Uma breve história política da Somália
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- 09/11/2017
Raphael Sanz, da Redação
Bandeira da Somália
No último dia 14 de outubro aconteceram duas explosões na capital da Somália, Mogadíscio, que deixaram mais de 300 mortos e dezenas de feridos. O atentado, atribuído pelo governo somali ao grupo jihadista al-Shabaab, ainda não foi reivindicado pelo mesmo, nem por qualquer outro grupo militante dissidente, e ocorreu em dois atos: o primeiro caminhão-bomba explodiu nas imediações do Hotel Safari e o segundo no bairro Medina, algo como o centro antigo/histórico da cidade.
Na quarta-feira seguinte (18), milhares de pessoas tomaram as ruas de Mogadíscio em protesto contra tamanha brutalidade. Segundo os organizadores foi o maior protesto já visto no país. E também houve forte repressão. Os manifestantes queriam chegar ao local dos ataques, mas a polícia somali não permitiu, abrindo fogo contra a multidão que se aproximava.
No sábado seguinte (21), o presidente da Somália, Mohamed Abdullahi “Farmajo” convocou um ato no Estádio Mogadíscio – inaugurado em 1978 com capacidade para 65 mil pessoas. Segundo apuração do El País, Farmajo pediu à população que se alistasse ao exército para “libertar o país”.
Manifestação convocada pelo presidente Farmajo no Estádio Mogadíscio.
Créditos de Mohamed Abdiwahab (AFP)
Farmajo assumiu o cargo de presidente em fevereiro deste ano prometendo estabilidade a um país devastado por vinte anos de guerra civil e que tem de lidar com problemas estruturais graves como a fome, a seca, a malária, a cólera e a pirataria nos seus mares.
Já o grupo al-Shabaab, a quem Farmajo atribui os caminhões-bomba do último dia 14, é um movimento jihadista que atua no país desde 2007 e do qual se suspeita que haja forte ligação com grupos estrangeiros, em especial grupos wahabistas como a Al Qaeda (aqueles que o “democrático” Reino da Arábia Saudita nutre mundo afora com infraestrutura e dólares). E, como podemos observar na foto abaixo, ainda que não saibamos ler em árabe, há uma estética muito semelhante entre a bandeira da União das Cortes Islâmicas, adotada pelo al-Shabaab, e a do Estado Islâmico.
Al Shaabad em treinamento
Crédito: The Telegraph
Pois bem, podemos notar o quão complexa é a conjuntura somali. Em especial para nós aqui no Brasil, com pouca ou nenhuma informação a respeito do país. A questão não é discutir esta conjuntura mais atual, e nem mesmo discutir os nossos problemas estruturais brasileiros que nos privam de saber mais sobre a Somália e a África como um todo. Para isto, publicaremos nos próximos dias uma entrevista de fôlego com o pesquisador Daniel Cunha, sociólogo e especialista em África. Este artigo tem como objetivo justamente familiarizar o leitor deste Correio com a realidade e a história somali, para que haja um melhor entendimento da entrevista que está por vir.
A República Federal da Somália e sua história
Somália destacada no mapa mundi
Localizada no chifre africano, ou seja, uma região que no mapa se parece a um chifre sobressalente no lado leste do continente, a Somália faz fronteira com o Djibuti ao noroeste, a Etiópia ao oeste e o Quênia ao sudoeste, além do Golfo de Áden seguido pelo Iêmen, ao norte. Seus idiomas oficiais são o somali e o árabe, e a religião professada por grande parte da população é o islamismo. Hoje chamada oficialmente de República Federal da Somália, já se chamou República Democrática da Somália e República Somali, no passado. Veremos sua história.
Na antiguidade, a Somália ainda não se conformava territorialmente como hoje, mas podemos considerá-la a partir dos povos e civilizações que viviam na região do chifre africano. Para além das atividades econômicas de subsistência local, os povos da região a transformaram em um rico e importante centro comercial. Marinheiros e mercadores desta zona eram os principais fornecedores de incenso, mirra e especiarias, itens considerados luxuosos para antigos egípcios, fenícios, micênicos e babilônios, grandes impérios de eras passadas.
Aos poucos, o território do chifre africano foi sendo dividido entre cidades-estados, que competiam entre si pelo comércio com as ricas civilizações supracitadas. O que hoje se conhece como Somália, nesta época, foi uma região muito rica e desenvolvida se comparada a lugares que hoje são também tidos como ricos e desenvolvidos.
