Correio da Cidadania

Eleições britânicas

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Mal saiu a boca de urna na quinta-feira, 12 de dezembro, nas eleições britânicas e análises mundo afora começaram a pipocar — na maioria dos casos, por gente que começou a prestar atenção na política britânica no próprio dia 12 mesmo (bem ilustrado por num tuíte de Paul Krugman, que começa dizendo “Eu não sei chongas sobre a política do Reino Unido, no entanto...”).

 
Jeremy Corbyn em sua juventude protestando contra o apartheid sul-africano

No Brasil, não foi diferente. O colunista da Folha de S. Paulo, Vinicius Torres Freire, postou no Facebook que “O Partido Trabalhista britânico virou picadinho hoje” e “besta que é o Corbyn, nas suas ideias velhas, sua conversa velha, sua desconexão até dos trabalhadores e jovens, seus elogios de ditaduras” e acrescentou “Corbyn, o líder trabalhista, é uma besta, um medíocre e impopular (rejeição de quase 60%, maior que a do ogro BoJo)”. O professor de Relações Internacionais da Fundação Getúlio Vargas, Oliver Stuenkel, foi ao twitter para afirmar que o que tornou Labour “impalatável para eleitores moderados” teria sido o “programa mais radical em décadas” e ainda extrapolou o resultado britânico para vaticinar que só um centrista seria capaz de derrotar Donald Trump nos Estados Unidos.

Nem sequer são ideias muito originais. As mesmas análises prêt-à-porter pululam na imprensa norte-americana. O articulista liberal Andrew Sullivan escreveu que “o ponto político ideal nos próximos anos será uma combinação de economia de esquerda e uma celebração do Estado-nação” (isso não é nada novo, prezado liberal), acrescentando que “essa também seria uma ótima fórmula para os democratas se eles realmente quiserem vencer em 2020”. Na cobertura da imprensa brasileira, o enfoque foi parecido, enfatizando-se “uma campanha desfocada, com um programa disperso e promessas vagas a vários eleitorados, sem tomar posição sobre a questão mais importante na história recente do país”.

A grande maioria dessas análises é mera projeção. Quase nada é fundamentado em dados. É muito relevante se o leitor estiver interessado em saber sobre a visão de mundo do autor. É, porém, absolutamente inútil para quem quiser entender o que ocorreu no Reino Unido. É importante destacar que nenhuma eleição, em lugar nenhum do mundo, pode ser avaliada sem considerar fatores externos aos candidatos: desde o próprio sistema político, até financiamento de campanhas, incluindo a função que a imprensa tradicional cumpre na formação de opinião de eleitoras e eleitores. No Reino Unido, não foi diferente.

Labour sob Corbyn

Corbyn se elegeu líder do Partido Trabalhista em 2015 de forma inesperada. Em um perfil publicado no Guardian sobre Corbyn e seus aliados mais próximos, Andy Beckett os definiu como “Em vez de carreiras, eles tinham causas — anticapitalismo, luta de classes, ativismo pela paz, republicanismo irlandês”. Por uma conjunção de fatores (contada nesse excelente livro), Corbyn contrariou todas as expectativas (incluindo as dele próprio) e se tornou líder do Partido Trabalhista, derrotando de forma contundente a ala blairista dominante, em 2015.

Desde o começo, a ala até então hegemônica fez de tudo para desestabilizar a nova liderança, sob a qual Labour se tornou um dos maiores partidos da Europa, com mais de meio milhão de membros, cujo sólido apoio foi essencial durante todo o período. A filósofa Chantal Mouffe escreveu que sob sua liderança, “o Partido Trabalhista conseguiu dar àqueles que abandonaram a política sob Blair um gosto por ela novamente”. O antropólogo da LSE, David Graeber, observou que o Labour sob Corbyn “realmente entende que não é desejável cooptar, simplesmente absorver a esquerda extraparlamentar”. Em 2017, Corbyn frustrou os planos da então primeira-ministra Theresa May de expandir a sua maioria parlamentar. O Labour experimentou seu maior aumento no apoio eleitoral desde 1945, por pouco derrotando a incumbente, que ficou com um governo de minoria. Corbyn chegou a ser mais popular do que May. O bom desempenho do líder trabalhista britânico contrastava com o declínio eleitoral de seus pares socialdemocratas na Europa continental.

