Afinal, o que é a "geringonça" portuguesa?
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- Emanuel Leite Jr.
- 10/05/2019
Quem nunca ouviu alguém dizer que as esquerdas brasileiras deveriam se inspirar no exemplo recente de Portugal?
Em 2018, no período pré-eleitoral muito se falou do “governo de esquerda” português como um paradigma para o campo “progressista” (em que pese toda a vagueza deste termo) nacional.
O próprio Ciro Gomes (PDT) chegou a falar em algumas ocasiões, inclusive numa entrevista à estação pública de TV portuguesa RTP, que observava com atenção o que acontecia em Portugal e que a “esquerda portuguesa” era inspiração para várias questões.
O tema voltou à tona quando se discutiu a formação dos blocos parlamentares de oposição ao governo de extrema-direita no país: os “progressistas” deveriam estar juntos, diziam muitos, “vejam Portugal”, exemplificavam.
Mais recentemente, tivemos nas redes sociais debates acalorados sobre o que é ser de esquerda, se uma deputada social-liberal, por defender temas “progressistas”, seria ou não de esquerda e qual seria o papel da esquerda diante de pautas de convergência mínima.
Mais uma vez, houve quem aludisse ao “exemplo português” como inspiração de uma supostamente necessária união das esquerdas.
Mas, afinal, o que é a geringonça (termo pelo qual a experiência portuguesa ficou conhecida em terras lusitanas)?
A pergunta se faz pertinente porque mesmo na mídia brasileira mais alinhada à esquerda ou ao campo progressista é comum ver alguma confusão sobre em que constitui a geringonça efetivamente.
No Brasil criou-se uma impressão equivocada a respeito do XXI Governo de Portugal. Há um mal-entendido, pois muitos acreditam se tratar de um “governo de coalizão de esquerda”, no qual Partido Socialista, Partido Comunista (PCP) e Bloco de Esquerda governariam juntos.
A confusão foi ainda mais longe e há quem tenha escrito sobre uma inédita aliança entre PCP e Bloco — aliança que não existe e diferenças ideológicas e programáticas destes partidos explicam por quê.
Sem menosprezar a geringonça como um estudo de caso e por isso uma experiência a ser observada pelos partidos brasileiros, e considerando que em 2019 vai haver eleições Legislativas em Portugal no mês de outubro (e antes disso, em 26 de maio, eleições para o Parlamento Europeu), nas quais PS, PCP e BE irão concorrer separadamente, conversei com o cientista político português, professor e diretor do mestrado e do doutorado em Ciência Política da Universidade de Aveiro, Carlos Jalali.
Especialista no sistema político português, autor de dois livros sobre o tema, numa longa conversa o pesquisador nos explica desde o contexto a que Portugal chegou em 2015, ano da última eleição legislativa, passando pelas características peculiares que permitiram ao PS, partido que não tem a maior bancada na Assembleia da República, formar a “geringonça”.
Uma experiência positiva, diante dos vários fatores que “jogavam contra”, como enumera Jalali.
O politólogo também comenta porque Portugal segue “protegido” do fenômeno da ascensão da extrema-direita (sem deixar, porém, de fazer um alerta a um novo partido que surgiu recentemente, o Chega) e projeta as eleições portuguesas de outubro de 2019, questionando-se a respeito do futuro da “geringonça”.
Professor, antes de falarmos sobre a “geringonça”, gostaria que nos contextualizasse acerca da conjuntura política, econômica e social portuguesa em 2015, ano das últimas eleições legislativas. Refiro-me à troika, com sua política de austeridade, e seus efeitos sobre a população portuguesa.
As eleições de 2015 ocorrem depois de um período de grande impacto econômico, social e também político, com o resgate financeiro a que Portugal esteve sujeito, como referiu, por parte da troika.
A troika é a designação ao triunvirato de FMI, Banco Central Europeu e Comissão Europeia. Como sabemos, o governo do Partido Socialista (PS), então liderado pelo José Sócrates, pediu este resgate em 2011.
Resgate que antecedeu as eleições daquele ano e que deu origem a um governo de coligação de centro-direita, entre o Partido Social Democrata (PSD), que é um partido de centro-direita, e o seu parceiro à direita, o CDS – Partido Popular (CDS-PP), que é mais conservador. Este governo foi de 2011 a 2015.
