Com os Coletes Amarelos: contra a representação, pela democracia (2)
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- Pierre Dardot e Christian Laval
- 12/01/2019
O quietismo político é um erro
Um estranho raciocínio revela o profundo embaraço de uma parte da assim chamada esquerda “radical” diante desse movimento singular e sem precedentes, que frustra todas as categorias de seu léxico político convencional. Consiste em argumentar que tal movimento “arrisca” o caminho errado, reacionário ou fascista, na medida em que não apresenta todas as garantias necessárias para nos tranquilizar sobre seu futuro político. É essa avaliação de risco que comanda uma atitude de cautela, quando não uma recusa em se comprometer com aqueles que não atendem aos critérios que nos permitem reconhecer que estamos lidando com o “povo”; na verdade, aqueles que trazem consigo os valores autênticos da esquerda identificam-se com seus objetivos e suas lutas, e não correm o risco de serem arrastados pela encosta do fascismo.
Esse raciocínio exige duas observações. A primeira diz respeito ao uso da palavra “povo”[x]. Obviamente, ele está investido aqui com um significado muito ideal: ele é “o” povo no singular, com quem, em comparação, as pessoas reais, necessariamente impuras e variadas, fazem pálida figura, e são chamadas a se adequarem a esse ideal para merecerem esse nome de prestígio. Se não tiver sucesso, ele justifica por essa falha que alguém se desvia dele e o deixa para si mesmo. Infelizmente, esse povo ideal não existe, exceto no céu quase platônico do esquerdismo inalterável. Não é mais do que “o” povo ouvido como “comunidade de cidadãos”, tão caro à chamada tradição “republicana” e ritualmente ressuscitado a cada grande eleição, ao mesmo tempo em que é a mistificação do “interesse geral”, que não é nada além de “um” povo construído sob medida por meio das grandes instituições políticas existentes para o maior benefício da oligarquia.
Deve ficar claro: as pessoas reais nunca são o povo ideal. Deixem que os burocratas e outros vanguardistas notórios sonhem com o povo ideal. No rescaldo da revolta popular de 17 de junho de 1953 em Berlim Oriental, Brecht já estava perguntando: “Não seria mais simples então o governo dissolver o povo e eleger outro?”[2] Exceto quando se trata da não menos extravagante demanda de “mudança de povo!”, o que certamente protege contra toda decepção, deve-se resolver a heterogeneidade e a impureza do povo real. Todo o resto é apenas diversão. Devemos renunciar à distinção entre “povo social” e “povo político”? O povo social é definido pela oposição à elite ou à oligarquia, pela pobreza e miséria, mas é nada menos que homogêneo e unificado, tanto assim que é atravessado por tensões e contradições, como vemos precisamente hoje. O verdadeiro povo político não são as pessoas que votam nas eleições, nem as pessoas sociologicamente definidas pela pobreza ou miséria, é o povo que age, o povo-ator que inventa na ação novas formas de auto-organização.
Esse povo nunca é “o” todo, ainda é apenas uma parte, mas é essa parte que abre novas possibilidades ao “todo”, isto é, a toda a sociedade. É essa parte que está em movimento hoje, e isso é uma determinação suficiente. O “povo da esquerda” é apenas uma falsa invenção dos antigos partidos cuja única função é remobilizar sua base eleitoral na aproximação de certas consultas, ou quando são colocados em dificuldades. Mais geralmente, existem apenas “pessoas”, cuja irrupção é imprevisível e cada vez singular, e o Todo-Um é apenas uma ilusão mortal. A coincidência das pessoas sociais e do povo político em uma “grande noite” de fantasia nada mais é do que um mito de que a esquerda crítica deve se desfazer de uma vez por todas.
A segunda observação refere-se à conclusão prática que este argumento pretende justificar. Por mais surpreendente que possa parecer, tal raciocínio não é isento de certa semelhança com um argumento muito antigo, conhecido pela filosofia grega como o “argumento preguiçoso” ou “inerte”. Cícero explica isso em seu Tratado sobre o destino, afirmando que, se o deixarmos, permaneceríamos toda a nossa vida em completa inação. Em essência, ele diz: se você está doente e seu destino é se curar, você se curará, chame você o médico ou não; mas se o seu destino não é se curar, quer você chame o médico ou não, você não vai se curar. Mas o seu destino é curar-se ou não curar-se.
É, portanto, em vão que você chame o médico[3]. Vemos como esse argumento merece o nome de argumento preguiçoso: justifica a abstenção de qualquer ação e inclina-se ao quietismo (que vem de quies, que significa repouso em latim). Protestamos contra tal abordagem, argumentando que aqueles que advertem contra o perigo da deriva da direita do movimento se recusam a invocar o destino ou a fatalidade e limitam-se a especular em torno de riscos, isto é, de possibilidades simples. Mas a questão toda é precisamente qual atitude adotar em relação ao que, no momento, são meras “possibilidades”.
A virtude da abordagem proposta é destacar a atitude quietista que deriva dessa suposição remota de possibilidades. Raciocinamos como se a realização de uma possibilidade em vez de outra fosse completamente independente de nossa própria ação. Dizemos a nós mesmos sem ousarmos confessar: se a pior das possibilidades for realizada, perceber-se-á que intervimos ou não para tentar evitá-lo. É aqui que encontramos o “sofisma preguiçoso”.
Nós nos colocamos na posição de alguém que se livra antecipadamente de sua própria responsabilidade. A premissa em que essa atitude se baseia é a seguinte: qualquer que seja a possibilidade que eventualmente aconteça, mesmo que seja a pior, não temos nada a ver com isso. Ou essa possibilidade acontecerá, ou não acontecerá, mas em ambos os casos é inútil intervir. Se por acaso a possibilidade acontecer, rejeitamos antecipadamente a responsabilidade pelas inadequações e ambiguidades do movimento.
