Portugal: um ano depois, a “geringonça” e as suas contradições (1)
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- Luis Leiria, de Lisboa para o Correio da Cidadania
- 03/02/2017
O governo do primeiro-ministro António Costa, do Partido Socialista, completou no dia 26 de janeiro de 2017 um ano e dois meses de existência, contrariando os que juravam que não duraria mais de um par de meses. Afinal, a “Geringonça”, nome pelo qual ficou conhecida esta arquitetura política em que um governo minoritário do PS se mantém graças ao apoio parlamentar do Bloco de Esquerda, do PCP e dos Verdes, é uma experiência inédita no país e parece seguir na contramão de uma Europa onde a direita cresce em tantos países centrais.
Segundo o dicionário, uma geringonça é uma “coisa malfeita ou construção com pouca solidez”. São sinônimos de geringonça: engenhoca, caranguejola. O apelido do atual governo português foi inventado por um dos líderes da direita, prevendo que a sua “pouca solidez” seria a muito curto prazo comprovada devido à fragilidade dos acordos políticos que lhe deram base. Só que a esquerda gostou do epíteto, e resolveu adotá-lo: hoje todo o mundo em Portugal se refere ao governo António Costa exatamente assim: a “geringonça”.
Relembrando o imbróglio
A verdade é que o acordo que viabilizou o governo do PS nunca acontecera antes e por isso apareceu como uma inédita engenhoca. Nunca, excetuando os governos provisórios que se sucederam à Revolução dos Cravos de 25 de Abril de 1974, o PS aceitara fazer acordos à sua esquerda, mesmo quando tinha maioria parlamentar para isso. Sob a Constituição aprovada em 1975, e salvo episódicas exceções de governos de iniciativa presidencial, Portugal foi governado por dois partidos, o Partido Socialista (PS, ligado à social-democracia internacional) e o Partido Social Democrata (PSD, que apesar do nome é o principal partido da direita neoliberal, um pouco como o PSDB no Brasil). A eles se juntava o Centro Democrático Social (CDS, direita mais conservadora) em diferentes modalidades – em geral aliado ao PSD, mas também chegou a participar de um governo com o PS. Estes três partidos eram tidos como os do “arco da governação”, enquanto que o Partido Comunista Português (PCP) e, mais tarde, o Bloco de Esquerda – que nasceu em 1999 – eram vistos como “partidos de protesto”, que nunca teriam acesso ao poder.
Acontece que as eleições de 4 de outubro de 2015 tiveram um resultado inesperado: quem ficou em primeiro lugar foi a coligação dos mesmos dois partidos da direita (PSD e CDS) que governaram durante os anos da chamada “austeridade”. Aqueles em que trabalhadores e aposentados sofreram violentas reduções salariais e foram obrigados a pagar sobretaxas no imposto de renda, ao mesmo tempo em que o desemprego disparava, as verbas sociais eram reduzidas e se privatizava o pouco que ainda era estatal no país.
Com tantas malfeitorias, como se explica que tivessem ficado em primeiro lugar nas urnas? Apenas o uso de um artifício: apresentaram-se ao voto como coligação e não os dois partidos separadamente, como é habitual. A aparente vitória era na verdade uma derrota pesada: em relação às eleições anteriores, esses partidos tinham perdido 730 mil votos e a possibilidade de obter maioria parlamentar para governar. Na noite das eleições clamaram “vitória”, mas essa proclamação era falsa e ilusória: a direita tinha obtido o seu segundo pior resultado na história (38,5% dos votos).
Todos os restantes partidos, pelo contrário, cresceram: o PS (32,3%) ganhara 172 mil votos, obtendo mais 12 deputados que em 2011, o Bloco de Esquerda (10,19%) arrancara mais 260 mil votos, quase duplicando a votação e ganhando novos 11 deputados (num total de 19); finalmente, a CDU (coligação PCP-Verdes), com (8,25%), consolidara a votação anterior (mais 4 mil votos) e ganhou um deputado.
PS com programa neoliberal
Apesar de ter crescido em votos e deputados, o PS teve uma decepção com o resultado eleitoral, porque esperava arrancar uma votação superior à da coligação da direita, ficar em primeiro lugar e governar com tranquilidade, isto é, com maioria parlamentar absoluta; em vez disso, foi remetido ao segundo lugar. O mau resultado derrubou um dos mitos há muito existentes e que foram pulverizados pelas eleições de outubro de 2015: o de que o partido que quer ganhar as eleições tem de fazer campanha “ao centro”, para conquistar o eleitorado oscilante entre o PS e o PSD.