Com o nascimento do Islã no lado oposto da costa somali, logo ali na península arábica, muitos marinheiros, comerciantes e expatriados começaram a sofrer influência da nova religião árabe e, com a migração de famílias muçulmanas para o chifre africano e a conversão considerada pacífica – por alguns historiadores – ao islamismo nos séculos seguintes, as antigas cidades-estados foram tomando contornos mais parecidos com as modernas cidades somalis. Surgiram Mogadíscio, Berbera, Zeila, Barawa e Merca. Mogadíscio chegou a ser conhecida como “A Cidade do Islã”, e controlou o comércio de ouro do leste africano por séculos. A região compunha o que se conhece como Civilização Berbere.
Mapa político da Somália
Na idade média, poderosos impérios somalis (já com este nome) dominaram a região, pois possuíam a tecnologia para engenharia hidráulica e construção de fortalezas. O general Ahmed Gurey, do Sultanato de Adal, foi o primeiro comandante africano a usar canhões de guerra. O sultão somali Ahmed Yusuf recebia tributos de diversos reinos e sultanatos da região. E assim, os somalis seguiram como uma potência regional até a entrada dos impérios europeus, o que começou no século 19, mas concretizou-se na década de 20 do século passado. Ou seja, a miséria e a fome na Somália, em termos históricos, são relativamente novas. Ao menos da forma endêmica como vemos atualmente. E diz respeito à chegada do imperialismo europeu.
Imperialismo ocidental e independências
No século 19, após o fim da Conferência de Berlin, impérios europeus partiram o chifre africano entre si e prepararam a entrada na região. A ameaça imperialista fez com que o então principal líder, Muhammad Abdullah Hassan, reunisse soldados de toda a região e travasse uma das mais longas guerras anti-imperialistas que temos notícia.
A Somália nunca foi formalmente colonizada. O Estado Dervixe, somali, por quatro vezes expulsou o Império Britânico da região durante as investidas anglo-saxãs no século 19 e, graças a sua fama alastrada pelo Oriente Médio e Europa, foi reconhecido como um aliado pelo império Otomano, mantendo-se durante a primeira guerra mundial como o único poder muçulmano independente na África.
Só foram derrotados pelos ingleses em 1920, quando estes usaram pela primeira vez aviões de guerra em território africano, fazendo com que os territórios dervixes se tornassem um protetorado britânico, além de uma zona destruída por bombardeios.
Mais tarde, a Itália fascista encontrou as mesmas dificuldades, e mesmo que tenha ocupado uma grande parte da Somália entre 1927 e 1941, ainda assim não controlou a totalidade do território. E a partir de 1949, enquanto o norte da Somália continuou sendo um protetorado britânico, o Sul, onde está Mogadíscio, ficou sob tutela da ONU e administração italiana, por sua vez, liberta do próprio regime fascista desde 1945.
Depois da saída das potências europeias, logo após a segunda grande guerra, a união destas duas regiões, em 1960, formou a República Democrática da Somália. A Somália Britânica (norte ou Somalilândia) conseguiu sua independência em 26 de junho de 1960. Cinco dias depois a parte sul se juntou à parte norte, livrando-se do domínio italiano. Já a Somália sob tutela imperialista francesa conseguiu sua independência separadamente, em 1977, passando a chamar-se Djibuti.
Durante os anos 60, a Liga da Juventude Somali manteve-se no poder tendo Aden Abdullah como o primeiro presidente do país, entre 1960 e 1967. Abdi Rashid Shermarke assumiu a presidência em seguida e ficou no poder até 1969, quando foi assassinado. Seu substituto, Sheikh Mukhtar Mohamed Hussein acabou deposto em apenas dois meses de governo. Esta ocasião levou ao poder, por meio de golpe de Estado, Siad Barre. E o país passou a chamar-se República Somali e viver sob uma ditadura militar.
De 1969 a 1977, a Somália manteve proximidades comerciais com a União Soviética. As relações acabaram rompidas por conta da insatisfação soviética em torno das hostilidades e guerra entre a Somália e a Etiópia, fazendo com que os somalis se aproximassem do ocidente que buscava diminuir a influência soviética na região de passagem do Mar Vermelho, extremamente estratégica para as potências da guerra fria em termos geopolíticos. A situação econômica do país já era muito delicada nesse momento e, com as disputas geopolíticas, tendeu a piorar.