Leo Panitch, da Universidade de York, em 2018 classificou o programa do Labour sob Corbyn como a “maior extensão de direitos econômicos democráticos que a Grã-Bretanha já viu”. Em setembro desse ano, o Financial Times explicou que o Labour busca “uma mudança fundamental na propriedade e nos impostos”. A plataforma eleitoral do Labour, aprovada na conferência do partido em setembro, incluía políticas tais como: uma semana de quatro dias (sem perda de pagamento), um Green New Deal (com uma meta de carbono zero em 2030), fundos de propriedade dos trabalhadores, proteção à livre circulação de pessoas, o fechamento de todos os centros de detenção de imigrantes, a abolição da pobreza no trabalho e um segundo referendo do Brexit.

A eleição pautada por Brexit

Assim, como explicar a derrota do dia 12 passado? Uma pesquisa recente mostrou que o programa do partido em 2019 era muito popular e que nada indicava que fosse isso a causa da vantagem dos conservadores. Angelos Chryssogelos, professor de política da London Metropolitan University, observou que a tática principal de movimentos políticos que não são de esquerda “sempre foi mudar o debate de questões materiais para não materiais: monarquia, religião, nacionalismo, império, família, lei e ordem, imigração, soberania”. Centrar a eleição na questão do Brexit, como queria o Partido Conservador de Johnson, era natural. Nas eleições de 2017, os Conservadores sob May ofereciam um “Brexit suave” (soft Brexit), enquanto os trabalhistas defendiam o respeito à decisão do referendo de 2016.

Com o Brexit fora de questão, Corbyn conseguiu impor a pauta eleitoral com o seu manifesto esquerdista que, durante a campanha, tornou-se popular. Corbyn obteve um dos totais trabalhistas mais altos da história moderna em 2017 (40%). Dessa vez, no entanto, depois de uma campanha liderada sobretudo por parlamentares ditos “centristas”, muitos dos quais perderam espaços de poder no partido com a ascensão de Corbyn, por um segundo referendo denominado “People’s Vote”.

Numa medida conciliatória, mas indo contra o seu próprio instinto e o conselho de parlamentares trabalhistas em constituintes pró-Brexit, durante a eleição Corbyn defendeu um segundo referendo.

Eis aí uma das principais diferenças entre as eleições de 2017 e as que acabaram de ocorrer agora: em ambas havia o mesmo líder com um programa “radical”, o que mudou foi a posição com relação ao Brexit. O Financial Times definiu essas eleições gerais, logo no começo, como uma disputa entre o enquadramento em torno da Brexit por parte de Boris Johnson, e a tentativa de Jeremy Corbyn de “fazer todo o possível para falar sobre qualquer outra coisa”. Prevaleceu a estratégia conservadora.

Das 59 constituintes que o Labour perdeu no dia 12, cinco foram para o Partido Nacional Escocês (SNP); 52 foram constituintes que votaram pelo Brexit em 2016, e só duas perdidas tinham votado pela permanência. Setenta e dois por cento dos que votaram no Partido Conservador disseram que a necessidade de “concluir Brexit” foi o principal motivo de seu voto — o slogan de Johnson nessa campanha era justamente esse: “Get Brexit Done”.