Para a sua campanha eleitoral, António Costa, o líder do PS, encarregou um grupo de economistas neoliberais de fazer o seu programa econômico. Estes, como seria de esperar, fizeram... Um programa que impunha novas medidas de austeridade, como congelar as pensões (aposentadorias) durante quatro anos, implicando numa perda de 1,6 bilhão de euros aos já depauperados aposentados, e a facilitação das demissões, num mecanismo apresentado como “por consenso”.
Assim, enquanto a direita prometia prosseguir a mesma política de austeridade, garantindo que “o pior já passara”, o PS apresentava um programa igualmente restritivo.
Com esta disputa com a direita para ocupar o espaço do “centro”, era inevitável que a campanha do PS corresse mal. Foi o que aconteceu. No final, quando o desespero tomou conta, os dirigentes do PS não encontraram nada melhor do que acenar o espantalho da vitória da direita, pedindo aos eleitores que não votassem no Bloco de Esquerda ou na CDU, porque eram “votos inúteis” (chegaram mesmo a dizer que cada voto no Bloco ou na CDU era um voto na direita), e chamando-os a votar “útil” no PS. Em vez de propostas mobilizadoras que lhes trouxessem votos, os dirigentes do PS, porque não as tinham, optaram pela arma do medo.
Desta vez não funcionou. E com isso caiu outro mito: o de que o voto útil é sempre na opção “menos pior”. Desta vez, o quase um milhão de votos no Bloco de Esquerda e na CDU foram verdadeiramente úteis porque fizeram a diferença.
O desafio de Catarina
O acordo que viria a dar origem à “geringonça” começou a nascer no debate televisivo entre António Costa e Catarina Martins, de 42 anos, a líder do Bloco, representante máxima de uma geração jovem que assumiu recentemente o comando do partido.
Inesperadamente, Catarina lançou um desafio ao interlocutor: se o PS desistisse de três pontos do seu programa (congelamento de pensões, cortes na taxa social única – a contribuição patronal para a Previdência Social – e o “regime de despedimento conciliatório” que facilitava as demissões), o Bloco estaria disposto, no dia seguinte às eleições, a iniciar conversações para poder viabilizar um governo alternativo ao da direita. Costa ficou mudo diante da proposta, nada respondeu e a líder do Bloco viria a repeti-la inúmeras vezes no final da campanha, num momento em que já era visível nas ruas que a votação do partido iria surpreender.
Hoje é praticamente consenso que este desafio, aliado a uma campanha firme contra os que queriam prosseguir a austeridade e obedecer aos ditames da União Europeia e da “troika” (além da UE, o Banco Central Europeu e o FMI), foram decisivos para o extraordinário resultado do Bloco.
Curiosamente, o partido sofrera antes das eleições uma cisão importante, de uma ala que queria inserir no seu programa a vontade de integrar uma solução governativa com o PS. Este novo partido, o “Livre – Tempo de Avançar”, apesar de contar com uma ex-deputada das mais populares do Bloco e de um ex-deputado europeu também eleito pelo Bloco, fracassou estrepitosamente, não elegendo ninguém. Por quê? Porque na prática diluiu o seu programa na prioridade de governar com o PS. Se ele se resumia a isto, para quê, então, votar neles e não no próprio PS?
Apesar de parecer semelhante, a política era oposta à do Bloco. Este apresentou o seu programa, bateu forte e feio no PS, e deixou no ar um desafio que poderia ser ou não concretizado mediante uma relação de forças que apenas os resultados eleitorais poderiam estabelecer.
Acordos difíceis
Na noite de 4 de outubro, quando foram divulgados os resultados, a direita exigiu que lhe fosse entregue o governo, já que obtivera o primeiro lugar nas eleições. O então presidente Cavaco Silva, em final de mandato, fez-lhe a vontade, com a esperança de que pelo menos um setor dos socialistas não votasse a moção de rejeição ao novo governo, que o Bloco e o PCP tinham anunciado. Mas foi em vão. O anterior primeiro-ministro Passos Coelho formou um novo gabinete e foi derrubado 12 dias depois – o governo mais breve do período pós-74. E, 53 dias depois das eleições, em 26 de novembro, tomou posse o governo do PS baseado em acordos com o Bloco de Esquerda, o PCP e os Verdes, que lhe garantiram a base parlamentar para governar, derrotando a moção de rejeição apresentada pela direita por 122 votos contra 107 e uma abstenção, no dia 3 de dezembro.
Nesses 53 dias, negociações febris decorreram entre PS, Bloco de Esquerda e PCP, que chegaram, com muita dificuldade, aos acordos de 10 de novembro. Uma imagem das dificuldades foi a própria formalização destes acordos. Em vez de um acordo global e de uma cerimônia que juntasse os quatro partidos, como seria normal, foram firmados três acordos em separado: PS-Bloco de Esquerda, PS-PCP e PS-Verdes. E os momentos das assinaturas destes acordos, também em separado, só foram registrados porque alguém do PS se lembrou de os fotografar. A imprensa não esteve presente. Mais tarde soube-se que isto fora assim por exigência do PCP, que não perdoara ao Bloco tê-lo ultrapassado nas eleições, tornando-se o terceiro maior partido do país.