Em 1974 a Somália foi aceita como membro da Liga Árabe. Mais tarde, se juntou a outras nações, formando a União Africana e apoiou o movimento contra o regime do apartheid na África do Sul, bem como os separatistas eritreus na guerra de independência da Eritreia contra a Etiópia (uma das razões do rompimento com a URSS).
A década do neoliberalismo e a guerra civil
Em 1990, um grupo armado do norte adquiriu controle de grande parte do território da Somalilândia, dissolvendo o Estado Nacional existente, o que deu início à guerra civil. Em 1991, o mesmo grupo que declarou a independência da Somalilândia se dividiu por questões internas, em especial conflitos entre classes sociais, clãs e etnias.
Enquanto o Movimento Patriótico Somali dominava o sul e o Movimento Nacional Somali dominava o norte, o Congresso Unido Somali tomava a capital Mogadíscio, provocando a queda de Siad Barre, em 1991. Barre morreria aos 75 anos, em 2 de janeiro 1995, na cidade de Lagos (Nigéria) onde vivia exilado desde a queda do seu regime em 1991.
Com o país esfacelado, o presidente do governo interino Ali Mahdi Muhammad (1991-1997) era considerado fraco e o país passou a ser controlado por diversos “senhores da guerra”. E, desde então, a Somália vive um estado de guerra civil permanente que mistura guerras religiosas, guerras entre clãs, classes sociais e separatismos regionais. A Somalilândia, no norte do país, chegou a declarar sua independência em 1991 sob a liderança de Mohamed Ibrahim Egal. No mesmo ano, a Jubalândia fazia o mesmo ao sudoeste e a Puntlândia idem, no centro do país, bem na ponta do chifre africano. Declarações de independência, estas, não reconhecidas pela comunidade internacional.
Os EUA entraram na Somália em 1992 com a premissa de realizar uma “missão humanitária”. E apesar de terem levado comida e ajudado em algum grau no combate à fome que assolava o país em meio à multifacetada guerra, a operação foi considerada um fiasco por Washington, pois resultou na morte de 18 soldados ianques. A história é contada no filme Falcão Negro em Perigo. Os Marines saíram do país em 1993 e a ONU abandonou o barco em 3 de março de 1995.
Ao longo dos anos 90, diversas cisões marcaram o território somali em guerra: Puntlândia, Jubalândia, Somalilândia, entre outras regiões, que se juntaram e separaram do território somali, passando pelas mãos de distintos grupos militantes envolvidos na guerra. Foi nesse contexto que ganhou força a questão da pirataria marítima, mas isto é tema para um outro artigo.
Pirata Somali
Créditos: The Telegraph
Século 21: tentativas de conciliação e a continuação do conflito
A partir da virada do século, começaram os esforços de conciliação e união da Somália. No próprio ano 2000, delegados regionais aprovaram na cidade de Arta uma Constituição provisória que perduraria por três anos a fim de fortalecer a reintegração nacional, os direitos humanos e a liberdade de expressão no país. Bem como uma economia de livre mercado. Durante este período, a República Somali adotou um sistema federal, e passaria a chamar-se República Federal da Somália ao término do período de transição. Mas o que estava no papel, nem sempre era a realidade do país. Continuaram ocorrendo os conflitos da década anterior e o governo central não gozava de credibilidade frente à população.
A Assembleia de Transição Nacional exercida pelo poder Executivo contava com 245 membros; com 44 cadeiras para cada um dos principais clãs somalis (Dir, Hawiye, Darod e Oigil), 24 em alianças de classes menores, 20 para somalis de grande influência e 25 destinadas às mulheres. Assim, foi eleito o primeiro presidente de transição, Adbiqasim Salad Hassan. Quatro anos mais tarde, o presidente Hassan interveio militarmente na região da Jubalândia a fim de recuperar a capital Mogadíscio, mostrar força e unir o território.
Também em 2004, com o efeito da sangrenta e mal sucedida intervenção militar e o esgotamento temporal previsto do mandato de Hassan, foi eleito Abdullahi Yusuf Ahmed em pleito que aconteceu fora das fronteiras somalis, em Nairóbi, capital do vizinho Quênia. Isto porque a capital Mogadíscio estava tomada por “senhores de guerra”, ou como definem outros pesquisadores, por “líderes de clãs”. A cidade não contava, neste momento, com serviços públicos de nenhuma ordem, em especial forças de segurança. O governo de Yusuf, mesmo reconhecido pela comunidade internacional não era levado a sério dentro do país. Considerado fraco pelos “líderes tribais”, sua capital ficava em Baidoa, cerca de 200 km de Mogadíscio.