Este grande impacto é evidente em vários níveis. Os indicadores macroeconômicos mostram os efeitos do regaste e do período da crise, que não é apenas derivado do resgate.
O desemprego em Portugal atingiu níveis sem precedente, culminando em cerca de 17% em 2013, mais do que duplicando em cinco ou seis anos. A economia entrou em recessão em 2011, 12 e 13. E a isso, obviamente, acrescentou-se uma série de dimensões de impactos sociais: os apoios sociais que o Estado prestava são removidos como resultado da austeridade; os salários dos funcionários públicos e as pensões sofreram cortes e no setor privado também há cortes salariais; há uma emigração em massa que não tem precedente em Portugal desde a década de 1960, com cerca de 100 mil a 150 mil portugueses a emigrarem.
É verdade que estes indicadores começam a melhorar a partir de 2014 (ano que também marca o fim do resgate). O desemprego começa a baixar em 2014, em 2015 a economia já mostrou sinais de crescimentos acentuados e houve também melhorias na balança comercial.
Mas, a verdade é que foi um período de grande impacto para a sociedade portuguesa.
Em termos políticos, há duas notas a fazer em relação ao período que antecede as eleições de 2015. A primeira é uma mudança de liderança no PS, que era o maior partido da oposição, com a saída de António José Seguro e a entrada de António Costa, até então presidente da Câmara Municipal de Lisboa, ou seja, prefeito de Lisboa. António Costa assume a liderança do PS no fim de 2014.
A outra mudança foi o fato de o PSD e o CDS-PP terem concorrido coligados (os dois partidos estavam em coligação no governo, mas não haviam concorrido coligados). Isso só tinha ocorrido em uma experiência breve entre 1979 e 1980, na chamada Aliança Democrática.
Então, em 2015 eles concorreram em uma lista única, chamada Portugal à Frente. O fato de o PS ter uma nova liderança e o PSD/CDS-PP concorrerem numa lista única teve consequências para as dinâmicas políticas pós-2015.
Diante deste contexto, PSD, CDS-PP, os partidos que formavam o governo entre 2011-2015, foram afetados eleitoralmente, com a perda de 11,85% dos votos e a queda de 132 para 107 assentos na Assembleia da República. Mesmo assim, eram 21 parlamentares a mais que o Partido Socialista (que havia eleito 86 deputados e deputadas), e, por isso, a coligação Portugal à Frente (PaF) ainda formou o XX Governo Constitucional. Um governo de curta existência.
Aqui entramos, de fato, nas dinâmicas interessantes do contexto político pós-legislativas. As eleições dão-nos um resultado que é paradoxal e que é original no contexto português. Paradoxal porque por um lado temos uma lista mais votada que é a PaF.
Como referiu, a PaF é a lista que mais votos tem. O maior grupo parlamentar é do PSD. Mas, simultaneamente temos um parlamento onde a maioria reside nos partidos à esquerda: PS, PCP (e o seu aliado, os Verdes) e Bloco de Esquerda (BE).
E, portanto, temos este paradoxo em que a lista mais votada está à direita, num Parlamento onde a maioria parlamentar está nos partidos à esquerda.
Portugal tem um sistema político semipresidencial, que se caracteriza pela existência de um presidente eleito diretamente pelo povo e que coexiste com um primeiro-ministro e um governo que são politicamente responsáveis perante o parlamento. O chefe do executivo é o primeiro-ministro, não é o presidente.
O presidente tem algumas responsabilidades políticas e uma delas é designar o primeiro-ministro; ele lança o convite para que seja formado o governo. Esse governo depois tem que apresentar o seu programa perante o parlamento, que tem a opção de rejeitar o governo ao rejeitar o seu programa. Estas são as regras formais da democracia portuguesa.
Mas, há regras informais, práticas consolidadas. Uma delas é que o Presidente da República convida o líder da lista mais votada. E é esse o argumento do então presidente Cavaco Silva para convidar o líder do PSD, Pedro Passos Coelho, a formar governo.
Isto dá origem a este governo muito breve. E que acaba por ser breve, sem nunca chegar a assumir funções em termos plenos porque vê o seu programa rejeitado pelo parlamento.
O que temos neste contexto parlamentar é o paradoxo a que aludi anteriormente. O presidente indigitou um governo de direita que refletia a lista mais votada, mas esse governo não sobrevive num parlamento onde a maioria política está à esquerda.