Abster-se de intervir na prática não é simplesmente observar de fora o curso de uma evolução, é, defendamos ou não, favorecer a realização da possibilidade mais perturbadora e ameaçadora, a que foi especificamente encarregada de justificar a recusa em agir. É mais fácil dizer “eu te disse” do que nós mesmos contribuirmos diretamente para tornar essa possibilidade negativa uma realidade. Hoje, especialmente, é aconselhável alertar contra tal atitude: o quietismo político é o jogo do adversário, e é por isso que é imperdoável. A urgência manda agir no movimento tal como está, com os Gilets Jeunes, tomando-os pelo que são, e não pelo que gostaríamos que fossem, apoiando resolutamente tudo o que vai na direção da auto-organização e democracia. Insistimos: nada está dado ainda. O presente é novo, o futuro está aberto e nossa ação é importante, aqui e agora. Ato V.
Pierre Dardot (n. 1952) é filósofo e pesquisador no laboratório Sophiapol da Universidade Paris-Ouest Nanterre-La Défense, especialista no pensamento de Marx e Hegel. Christian Laval (n. 1953) é um pesquisador francês da história da filosofia e da sociologia na Universidade Paris Nanterre. Seus trabalhos centram-se em três grandes temas: a história do utilitarismo, a história da sociologia clássica e a evolução dos sistemas de ensino. Este artigo foi traduzido pelo Passa Palavra a partir do original disponível aqui.
Notas dos autores
[1] Laurent Mauduit, «Emmanuel Macron, le candidat de l’oligarchie», 11 jul. 2016.
[2] Bertolt Brecht, «La solution», in Anthologie bilingue de la poésie allemande, 1993, La Pléiade, p. 1101.
[3] Cicéron, Traité du Destin, Les Stoïciens, 1978, La Pléiade, p. 484.
Notas da tradução
[i] Gilets Jaunes pode ser traduzido por “coletes amarelos”. O movimento ganhou tal apelido devido à vestimenta que todo motorista francês deve levar em seus veículos a ser utilizada em caso de acidente. Os manifestantes passaram a vestir coletes amarelos em todas as manifestações desde então.
[ii] En Marche! é o movimento/partido social-liberal, de centro, fundado em 2016 e hoje encabeçado por Stanislas Guerini, ao qual é filiado Emmanuel Macron.
[iii] “Demissionismo” foi a única tradução aproximada para o neologismo francês dégagisme. Trata-se de uma referência ao verbo dégager, que pode ser traduzido como “render o posto/substituir” ou “demitir”, nos dois casos dando a entender a liberação de alguém dos ônus de determinada função. Ainda que “demitir” não contenha os muitos significados e sutilezas de “dégager”, foi a melhor tradução possível para este neologismo político.
[iv] A Inspection Générale des Finances é um dos órgãos da alta administração pública francesa com maior poder e prestígio. É também a origem de Emmanuel Macron.
[v] Republicanos é um partido político liberal-conservador francês situado ora no centro-direita, ora na direita (a depender da conjuntura). Seu fundador é Nicolas Sarkozy, e seu atual presidente é Laurent Wauquiez.
[vi] Referência às ligas de extrema-direita atuantes na crise de 6 de fevereiro de 1934, quando grupos de direita, associações de ex-combatentes e ligas de extrema-direita como a Ação Francesa de Charles Maurras, a Solidariedade Francesa de François Coty, o Facho de Georges Valois, a Liga das Juventudes Patrióticas de Pierre Taittinger, os Militantes do Rei de Maurice Pujo e outras protagonizaram tumultos na praça da Concórdia que resultaram na morte de 15 a 37 pessoas (a depender da fonte), em 2 mil feridos e, depois de novas manifestações nos dias 7, 9 e 12 de fevereiro, na queda do segundo governo Daladier. Os eventos alertaram a esquerda para o perigo fascista na França, e consolidaram entre a extrema-direita francesa os métodos violentos e paramilitares.
[vii] O poujadismo vem do nome de Pierre Poujade e é um movimento político e sindical francês surgido em 1953 na região de Occitânia, sudoeste do país, e que desapareceu em 1958. Ele se caracteriza pela defesa dos pequenos comércios e dos artesãos.
[viii] France insoumise (“França insubmissa”) é um partido francês fundado em 2016, situado entre a esquerda e a extrema-esquerda (a depender da conjuntura), sendo Jean-Luc Mélenchon a principal figura pública. Rassemblement national (“Reunião nacional”) é um partido francês de extrema-direita atualmente presidido por Marine Le Pen.
[ix] Sobre o movimento Nuit Debout (“Noite em claro”) o Passa Palavra publicou em 2016 a série Nuit Debout: na primavera de 2016, um movimento inesperado, cuja leitura recomendamos.
[x] Os autores exploram a dualidade semântica da palavra francesa peuple, que significa tanto “povo” quanto “pessoas”. Embora a palavra “povo” também possa ser entendida com a mesma dualidade, seu significado como “ajuntamento de pessoas” é muito menos marcado na língua portuguesa que na língua francesa, e seu significado como “coletividade dos indivíduos sujeitos a um Estado-nação” é bem mais destacado. Por isto optamos por desfazer o jogo semântico dos autores a bem da melhor compreensão do texto, traduzindo peuple ora como “povo”, ora como “pessoas”, a depender do contexto.
Parte 1
Traduzido por Passa Palavra