O fim de um ciclo
É comum aos três acordos, que poucas diferenças têm, a garantia da viabilização do governo enquanto ele for cumprido, o que basicamente significa que os partidos da esquerda se comprometiam desde logo a derrotar a rejeição da direita e em seguida votar a favor de um Orçamento de Estado para 2016 negociado entre eles. Mas nem PCP nem Bloco entravam no governo.
“O Bloco de Esquerda não pode integrar governos que subscrevem” compromissos com que o Bloco não concorda, em que “o povo não foi ouvido” e que “não permitem romper totalmente com a austeridade”, esclareceu a líder do partido, Catarina Martins, na época referindo-se ao Tratado Orçamental da União Europeia, que força os países a ter déficits inferiores a 3%, e à negativa do PS de reestruturar a dívida pública, que sufoca a economia do país.
Mas isto não queria dizer que os bloquistas não dessem importância ao que tinham firmado. "Este acordo não garante a transformação de que o país precisa. Mas representa um virar de página, o fim de um ciclo em que a pobreza nunca parou de aumentar e os salários e pensões (aposentadorias) nunca pararam de diminuir", sublinha Catarina Martins, para quem "o grande desafio” começava naquele momento. “Haveremos de ter um país um pouco mais justo. Este acordo e a derrota da direita é apenas um bom começo".
Os textos dos acordos podem sem lidos aqui, aqui e aqui. O Esquerda.net publicou um dossiê sobre o acordo.
O oposto do Syriza
Na prática, Bloco e PCP aceitavam a imposição do PS de não pôr em causa as regras da União Europeia, não abdicando de se posicionar contra elas – e sabendo que as contradições iriam surgir. Mas obrigavam o governo a procurar outra via que não a da austeridade. Os acordos garantem a devolução de salários, aposentadorias e direitos roubados pelo governo anterior, o descongelamento das pensões, o combate à precariedade, o aumento do salário mínimo para atingir os 600 euros na legislatura de quatro anos, com aumentos de 5% nos dois primeiros anos; anula propostas que o PS avançara na campanha, como os cortes na Previdência Social ou o regime conciliatório das demissões.
Ficou também estabelecido o fim da sobretaxa e o aumento da progressividade do imposto de renda; o fim das privatizações e a reversão das já realizadas nas empresas de água, da EGF (tratamento de resíduos) e dos transportes coletivos de Lisboa e Porto. No geral, ficou claro que se punha fim à política de empobrecimento levada a cabo pelo governo anterior. Se o PS quiser aceitar novas imposições da União Europeia, terá de fazê-lo sem cortar nem salários nem aposentadorias, nem deixar de aumentar o salário mínimo, nem fazer novas privatizações. Caso contrário, estará rompendo o que foi firmado.
Numa palavra, os acordos de Portugal representam uma política que, apesar das limitações, é o oposto do que o Syriza, na Grécia, aceitou fazer. Recordemos que em julho de 2015, apesar de um referendo em que a maioria do povo grego rejeitava a determinação da “troika” de impor uma economia de guerra ao país, o governo do Syriza capitulou e aceitou aplicar os planos impostos pela União Europeia. O resultado foi a aplicação de um extensíssimo programa de privatizações, o esmagamento ainda maior de salários e aposentadorias, a perda de direitos trabalhistas.
Em troca de nada: um ano e meio depois, a economia grega continua tão devastada quanto antes e as imposições prosseguem. Em dezembro de 2016, uma greve geral protestou contra novos cortes orçamentais e a alteração das leis trabalhistas para facilitar as demissões e tornar mais difícil a realização de greves.
Por que o PS aceitou o acordo?
Em primeiro lugar, por uma questão de sobrevivência. O fantasma do Pasok grego, que praticamente desapareceu no país, nunca deixou de assombrar os dirigentes socialistas. Se o PS viabilizasse um novo governo de Passos e Portas, continuidade do anterior (abstendo-se, por exemplo, na moção de rejeição), uma boa parte do seu eleitorado entraria em fúria e a crise poderia ser fatal. Foi essa, recentemente, a opção do PSOE espanhol, o que provocou a prévia demissão de seu secretário-geral e uma fratura do partido.