Diante desses dados, Aisha Ahmad, doutoranda na University of Oxford, comentou: “As pessoas querem o Brexit feito. Se elas acreditassem na triangulação centrista, veríamos oscilações a favor dos Lib Dems. Nós não vimos. Este não é um problema de Corbyn. Este é um problema do Brexit”. Um quarto dos eleitores trabalhistas que apoiavam o Brexit desertou para os conservadores. Os votos dos trabalhistas beneficiaram quase exclusivamente os nacionalistas: a extrema-direita pró-Brexit (na Inglaterra e no País de Gales) ou a esquerda socialdemocrata independentista (na Escócia). Nenhum dos parlamentares centristas que desertou dos partidos Trabalhista e Conservador esse ano se reelegeu, incluindo a líder do partido centrista Liberal Democrata. A votação do Labour no dia 12 caiu de 40% nas eleições anteriores para 32%, ficando alguns poucos pontos percentuais abaixo da votação de Tony Blair em sua última eleição em 2005 (35%), e de Ed Miliband (35,7%) em 2015, e bem acima de Gordon Brown, que obteve 28% em 2010.

Como espero ter deixado claro, o Reino Unido tem especificidades fundamentais a qualquer análise sobre o resultado do último pleito — e que demandam uma compreensão mais ampla do contexto.

Outros fatores

Há muitos outros fatores além de Brexit, alguns estruturais, que contribuíram para o resultado. O jornalista Aditya Chakrabortty observou que o resultado da semana passada é a consequência de um processo que remonta a décadas, trata-se da “herança envenenada de Corbyn, não de sua criação — mas qualquer líder que quiser recuperar essas constituintes terá que lidar com esse legado melhor do que ele foi capaz”.

Analisando as estatísticas da votação, o Financial Times concluiu que a proporção de trabalhadores em empregos pouco qualificados foi um maior indicador de oscilação do voto do que o Brexit. Em um extenso fio no Twitter em que analisou os resultados das eleições, Jack Donohue concluiu: “A estratégia do Labour para esta eleição foi horrível e horrível por causa da composição de classe dos parlamentares e da base de ativistas do Labour. Essa perda foi totalmente sobre o Brexit, mas o Brexit é totalmente sobre classe (embora de uma maneira irritantemente não-direta)”.

A editora da Novara, Ash Sarkar, elencou alguns fatores mais relevantes: 1) Desindustrialização e seus efeitos na sindicalização; 2) nacionalismo escocês e devolução; 3) A perda de eleitores mais velhos; 4) A concentração de eleitores nos centros urbanos; 5) Identidade nacional e desigualdades regionais.

O poder da propaganda

Boris Johnson é a antítese de Corbyn. Nathan J. Robinson, num perfil demolidor, observou que para Johnson, “a política é uma brincadeira”, afinal “é fácil, quando a política não traz consequências materiais reais para você ou qualquer um de seus amigos, vê-la como uma espécie de jogo, uma continuação de seus dias malandros de colégio”. Ele tem um histórico de posicionamentos misóginos, homofóbicos e racistas. O Partido Conservador é impregnado de islamofobia. O programa político apresentado pelo partido não continha praticamente nenhuma substância. Oitenta e oito por cento dos anúncios conservadores mais amplamente divulgados nos quatro primeiros dias de dezembro incluíram afirmações incorretas, segundo uma pesquisa.

Como é possível que na disputa entre esse sujeito e o ativista antirracista com uma plataforma popular, seja esse último que tenha a pecha de racista e que seja impopular? Como disse um astuto observador da política britânica, “quando as pessoas dizem que ‘Corbyn era um problema’, seria mais preciso dizer que ‘as mentiras, difamações e propaganda implacáveis sobre Corbyn eram um problema’”. Jeffrey St. Clair, editor do site CounterPunch, observou que “Por quatro anos, Jeremy Corbyn foi alvo de uma campanha implacável e selvagem de difamação e calúnia ultrajante pela imprensa britânica”.

Um estudo realizado pelo professor Bart Cammaerts, do Departamento de Mídia e Comunicações da London School of Economics and Political Science, um ano após a ascensão de Corbyn à liderança do Labour, constatou que 75% de cobertura da imprensa britânica deturpava o líder trabalhista: “Quando se trata da cobertura de Corbyn em seu papel de líder da oposição, a maioria da imprensa não atuou como um cão de guarda crítico dos poderes estabelecidos, mas mais frequentemente como um cão de ataque antagônico”. Durante a campanha, a imprensa britânica continuou incorrendo em uma cobertura enviesada, situação ampliada pela hostilidade de Johnson a qualquer escrutínio.