E este paradoxo é original em Portugal. Nunca tivemos um parlamento onde tão claramente tivéssemos um cenário onde a maioria parlamentar global estava num lado, mas a lista mais votada estava num outro.
Talvez de forma parcial, em 1985 tenhamos uma potencial exceção, embora aí houvesse um partido novo e efêmero, cuja posição ideológica era bastante ambígua. Mas, olhando para todas as eleições portuguesas, isto de 2015 nunca tinha acontecido antes.
Eis que chegamos ao arranjo governativo encontrado pelo líder do PS, António Costa. Acerto este que tanta confusão tem causado. No Brasil, fala-se em “coalizão de partidos de esquerda” ou “apoio de comunistas e do Bloco de Esquerda para formar governo”. Esta fórmula governativa de António Costa ganhou o apelido pejorativo de “geringonça”, um termo popularizado pelo então líder do CDS-PP, Paulo Portas. Afinal, o que é a geringonça?
Essa é uma boa pergunta. E suspeito que iremos também responder ao longo do tempo, com a distância necessária desta experiência. Mas, olhando para aquilo que podemos já afirmar, a geringonça descreve um entendimento entre PS, PCP, o Partido Ecologista os Verdes e o Bloco de Esquerda, separadamente.
Ou seja, não é um acordo de todos os partidos juntos, mas um acordo do PS com o PCP, outro acordo com os Verdes, e outro com o BE. Até a palavra acordo pode ser demasiado forte, porque formalmente o que eles assinaram foi uma posição conjunta sobre a situação política nacional.
Na base destes entendimentos estava a compreensão transversal a estes partidos. A primeira era a necessidade de um entendimento destes partidos para impedir que o governo de Pedro Passos Coelho pudesse ser aprovado no Parlamento.
E a necessidade de haver alguma base entre estes partidos que permitisse uma alternativa governamental que pudesse ser levada ao presidente da República, para que ele pudesse indigitar António Costa como primeiro-ministro.
Bem, então temos estes acordos de incidência parlamentar. E o que eles são e o que não são? Eles não são um governo de coligação ou coalizão.
O que temos, formalmente, é um governo minoritário do PS. E, aliás, se olharmos para as declarações principalmente do PCP vamos encontrar invariavelmente referências a este governo como sendo minoritário do PS, sem qualquer assunção de pertença a este governo.
A designação surge em larga medida da percepção em novembro de 2015 de que este era um acordo bastante instável. E instável por quê?
Porque historicamente o PS tinha estado politicamente muito distante do PCP e do BE. Tinham sido partidos que tinham estado em lados opostos das barricadas no período decisivo genético da democracia portuguesa e do posicionamento político dos partidos em Portugal, que foi o período da revolução em 1974 e 1975.
Nesse período, os dois partidos, e aqui eu me refiro ao PCP e PS, tinham estado em posições diametralmente opostas e eram de certa forma os principais opositores nesta luta que emerge em Portugal.
Mesmo os partidos que agora formam o Bloco também estavam em posição diametralmente oposta ao PS. E naquilo que é o período posterior à revolução, as posições de PCP, PS e Bloco também tinham sido sempre bastante distantes.
Portanto, em novembro de 2015 essa solução era vista por muitos como sendo instável e daí ter surgido essa expressão, com sentido claramente depreciativo, de geringonça.
O que agora é interessante e gera um debate é como a palavra geringonça mudou de sentido em Portugal de 2015 para cá. Se inicialmente a palavra tinha um sentido pejorativo, rapidamente ganhou um sentido positivo, a tal ponto que o PS e António Costa adotaram a palavra para se autodescreverem no sentido positivo. Aliás, geringonça seria votada a palavra do ano em Portugal em 2016, o que dá esta dimensão positiva.
E isso nos leva a outra questão. Que é como este governo, um governo minoritário, acaba por fazer pontes à esquerda, o que não era anteriormente expectável e não eram percebidas como sendo sequer possíveis.
Portanto, este é um casamento de conveniência, mas é o que acaba por trilhar um novo caminho político em Portugal.
Considera essa experiência governativa como bem-sucedida?
As experiências governativas dependem, em larga medida, de fatores da situação econômica. Em Portugal, a situação econômica é decisiva para aquilo que é a “percepção pública” da governação.