É que o executivo de Passos Coelho não fora qualquer governo. Nunca, depois de 1974, houve um governo que demonstrasse tanta sanha no ataque aos trabalhadores, aos aposentados, aos pobres, aos fragilizados pela doença, aos jovens, aos desempregados. Totalmente subserviente às políticas do governo alemão, que é quem manda na União Europeia, procurou sempre ser “mais troikista que a ‘troika’”, agravando as medidas de austeridade para além do que lhe fora exigido. Foi o executivo que convidou a sua população a sair do país, apresentando a emigração como uma “oportunidade”. Que sustentou que os portugueses tinham andado muitos anos a “viver acima das possibilidades”, e por isso teriam de pagar a fatura. Que tomou inúmeras medidas de destruição do Estado Social, particularmente na Segurança Social, na Saúde e na Educação.
Ora, António Costa não é um Corbyn (o atual dirigente dos trabalhistas do Reino Unido, líder da esquerda do Labour), não é sequer o que se poderia chamar de “socialdemocrata de esquerda”. Mas os acordos com os partidos à sua esquerda eram a única possibilidade que ele tinha de chegar a primeiro-ministro, mesmo tendo ficado em segundo lugar nas eleições. E era forçoso, pela matemática eleitoral, que o acordo integrasse tanto o Bloco quanto o PCP. Se um deles se excluísse, não haveria maioria no parlamento.
O Bloco e o PCP fizeram o certo?
Na opinião deste escriba, que não esconde a sua filiação ao Bloco de Esquerda, sim, fizeram o que tinham de fazer. Não firmar acordo algum, por uma questão de princípio ou em nome de um programa máximo que o PS não pudesse aceitar, significaria a continuidade do governo Passos-Portas, o mesmo dos terríveis quatro anos anteriores. A desmoralização que esta forma indireta de viabilizar um governo da direita provocaria entre os trabalhadores, os jovens, os aposentados, todos aqueles que sofreram brutalmente e se mobilizaram contra o governo seria tal que as feridas deixadas iriam demorar anos e anos a sarar.
Os eleitores do Bloco e do PC não conseguiriam compreender a incapacidade de se chegar a um acordo, por mínimo que fosse, para impedir que os tenebrosos Passos e Portas continuassem a governar. Por isso, se um dos dois partidos “roesse a corda” e saísse do acordo, seria imediatamente responsabilizado pela manutenção de Passos Coelho no governo, o que equivaleria a um suicídio político.
Não é à toa que entre as várias correntes internas do Bloco de Esquerda houve consenso na política de negociar as condições para dar suporte parlamentar ao governo PS, e nenhuma voz se levantou contra o acordo. Mas todos sabiam que a sua concretização seria muito difícil, porque António Costa seria muito pressionado pela União Europeia para prosseguir a austeridade e adotar novas medidas, novos cortes.
A possibilidade de a União Europeia usar armas como sanções para punir o país que não seguia os seus cânones e abandonava as receitas da austeridade era enorme. E ainda é hoje, passado mais de um ano. Por outro lado, mesmo sabendo que sem renegociar a dívida pública e desobedecer às ordens de Bruxelas não são possíveis soluções de fundo que garantam o regresso consistente do crescimento e a redução drástica do desemprego, o Bloco apostou em demonstrar que apesar desse garrote se pode acabar com a política de empobrecimento do governo anterior, que é mentira que não haja alternativa à austeridade e que as pressões e propostas do Bloco e do PCP produzem resultados. Com isso se acompanha a experiência dos trabalhadores a caminho dos choques que inevitavelmente chegarão, com a União Europeia, com o governo ou com os dois.
Há o risco de criar ilusões de que a “geringonça” é a solução para tudo e basta esperar que ela resolva os problemas e baixar os braços, deixando de lutar? Há, e o Bloco tem consciência de que está no fio da navalha. Por um lado, tem de demonstrar que as suas propostas, na prática, melhoram a vida de pessoas concretas, reais. Por outro, tem de insistir que não pode haver uma saída duradoura sem que o país se veja livre do peso da dívida e rompa com as regras da UE.
Esse é um equilíbrio difícil e arriscado. Mas um partido que chega aos dez por cento dos votos tem responsabilidades acrescidas. Precisa sair da mera propaganda e correr riscos. E apostar em vencê-los.
Por outro lado, o compromisso do Bloco, PCP e Verdes abrange apenas as matérias constantes dos acordos. Sobre outras questões que não constam do texto firmado, os partidos de esquerda têm total liberdade de discordar e votar contra o governo, como aconteceu principalmente em questões financeiras como o resgate do banco Banif, a solução para o Novo Banco (o sucessor do falido Banco Espírito Santo) ou, na que constituiu a primeira crise séria da “geringonça”, a redução da TSU patronal (parte da contribuição previdenciária dos trabalhadores paga pelos patrões) para compensar o patronato pelo aumento do salário mínimo.
Sobre este último tema, falaremos adiante.
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Luís Leiria é jornalista.