Um estudo da Loughborough University sobre a cobertura da mídia dessas eleições gerais constatou “os altos níveis de negatividade dos jornais em relação ao Labour identificados na primeira semana da campanha foram mantidos na segunda semana e aumentaram marginalmente na terceira semana”.

Um dos principais mecanismos dessa campanha foi o “escândalo” do “antissemitismo do Labour”. É relevante me alongar nesse ponto. Enquanto na Internet anglo-saxônica, é possível encontrar um debate intenso sobre o tema, em português chega simplesmente como se se tratasse de um fato incontestável — afinal, onde tem fumaça, tem fogo. Exceto que, nesse caso, tem fumaça sem fogo.

Jamie Stern-Weiner, britânico-israelense doutorando em Estudos do Oriente Médio na Universidade de Oxford, analisou uma importante pesquisa de opinião sobre o tema. A pesquisa indica que a concordância com os estereótipos tradicionais antissemitas sobre judeus é mais alta à direita do que à esquerda; maior entre os eleitores conservadores do que entre os trabalhistas; maior entre os apoiadores de Boris Johnson do que os de Jeremy Corbyn.

A pesquisa indicou ainda que a prevalência de preconceitos antissemitas tradicionais “permaneceu bastante consistente nos últimos cinco anos”. No entanto, os dados da mesma pesquisa resultam noutra conclusão quando o seu entendimento de antissemitismo junta declarações negativas sobre Israel com declarações negativas sobre judeus, com base na “Definição Internacional de Antissemitismo”, que especialistas consideram ser “incoerente, vaga e ameaçadora à liberdade de expressão”. Aí então, a pesquisa conclui que “visões antissemitas são mais difundidas na extrema esquerda”, enquanto “o líder do Partido Trabalhista, Jeremy Corbyn, era particularmente popular entre pessoas com visões antissemitas”.

Em 2018, houve 1.106 referências de alegações de antissemitismo no Labour. Dessas, 433 não tinham relação com os membros do partido, deixando 673 para serem investigadas, das quais 220 foram descartadas inteiramente por falta de provas. Sobraram 453 casos, ou seja 0,08% dos 540.000 membros do partido, equivalente a cerca de 1/12 de 1%, 96 dos quais resultaram em suspensões — ou seja, 0,01% dos membros — e doze expulsões — ou seja, 0,002% dos membros. Como concluiu o escritor britânico Michael Rosen, “os requisitos mínimos para uma alegação de que existe um ‘problema’ em uma determinada área (por exemplo, antissemitismo no Partido Trabalhista) é que seja mensurável e distintamente pior do que em outros espaços ou na sociedade como um todo. Se isso não foi mostrado (e não foi), não se trata de um problema do Partido Trabalhista, mas sim de um problema social”.

Em 2017, foi ao ar uma reportagem investigativa da Al Jazeera English, resultado de uma investigação secreta de seis meses, revelando como Israel penetra em diferentes níveis da democracia britânica. As evidências levantaram sérias questões sobre se as acusações de antissemitismo e mostram como elas são usadas para reprimir o debate político. Também é mostrada uma autoridade de alto escalão da embaixada israelense em Londres discutindo um possível plano para “derrubar” políticos britânicos, incluindo o então ministro de relações exteriores do governo conservador.

Como Stern-Weiner explicou: “É essa combinação de histeria moral com armas de elite que caracteriza essa propaganda ofensiva sobre o Labour [...] É um modelo de como desmoralizar, desacreditar e derrotar uma mobilização popular para transformar a sociedade no interesse da maioria das pessoas”. David Hearst, editor-chefe do site MiddleEastEye e ex-editor internacional do Guardian, foi na mesma linha: “é evidente que o objetivo [da campanha anti-Corbyn] é derrubar o líder da oposição usando as táticas dos fascistas — caluniando, difamando , intimidando”.