António Costa e este governo têm um contexto em que a economia portuguesa está em recuperação. Têm a recuperação que, como já referi, inicia-se em 2014 e 2015, mantendo-se em 2016, 17 e 18.
E essa recuperação tem um impacto naquilo que é um fator chave para os eleitores portugueses: o desemprego. O desemprego continua a baixar e atinge níveis que são praticamente 10 pontos percentuais inferiores àquilo que estava no período da crise.
Mas, ao mesmo tempo, é de se denotar que esta governação de António Costa consegue fazer duas coisas que pareciam difíceis de conseguir.
A primeira é conseguir reforçar a consolidação orçamental das contas públicas. O déficit público atinge níveis historicamente baixos neste governo.
Consegue isso sem alienar os partidos à esquerda e mantendo o apoio destes partidos na aprovação dos orçamentos de Estado, que são o principal instrumento de políticas públicas em Portugal. E consegue isso levando este governo até o fim da legislatura.
Este vai ser apenas o segundo governo minoritário da história que consegue chegar ao fim do mandato. Portanto, o fato de ter completado a legislatura, ter conseguido a consolidação orçamental, ter conseguido manter o apoio dos partidos à esquerda são aspectos que, numa contabilização de pontos a favor e contra, o cidadão olha e contabiliza favoravelmente.
Acabou de mencionar agora que esta é apenas a segunda vez na história da democracia portuguesa que um governo minoritário termina uma legislatura. O professor é autor do livro “Partidos e sistemas partidários”. Neste livro, explica que um sistema partidário consiste na interação entre os partidos que o compõem, estruturando padrões de competição e cooperação interpartidária, e que um sistema partidário é consolidado quando este é previsível. O sistema português é consolidado, previsível. Talvez o espanto que a geringonça tenha causado tenha sido justamente por ter ido contra a previsibilidade do sistema partidário português. O PS já tinha tido governos minoritários anteriormente, inclusive um, como o senhor referiu anteriormente, que tinha sido o único a terminar a legislatura, entre 1995 e 1999. Tendo em conta o contexto, a longevidade da geringonça surpreende?
O fato de chegar ao fim da legislatura surpreende. Obviamente que agora seria fácil dizer que não surpreende. Mas, quando este governo foi indicado eram poucos que apostavam num governo que conseguisse chegar ao fim da legislatura.
E os fatores para isso são bastante fáceis de explicar. Primeiro porque este era um governo minoritário e os governos minoritários em Portugal têm um track record fraco, em geral não chegam ao fim da legislatura.
O PS já governou por várias vezes em governos minoritários, numa dessas vezes não era bem minoritário porque tinha exatamente metade dos deputados e mesmo assim não conseguiu chegar ao fim da legislatura. E este não era apenas um governo minoritário. Era particularmente fraco no sentido em que era um governo minoritário de um partido que sequer era o maior partido no parlamento.
Portanto, era um partido que precisaria necessariamente de apoios de outros partidos para aprovar legislação e ultrapassar o maior partido de oposição.
E ainda temos que considerar algo inédito, que foi o PCP apoiar no parlamento um governo minoritário do PS, quando, anteriormente, o PS já teve até que formar governo com o CDS-PP (um governo muito curto) e também com o PSD, porque o PCP não formava governo, como também não forma agora (frise-se), com o PS.
Ainda bem que você referiu. Porque este é o terceiro fator que, digamos, jogava contra este governo. O fato de para além de ser um governo minoritário e de um partido que sequer era o maior do parlamento, ser um governo que, para a sua formação e para poder governar, dependia de entendimentos com partidos com os quais o PS não tinha tradição de cooperação governativa.
Tinha que cooperar com o PCP e com o BE. Também com os Verdes, embora a posição dos Verdes aqui seja muito secundária.
Portanto, tínhamos três dimensões que não jogavam a favor da estabilidade deste governo. Só para terem uma ideia da mudança que este governo implicou em termos de governação, o BE, desde que entrou para o parlamento em 1999 até esta experiência governativa minoritária do PS, em 16 anos (de 1999 a 2015), nunca tinha aprovado um orçamento de estado.
O Bloco tinha sempre votado contra todos os orçamentos. O PCP tinha feito o mesmo desde 1976 ou 77, sistematicamente votado contra todos os orçamentos. Assim, o PS precisava agora que estes partidos mudassem de posição e votassem a favor.