No final deste mesmo ano, um tsunami que varreu muitos países da região também afetou a Somália, deixando 298 pessoas mortas.
Ainda sob as consequências deste desastre, quase dois anos depois, em maio de 2006, iniciou o que se conhece como “a segunda batalha de Mogadíscio” (a primeira havia colocado, ainda nos anos 90, os chefes tribais e senhores da guerra no comando da cidade). O embate se deu entre os supracitados “senhores tribais da guerra” e a Aliança para a Restauração da Paz que envolvia o governo Yusuf e aliados. Deixou pelo menos 350 mortos em meio aos tiroteios. Um ano depois eram contabilizadas as primeiras atividades do grupo jihadista hoje acusado pelos atentados de 14 de outubro passado.
Mas a guerra civil não parou por aí. Mogadíscio foi novamente tomada, ainda em 2006, um mês após a batalha citada acima, pela União das Cortes Islãmicas (UCI – alguns pesquisadores a traduzem para UTI, União dos Tribunais Islâmicos, mas aqui falaremos em UCI), uma coligação de milícias e grupos jihadistas que pretendia impor as leis da Sharia ao país. Ainda em julho de 2006, a UCI passou a controlar uma grande porção territorial da Somália, especialmente na região sul, a Jubalândia, onde vimos que outrora esteve controlada pela Itália.
Ameaçado pelo avanço da UCI, Yusuf solicitou tropas da ONU para apoiá-lo. Os governos que mais contribuíram com a campanha militar do governo de Yusuf foram da Etiópia e da Eritreia. Enquanto a Eritreia armava o exército regular somali, a Etiópia deixava o exército de Yusuf estacionar e treinar em seu território. E junto dos eritreus, o governo central transitório de Yusuf conseguiu uma vitoriosa campanha militar contra as milícias da UCI, o que fez com que recuperasse uma série de cidades, entre elas a capital. Mas este conflito também produziu milhares de refugiados somalis nas fronteiras com a Etiópia e o Quênia.
A partir de 2007, os territórios da Jubalândia, bem como boa parte da área controlada pela UCI foram passando para as mãos do governo central transitório. Sobraram o autoproclamado Estado da Somalilândia e a região autônoma da Puntlândia nas mãos de parte da UCI que, em 2008, passou a chamar-se Aliança para a Reliberação da Somália (ARS) e aceitou negociar a paz com o governo transitório. Uma outra parte da UCI, que permanecia na sigla anterior e em guerra, fiel aos projetos de estabelecer a lei Sharia e contrária às negociações, formou o que hoje é conhecido como al-Shabaab.
O grupo é mais forte na região da Jubalândia (sul), onde está Mogadíscio, e atua em meio a uma situação de calamidade social. Detém o controle de territórios onde a fome e as doenças são abundantes e, assim, com promessas de reverter esta vulnerável conjuntura vai arrebanhando militantes.
Por outro lado, o governo central e ARS (facção da UCI que concordou em negociar uma saída pacífica) acordaram em ampliar o Parlamento Somali e constituir, juntos, um governo de unidade. E nesse contexto, Sharif Ahmed foi eleito presidente em janeiro de 2009. Mas a consolidação do novo Estado somali se deu em 2012, quando Ahmed eixou o cargo para Mohamed Osman Jawari, que governou poucos meses até a ascensão de Hassan Sheikh Mohamud. Este último, deixou o cargo de mandatário somali no último mês de fevereiro de 2017, assumindo em seu lugar Mohamed Abdullahi “Farmajo”.
Atualmente, a Somália de Farmajo tem de lidar com grandes problemas estruturais, frutos de séculos de invasões e décadas de imperialismo e guerra civil. Além da fome, da seca, da corrupção e da violência urbana, os somalis ainda assistem os remanescentes da UCI, entre eles o al-Shabaab, guerreando em nome da imposição da Sharia – o que se suspeita ter sido a motivação do atentado que ocorreu neste mês de outubro em Mogadíscio.
Soldado somali observa os escombros dos atentados do último dia 14
Créditos: não encontramos.
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Raphael Sanz é jornalista e editor-adjunto do Correio da Cidadania.
Raphael Sanz, da Redação
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