O advogado e ativista israelense Eitay Mack explicou que a razão pela qual o governo israelense é tão hostil a Jeremy Corbyn se deve ao fato de ele ser “a favor da Palestina e dos direitos humanos, e o governo Netanyahu vê Corbyn como um grande obstáculo na implementação de sua política em todo o mundo”. Nikhil Pal Singh, professor da New York University, explicou que “difamar os críticos de Israel como antissemitas é o veículo perfeito para a política de centro-direita, porque combina protocolos aceitos de política de identidade antirracista com desprezo pela esquerda e racismo em relação a palestinos, árabes (e judeus) que não precisa ser dito em voz alta”.

A mesma tática está agora começando a ser aplicada contra o Senador Bernie Sanders. Sanders, que teve parentes vítimas do Holocausto, foi acusado de antissemitismo por alguém cujo avô foi colaborador nazista. Mas a sua campanha parece ter aprendido as lições com o que ocorreu no Reino Unido, respondendo de forma contundente ao invés de ficar na defensiva.

Uma pesquisa aprofundada sobre a controvérsia em torno do antissemitismo no Partido Trabalhista da Media Reform UK, uma associação de grupos da sociedade civil, acadêmicos e ativistas da mídia para debates sobre regulamentação e propriedade da mídia, realizou uma pesquisa que identificou “inúmeras imprecisões e distorções nas notícias online e na televisão”.

Greg Afinogenov, historiador na Universidade Georgetown, explicou que se trata da “confluência de interesses entre a imprensa de direita, que procura demonizar Corbyn como a principal alternativa ao partido Conservador de Theresa May, e a imprensa de centro-esquerda, que procura demonizar Corbyn porque ele representa uma ameaça ao establishment do New Labour que o controla. (...) O antissemitismo é apenas o mais ressonante de todo um leque de difamações dirigidas a ele, desde acusações de ser um agente soviético a ‘seguir o manual de Trump’”.

Um outro fator determinante é pouco discutido, geralmente sequer reconhecido, embora muita informação seja de domínio público. Trata-se da intervenção de setores da inteligência estadunidense e britânica para desacreditar Corbyn. É simplesmente sem precedentes na história recente o grau em que a inteligência ocidental foi empregada contra um movimento político no norte global. Corbyn sempre foi um anti-imperialista e internacionalista convicto e atuante. Sua visão de política externa consistia num plano para uma ordem mundial fundamentalmente diferente, baseada na cooperação e solidariedade internacionais, opondo-se ao papel auxiliar desempenhado pelo Reino Unido e a pilares do establishment do estado de segurança nacional transatlântico.

Em junho de 2019, foi vazado para o Washington Post uma fala do ex-diretor da CIA e atual secretário de Estado (equivalente a ministro de relações exteriores) Mike Pompeo, em que ele dizia: “É possível [que Corbyn seja eleito]... Não vamos esperar que ele faça essas coisas para começar a reagir. Faremos o nosso melhor nível. É muito arriscado, muito importante e muito difícil, uma vez que já tenha acontecido”.

De fato, agências de inteligência britânicas e organizações apoiadas pelo governo dos EUA intensificaram seus ataques a Corbyn. Em janeiro deste ano, documentos vazados revelaram uma rede secreta de espiões, jornalistas proeminentes e “think tanks” conspirando sob o guarda-chuva de um grupo chamado “Integrity Initiative” para moldar a opinião pública doméstica — e para difamar os opositores políticos do governo conservador, incluindo Corbyn. No começo de dezembro, o jornalista britânico Matt Kennard documentou pelo menos 34 matérias importantes da mídia que têm como fontes oficiais das agências militares e de inteligência do Reino Unido, a fim de caracterizar Corbyn como uma ameaça à segurança nacional.

Lições para a esquerda internacional

Somando-se as questões estruturais, o viés da imprensa e do poder econômico, a campanha do lobby pró-Israel, a intervenção de setores da inteligência, e temos essa situação em que numa disputa entre um elitista que defende políticas racistas doméstica e internacionalmente, com um longo histórico de posições e declarações racistas, misóginas, homofóbicas e islamofóbicas, representante por excelência do sistema político e econômico que vem há 40 anos piorando a vida dos britânicos, e Corbyn, cuja vida foi pautada pela luta antirracista, pela oposição contundente ao sistema econômico vigente e que apresentou um manifestou popular — na narrativa predominante na imprensa este último é o que leva a fama de “racista” e tem ampla desaprovação popular.