Portanto, olhando para os dados que tínhamos à nossa frente em novembro de 2015, o pessimismo em relação a este governo não era inusitado. Havia vários fatores que jogavam contra este governo minoritário de António Costa.
No Brasil, como mencionei, existe alguma confusão acerca da geringonça. Por exemplo, já se escreveu que “a aliança entre o Bloco de Esquerda e o tradicional Partido Comunista” surpreendia “até os mais céticos”. Como já explicou, não existe governo de coalizão de esquerda em Portugal, tampouco uma aliança entre Bloco e PCP. O professor também é autor do livro “Partidos e democracia em Portugal 1974–2005”. O que pode nos falar sobre as diferenças ideológicas e programáticas entre PCP e BE?
As diferenças são de vários níveis. Em primeiro lugar, há diferenças que têm origens ideológicas e históricas. O PCP era e foi ao longo do período do Estado Novo, de Salazar, o principal partido de oposição. Mas, sobretudo a partir da década de 1960, começam a surgir alguns pequenos partidos à esquerda que não estão alinhados com o PCP. E alguns destes partidos depois vão estar na gênese daquilo que é o BE.
O BE surge em 1998 como uma aliança de três forças políticas: Partido Socialista Revolucionário (PSR), que era trotskista; União Democrática Popular (UDP), de inspiração maoísta e que tinha tido brevemente representação parlamentar no início da democracia portuguesa; e Política 21, formada por dissidentes do PCP pós-queda do Muro de Berlim. Como se pode ver, as forças políticas que formam o BE têm posições ideológicas bastante distintas do marxismo-leninismo que marcam até hoje a posição do PCP.
Outra nota importante é que o BE tinha sobretudo no início, mas tem até hoje, posição mais vincada daquilo que chamamos de valores pós-materialistas. São valores que o PCP tipicamente não põe no centro de sua agenda política e em alguns casos até com posições distintas daquelas que o BE defende. Portanto, os partidos têm perspectivas políticas distintas.
E o BE acaba por ser um desafio ao PCP, porque ocupa o espaço político que até então era monopolizado pelo PCP, que era o único partido à esquerda do PS e o único à esquerda que criticava o “arco de poder” em Portugal. Com o BE, o PCP acaba por ter de partilhar este espaço. São dois partidos que têm posições ideológicas, programáticas e também táticas diferentes.
Estas diferenças também poderiam ter jogado contra a geringonça?
Eu não diria que estas diferenças poderiam ter jogado contra a geringonça. Porque o PS nunca procurou fazer um acordo entre os três partidos. Foram acordos do PS com o Bloco e do PS com o PCP.
Portanto, PCP e Bloco nunca têm de entrar em acordo entre si. E isso até acho que ajudou e facilitou o trabalho do PS em estabelecer os acordos.
Teria sido muito mais difícil fazer um acordo a três do que dois acordos com cada um deles. Mas, e retomando a observação que o Emanuel fez, de fato não existe um acordo, nem mesmo uma coligação, entre PCP e Bloco em Portugal.
Ainda sobre a questão ideológica e programática, o professor tem um artigo, “No meio está a virtude? As preferências e posições de eleitores e partidos nas legislativas de 2005”, em que mostra, ao analisar o conteúdo dos programas eleitorais apresentados nas legislativas de 2005 por PS e PSD, que estes partidos apresentavam uma proximidade grande com plataformas eleitorais muito semelhantes. Tariq Ali tem um livro em que fala do “extremo centro” e aborda como os partidos da governação, como Conservadores e Trabalhistas (particularmente o Neotrabalhismo) no Reino Unido, CDU e SPD na Alemanha, PP e PSOE na Espanha, Republicanos e Socialistas na França, tendem a governar com agendas políticas não muito diferentes. O senhor considera que este é, em geral o caso de PS e PSD?
Em geral, é o caso de PS e PSD em Portugal, sim. Eles têm posições políticas bastante próximas, bastante semelhantes.
Agora o que vai ser interessante analisar é como esta experiência da geringonça altera a dinâmica do sistema partidário português. Isto porque por um lado a geringonça pode puxar o PS mais para a esquerda, mas também pode ter o efeito oposto, de puxar PCP e Bloco mais para o centro.
