civis, nenhuma execução fria de criança que lhes faça pelo menos um pouco de medo?” – a embaixadora dos Estados Unidos para a ONU perguntou a russos, sírios e iranianos. Ela falava de Halabja, Ruanda, Srebrenica “e agora, Aleppo”.
Estranho. Para aqueles a quem Samantha falou sobre “barbárie contra civis” em Aleppo, lembrei de repente da morte dos civis palestinos massacrados nos campos de refugiados de Sabra e Chatila em Beirute, 1982, massacrados pelas milícias libanesas ligadas a Israel, enquanto o exército israelense – o mais poderoso aliado dos Estados Unidos no Oriente Médio – assistia. Mas Samantha não mencionou esse massacre. Será que talvez tenha sido por que não houve palestinos mortos em número suficiente? Afinal, morreram apenas 1.700, incluindo mulheres e crianças. Em Halabja foram mais de 5.000 mortes. Mas com certeza Sabra e Chatila me assustaram, na época.
Daí, lembrei da monstruosa invasão dos (norte)americanos no Iraque. Talvez mais de meio milhão de mortos. É apenas uma das estatísticas disponíveis. Com certeza bem mais que as 9.000 mortes em Srebrenica. Posso dizer a vocês com toda a certeza que os 500.000 mortos no Iraque “me assustaram muito”, isso para não falar do medo que eu tinha das torturas e mortes que aconteceram nos centros de interrogatórios da CIA no Afeganistão e no Iraque. Mas apavorado mesmo eu fiquei ao saber que o presidente dos Estados Unidos costumava mandar prisioneiros inocentes para serem interrogados… na Síria de Assad. Sim, senhor! Eles eram mandados por Washington para serem “questionados” no que Samantha agora chama de “Gulag sírio”.
Eita mundo velho divertido! Samantha, que Deus lhe abençoe, não mencionou Gaza onde muitas crianças palestinas foram devidamente massacradas pelos israelenses. Nem o Iêmen, onde os aliados mais queridos dos (norte)americanos estão arrasando os xiitas e já mataram por volta de 4.000 civis. Nem os assassinatos em massa em Mosul. Nem – e isto realmente é de cair o queixo – mencionou os acontecimentos de 9/11. Este, com certeza, foi um crime internacional contra a humanidade bom para que Samantha o citasse como a cereja do bolo do amontoado de “vergonhas” de Samantha. 3996 pessoas inocentes mortas. Coisa boa – você deve convir – para lançar na cara de russos, sírios e iranianos.
Pensando bem, melhor não. Para este crime contra a humanidade existe um pequeno problema, é ou não é? Acontece que o 9/11 foi trabalho da al-Qaeda. E na Síria a al-Qaeda mudou o nome para al-Nusra e depois para Jabhat Fatah al-Sham e – bem, é a tal de al-Sham (aliás, Nusra, aliás al-Qaeda) que está lutando contra o regime de Assad na parte oriental de Aleppo . Convenhamos que é um pouco difícil, veja só, para Samantha expressar seu horror pelo mais terrível ataque desfechado contra seu país na história recente – ou falar disso como “barbárie contra civis” – quando a organização “jihadista” criminosa que cometeu este ultraje está, pois é, na parte oriental de Aleppo lutando contra o exército sírio.
Logo, Samantha Power tem que pegar as mortes acontecidas em 11/09 e simplesmente jogar no lixo, porque senão não poderá nos dizer quão assustados estão os coitadinhos da al-Qaeda por causa do comportamento de seus inimigos. Bem, ela também terá que esquecer ou jogar na mesma lata de lixo os cristãos mortos ou deportados pelo Estado Islâmico em Mosul, os yazidis, sujeitados pelo Estado Islâmico a uma “limpeza étnica” – algo que parece ser a especialidade de Samantha, que pontifica sobre isso quando se trata da Bósnia. Na realidade, o Estado Islâmico simplesmente não existe na narrativa de Samantha, ou então estão limpos como o cordeiro de Deus.
Nós jornalistas, vamos engolindo todas estas besteiras. Qual foi a última vez que você ouviu falar sobre o catastrófico retorno do Estado Islâmico a Palmira, na última semana – com certeza uma vitória incontestável para aqueles a quem deveríamos estar derrotando em Mosul? E muitos dos atacantes de Palmira na realidade vieram de Mosul. Como podem ter feito isso quando Mosul supostamente está cercada pelo exército iraquiano e por todos aqueles “conselheiros” (norte)americanos? E por falar nisso, qual foi a última vez que você ouviu falar sobre Mosul, cercada por um exército governamental e seus aliados (exatamente como Aleppo ) que tenta entrar na cidade (exatamente como em Aleppo ) lutando contra os defensores jihadistas (exatamente como Aleppo ) – com a diferença que Mosul tem muito mais civis cercados dentro da cidade que Aleppo ?
E lá vamos nós mais uma vez trilhar o caminho já batido que deve ser percorrido por todos aqueles críticos inimigos da Síria (e dos EUA). Pois é. Bashar al Assad é um ditador, suas eleições não passam de uma farsa, suas milícias são compostas de assassinos, seu exército é implacável, suas prisões são tão bárbaras que até Washington mandou para lá seus prisioneiros para um pouco de interrogatório brutal. Na realidade já vi um relato de uma sessão na qual os interrogadores sírios acabaram por concluir que os Estados Unidos tinham mandado para lá um homem completamente inocente.
Falando sério, se nós todos devemos estar assim tão “assustados” – como Samantha – então deveríamos ou não deveríamos fazer uma intervenção militar na Síria (apesar dos russos) para resgatar os lutadores da oposição?
Mas há alguns elementos estranhos na indignação ocidental – e basta olhar as atrocidades escolhidas por Samantha para descobrir onde está o gato.
Porque os ataques a gás contra os curdos de Halabja foram cometidos pela força aérea de Saddam Hussein – árabes, portanto. O genocídio em Ruanda foi cometido por gente de Ruanda mesmo. Os massacres de Srebrenica foram cometidos pelas milícias de Milosevic, que era composta de sérvios. Podemos até ter “ficado de braços cruzados”, como diz o ditado – e que é exatamente o que vamos fazer em Aleppo , mas nem nós nem nossos aliados cometemos as atrocidades citadas por Samantha. No final das contas ela ficou em terreno seguro, não ficou?
Também é isso o que nós europeus estamos fazendo. O presidente francês e o Parlamento Britânico – onde o antigo chanceler George Osborne soltou o seu “ai de mim” – todos lamentamos que não tenhamos feito seja o que for para evitar o sofrimento de Aleppo . Aliás não temos a menor intenção de fazer seja o que for; por isso, os assentos vazios no debate de Westminster.
Penso saber o motivo – é porque esta é uma das poucas vezes nas quais não manchamos as mãos de sangue no Oriente Médio. Desta vez, nem nós nem nossos aliados – com exceção dos meninos da al-Nusra que são apoiados pelo Qatar e outros camaradas do Golfo, mas que são todos bons rapazes, os nossos rapazes – somos culpados de nada além de indiferença. É exatamente o que aconteceu em Halabja, Ruanda e Srebrenica. Nós não fizemos nada, senhor. Não fomos nós desta vez. Assim, lance a culpa nos sírios, russos e iranianos. E nem precisa se assustar tanto. Só um pouquinho, tá?
Robert Fisk é correspondente do diário britânico The Independent no Oriente Médio.
Traduzido por BTP Silveira.