Em termos de propaganda, é um feito impressionante. A verdade é que nunca saberemos como Jeremy Corbyn e sua plataforma radical e popular teriam sido avaliadas num escrutínio realmente livre e justo. O que acaba de acontecer corrobora algo que Albert Einstein já havia notado em 1949: devido ao poder capital privado e sua influência no sistema político, “é extremamente difícil, e de fato na maioria dos casos bastante impossível, para cada cidadão chegar a conclusões objetivas e fazer uso inteligente de seus direitos políticos”.

Diante da emergência de uma direita extremista, xenófoba e nacionalista no mundo todo, como a esquerda mundo afora deve entender o que ocorreu no Reino Unido? Que lições podemos tirar? A vitória de Corbyn em 2015 foi acompanhada de perto por setores da esquerda mundialmente, pois ela teria implicações significativas. O Reino Unido teria tido a oportunidade de reverter o neoliberalismo, diminuir sua dependência geopolítica em relação a Washington, levando a cabo uma política externa mais humana, e representaria uma derrota da mídia corporativa e do estado de guerra permanente.

Richard Seymour aponta que enquanto as abstrações do nacionalismo “podem ser experimentadas como íntimas, concretas”, as políticas ambiciosas e populares do manifesto trabalhista, ainda que “cuidadosamente elaborado, orçamentado”, para muitos eleitores, sobretudo nas regiões devastadas por 40 anos de neoliberalismo, “parecia abstrato e utópico ”. Mesmo com a derrota, a eleição de Corbyn como líder do Labour foi reflexo — e ao mesmo tempo facilitador — de mudanças profundas no partido. Como bem lembrou James Butler, da Novara e da London Review of Books, Labour “agora tem filiados de esquerda atuantes e que levam a sério a mudança climática, a propriedade pública e a defesa da migração”. Ou seja, uma lição é que um movimento de esquerda não depende de um indivíduo, mas sim de trabalho de base.

David Adler, Policy Leader Fellow na School of Transnational Governance (EUI), escreveu sobre a importância de a esquerda dos EUA aprender as lições da derrota do Labour, dentre as quais: a necessidade de ter uma estratégia mais proativa para combater essas campanhas difamatórias e apresentar uma visão alternativa; manter uma coalizão social e regionalmente diversificada e unida; planos e políticas, por melhores e mais populares que possam ser, não garantem maiorias — é importante também como fazer chegar a mensagem à sociedade. Ficou claro, como bem observou Eric Levitz, que a agenda socialdemocrata robusta de Corbyn falhou em impedir que as regiões pós-industriais predominante brancas da classe trabalhadora virassem à direita, ao mesmo tempo em que não conseguiu reverter a abstenção de eleitores insatisfeitos.

A derrota de Corbyn coloca em evidência uma pergunta importante pra esquerda em qualquer lugar do mundo. Um projeto realmente popular e democrático, de enfrentamento à classe dominante, sem concessões tipo cartinhas ao banqueiro — digo, povo — brasileiro, vai sofrer o tipo de ataque contundente e sistemático que Corbyn e seu movimento enfrentaram. Qual a alternativa? Se nem no norte global isso é possível, que dizer de países do sul? Qual estratégia podemos adotar?

Essas são apenas algumas reflexões. O que procurei fazer aqui foi trazer para o português alguns dados referentes à política britânica recente, de modo a possibilitar um debate melhor embasado. É importante a esquerda brasileira estar atenta ao que se passa no resto do mundo, entre outras coisas para se inspirar nos acertos e evitar os erros.


Bernardo Jurema é pesquisador na Freie Universität Berlin; também foi pesquisador de Política Corporativa na London School of Economics.

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