Por outro lado, com a anterior liderança do PSD, havia, digamos, certa rejeição à geringonça e o PSD também ia um pouco mais para a direita.
Com a nova liderança de Rui Rio, que assumiu em janeiro do ano passado, o PSD parece estar a mudar a sua posição e a virar mais para o centro. Mas vamos ver. A verdade é que a geringonça é um bom desafio a essa proximidade histórica entre PSD e PS.
Há alguns políticos e analistas que entendem que entramos numa era de alternância bipolar, ou seja, governos de esquerda (PS com PCP e Bloco) e governos de direita (PSD e CDS), enquanto anteriormente era uma alternância muito mais centrista, entre PS e PSD. Temos de esperar para ver.
Agora, há um dado que é importante notar. Que é o fato de PS e PSD terem vindo a perder votos desde as eleições legislativas de 2009. E quanto menos estes dois partidos têm combinados, mais forçados são a encontrar entendimentos com outros partidos. O fato de termos esta viragem do PS para os partidos à sua esquerda e do PSD para o CDS em 2011-2015, é também reflexo da evaporação das votações destes dois partidos, que, por sua vez, mostra que os eleitores começam a fugir de tal proximidade.
Neste sentido, da proximidade entre PS e PSD, entende, como argumentam os líderes de PCP e do BE, que a geringonça foi mais progressista porque os partidos à esquerda forçaram os Socialistas a adotarem políticas públicas mais de esquerda e caso fosse um governo majoritário socialista não seria assim?
É impossível avaliarmos essa afirmação porque não há nenhuma contrafatual que nos permita respondê-la. É compreensível que PCP e Bloco façam tal afirmação.
Pois, caso contrário, o seu apoio está a ser dado a um governo que seria exatamente igual a todos os governos que anteriormente criticavam e cujos orçamentos rejeitavam.
Suspeito que se perguntarmos na União Europeia a percepção deste atual governo não é assim tão diferente do que teria sido o governo do PS sozinho, sem estes dois. Mas é muito difícil avaliar. Até porque o governo ocorre num período particularmente único, que é o pós-regaste.
Qualquer governo estaria necessariamente a fazer reversões da austeridade anterior. Se fosse um governo PSD/CDS-PP, provavelmente também estaria a fazer reversões.
Não a este ritmo, não estas reversões, mas seria impossível que mantivessem o mesmo nível de austeridade, pois seria politicamente suicida. Portanto, é difícil saber o que ocorre naturalmente por ter acabado o período de resgate e de pressão dos partidos à esquerda.
Obviamente que há certas políticas públicas onde é possível identificar o dedo de PCP ou BE. Aliás, depois de cada orçamento os dois partidos fazem uma lista dizendo “estas são as políticas que conseguimos”. Mas, se olharmos para um balanço global das políticas públicas, acho que não é tão fácil dizer que o atual governo é mais progressista do que seria um governo majoritário do PS.
Considerando o abalo nos sistemas partidários europeus com a ascensão do populismo, principalmente de extrema-direita, que em parte reflete o descontentamento popular com a elite política e o sistema representativo, entende que a geringonça portuguesa contribui para que Portugal esteja, ainda, protegido deste fenômeno?
Eu creio que a geringonça não tem um efeito negativo. Nós temos alguns fatores que têm nos protegido contra pressões populistas. O primeiro é o fato de virmos de um regime autoritário de direita, que ainda hoje tem uma conotação negativa.
Não é uma blindagem perfeita, mas é uma blindagem. Não temos presente na sociedade portuguesa alguns dos temas que partidos populistas de extrema-direita têm capitalizado em outros países – a imigração não é um tema saliente em Portugal; a questão da criminalidade não é saliente porque, felizmente, a criminalidade é baixa; na questão Europeia, Portugal é um país majoritariamente pró-Europa. Isso não quer dizer que Portugal esteja imune.
Aliás, vai ser um bom teste ver quais os resultados que um novo partido que agora surge em Portugal, o Chega, vai ter nas Legislativas e antes disso nas Europeias. E está a pegar em um ângulo em que a lógica populista pode resultar, que é falar dos “parasitas do welfare state”, que é um tema que em Portugal, apesar de tudo, é possível que tenha mais atração.
No dia 6 de outubro os eleitores portugueses vão às urnas votarem nas Legislativas 2019. Por conta disso, acha que a geringonça ainda existe ou o ano eleitoral forçosamente vai fazer com que PS, PCP e Bloco adotem discursos cada vez mais dissonantes?
A expectativa é de que sejam discursos cada vez mais dissonantes. Aliás, de certa forma, a geringonça chegou ao fim com a aprovação do orçamento de Estado para 2019, em outubro de 2018.
A partir daí, tendo já definido o último grande instrumento de governação, a expectativa é que tais partidos comecem a reforçar a sua distinção, até porque vão a votos separadamente e vão competir pelos mesmos eleitores: há uma parte do eleitorado que vai decidir se vota PS ou Bloco, há outra parte que vai decidir se vota PCP ou PS. Portanto, há uma competição eleitoral natural que vai sobressair com o aproximar das eleições.
O que não quer dizer que não existam alguns entendimentos, mas a expectativa é que a afirmação das diferenças entre os partidos será cada vez mais evidente ao longo deste ano. Sobretudo por parte de PCP e Bloco, não tanto do PS, porque se olharmos para o discurso de todos os partidos o único que fala em geringonça é o PS, o PCP nunca fala e o BE só às vezes fala.
Assim, o PS ter o apoio de BE e PCP é uma mais-valia e creio que vá manter este discurso, para sinalizar que vale a apena votar PS para ter tais tipos de entendimentos.
Enquanto que para PCP e BE a tentativa é separar as águas para reforçar a votação neles, com o argumento de que foram eles que forçaram o PS a ir para a esquerda, e que votar neles é útil para forçar uma governação à esquerda.
Esse argumento do PCP e do Bloco é visto no parlamento, por exemplo, em casos quando é do interesse do sistema financeiro em que os dois votaram contra o governo e o PS contou ou com o voto ou a abstenção do PSD para aprovar as medidas. Mais recentemente, tivemos a questão da Lei da Saúde, que o PS contou com a esquerda, enquanto que a lei trabalhista, contava com o PSD.
Isso é prática habitual em governos minoritários. Aliás, os governos minoritários têm sido quase sempre do PS, com exceção de um do PSD entre 1985-87.
E esses governos minoritários do PS têm sido sempre forçados a negociar tanto à esquerda quanto à direita, de acordo com o tema político.
A diferença aqui é que os governos minoritários do PS só conseguiam negociar orçamento à direita e desta vez não só negociaram como aprovaram orçamentos à esquerda. E isto é uma inovação interessante.
Mas, sim, a minha expectativa é de que este ano, até as eleições, seja um governo mais normal de minoritário do que de “geringonça”.
Acredita que o PS vai transformar a experiência positiva da geringonça em capital eleitoral e, assim, vencer as eleições?
Neste momento as sondagens dão uma vantagem substancial ao PS e seria uma surpresa um cenário de derrota eleitoral do PS.
E o PS consegue maioria absoluta? Caso não consiga, acha possível uma nova edição da geringonça? Quais os cenários que podemos ter?
Agora, as sondagens também mostram que o PS está longe de uma maioria absoluta. Não havendo maioria absoluta o PS vai entrar num contexto político particularmente interessante.
Porque vamos ter, mais uma vez, um governo minoritário do PS, mas onde já não precisa do apoio dos partidos à esquerda para chegar ao governo.
Portanto, vai ser muito interessante ver até que ponto esta geringonça é reeditável num cenário em que o PS ganha as eleições com minoria e a maioria parlamentar está à esquerda, como previsivelmente estará se as sondagens se confirmarem.
Vai ser interessante ver se o PS procura reeditar a geringonça e se Bloco e PCP estão dispostos a negociar com o PS neste cenário. E aí abrem-se várias possibilidades.
Há quem diga que podemos eventualmente até chegar a ter uma coligação com a entrada – e aí aponta-se muito mais para o Bloco – de um partido à esquerda no governo com o PS. Mas, vamos ver.
E se o PS ganhar as eleições sem maioria absoluta, vai ser um bom teste para vermos se a geringonça foi uma experiência única que derivou de circunstâncias também únicas ou se é um ponto de viragem do sistema partidário português, para uma maior cooperação à esquerda, permitindo um grau de cooperação que não existia.
Emanuel Leite Jr. é jornalista. Atualmente faz doutorado em Políticas Públicas na Universidade de Aveiro, Portugal.