E quem fez da Autoridade Palestina ‘Estado Policial’?!
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- Jonathan Cook
- 19/02/2020
Jared Kushner (Foto: Carlos Barria/Reuters)
Talvez, afinal de contas, alguma coisa que preste resulte do plano Trump. Ao precipitar o processo de paz para o Oriente Médio e levá-lo aceleradamente à conclusão, Donald Trump expôs, com clareza total, algo que se supunha que estivesse efetivamente ocultado: que nenhum governo dos EUA jamais, em tempo algum, considerou que sua ‘pacificação’ tivesse por objetivo alguma paz, fosse qual fosse.
O atual governo dos EUA não é exceção – apenas foi muito mais incompetente e fracassou muito mais rotundamente na ação de ocultar a própria estratégia, em aliança com Israel. Pois foi o que aconteceu, quando um glorificado vendedor de carros usados, Donald Trump, e seu genro e camareiro-em-chefe, misto de garoto de escola primária para ricos e comerciante, Jared Kushner, tentaram nos vender o “negócio do século”. Nenhum, nessa dupla, teve a capacidade nem política nem diplomática normalmente associada às figuras que chegam à presidência dos EUA.
Em entrevista a Fareed Zakaria, da CNN, essa semana, Kushner fracassou descaradamente na missão de ocultar o fato de que seu plano “de paz” foi concebido com um único objetivo: exterminar completamente o povo palestino.
O objetivo real está tão à vista que nem Zakaria conseguiu escondê-lo, por mais que se esforçasse. Na entrevista da CNN, Zakaria lembrou que “nenhum país árabe atende atualmente às exigências que se espera que os palestinos atendam nos próximos quatro anos – inclusive garantir plena liberdade de imprensa, eleições livres e justas, respeito aos direitos humanos dos cidadãos e judiciário independente”.
Foi quando o jovem alto conselheiro de Trump viu-se, repentinamente, desafiado por um tipo de lógica irrepreensível, que só muito raramente se vê na cobertura da CNN. Zakaria perguntou:
“Não será apenas um modo de dizer aos palestinos ‘vocês jamais terão Estado próprio’? Porque (...) se nenhum país árabe está hoje na posição que vocês cobram dos palestinos antes de poderem constituir-se como Estado... a proposta de vocês não é, afinal, proposta envenenada?”
Trata-se exatamente disso
De fato, o documento chamado “Paz para Prosperidade” revelado semana passada pela Casa Branca não passa de uma lista de precondições impossíveis, mas que os palestinos devem alcançar, antes de poder sentar com os israelenses à mesa de negociação. Se não alcançarem aquelas condições dentro de quatro anos e imediatamente, em pouco tempo, chegarem a um acordo com Israel, os pequenos fragmentos, literalmente, que ainda restam do território palestino histórico – as partes que Israel ainda não roubou e ocupou – serão também ocupadas, com as bênçãos dos EUA.
Condições absurdas
Não há quem não saiba que todos os planos de paz no Oriente Médio que a memória ainda guarda incluíram esse tipo de exigências preconceituosas e prejudiciais para os palestinos. Mas dessa vez muitas das condições são tão visivelmente absurdas – até contraditórias! –, que a imprensa sempre servil, por mais que deseje, não consegue não ver inconsistências tão visíveis.
A conversa pela CNN foi tão reveladora, pelo menos em parte, porque Kushner deixou-se prender no comentário de Zakaria, de que os palestinos teriam de se tornar modelo de democracia – uma espécie de Suíça idealizada, só que sob ocupação por israelenses beligerantes – antes de serem considerados suficientemente ‘bons’ para merecer Estado próprio.
Como seria razoável impor tal condição, Zakaria sugeriu, quando a Arábia Saudita, apesar dos horrendos abusos contra direitos humanos, mesmo assim se mantém na posição de íntimo aliado estratégico dos EUA e líderes sauditas permanecem íntimos do império comercial de Trump? Ninguém, em Washington, considera seriamente deixar de reconhecer a ‘democracia’ saudita, mesmo sendo o país um Estado religioso fundamentalista, de degoladores odiadores de mulheres e assassinos de jornalistas.
Mas Zakaria poderia ter usado argumento até mais claramente visível – se não estivesse a serviço dos executivos da CNN. De fato, só raríssimos Estados ocidentais atendem hoje às exigências de democracia e respeito aos direitos humanos, que o plano Trump fixou para os palestinos. Sequer Israel, é claro, passaria nesse ‘teste’.
Pensem na Grã-Bretanha, atropelando ano passado uma decisão da Corte Internacional de Justiça, em Haia, que ordenou que os nativos da Ilha de Chagos retornassem às próprias terras, décadas depois de terem sido expulsos de lá pelo Reino Unido, para que os EUA ali construíssem uma base militar. Ou o escândalo Windrush, quando se revelou que foi usada uma política “de ambiente hostil” para deportar ilegalmente cidadãos britânicos para o Caribe, por causa da cor da pele desses britânicos.
E quanto aos EUA livrando-se de qualquer tipo de ‘incômodo’ pelo aparelho judicial, por manter prisioneiros em área extraterritorial, em Guantánamo? Ou o emprego de tortura, por agentes norte-americanos, contra prisioneiros iraquianos? Ou a frequência de “entregas extraordinárias” [prisioneiros levados a países estrangeiros, para serem interrogados] ou os assassinatos ‘legais’ extrajudiciais em território de outros países, usando drones, matando inclusive cidadãos norte-americanos?
Ou, porque não se pode deixar que o mundo esqueça, a prisão e a imposição de multas extorsivas a Chelsea Manning, sentinela-vazadora de informação verdadeira, punida mesmo depois de o governo Obama ter-lhe assegurado clemência. Funcionários dos EUA querem agora forçar Manning a depor contra o fundador de Wikileaks, Julian Assange, pelo papel que teve na publicação de provas de crimes de guerra dos EUA cometidos no Iraque – inclusive do vídeo, terrível, conhecido como Collateral Murder.
E já que estamos falando sobre Assange e Iraque...
Será que o currículo de EUA ou Reino Unido sobreviveriam ao teste, se fossem submetidos ao teste que agora querem impor à liderança palestina?
Perguntas impertinentes
Mas avancemos na narrativa, direto ao coração da questão. Enfurecido pela ousadia de Zakaria, que apenas questionava muito gentilmente a lógica tortuosa do plano Trump, Kushner descontrolou-se.
Chamou a Autoridade Palestina de “Estado policial”, nada que a aproxime de “alguma pujante democracia”. Seria impossível, ele continuou, para Israel, fazer paz com palestinos, sem que os palestinos – não o exército ocupante ilegal! – mudassem seus procedimentos.
Mais do que hora de os palestinos priorizarem a democracia e os direitos humanos, ao mesmo tempo em que se rendem incondicionalmente à ocupação por Israel, beligerante, já velha de meio século, que viola os direitos humanos dos palestinos e desmente qualquer pretensão que Israel pudesse ter de ser ‘país democrático’.
Eis a resposta de Kushner:
“Se eles [os palestinos] acham que não conseguirão alcançar esses padrões, não me parece que consigam que Israel aceite o risco de reconhecê-los como Estado, muito menos de deixar que assumam o controle sobre eles mesmos, porque a única coisa mais perigosa do que o que se tem hoje, é se ali houver um estado fracassado [ing. failed state].”
Analisemos por um momento tudo que se esconde sob essa frase curta, para expor várias confusões e falsidades.
Primeiro, o pressuposto flagrantemente errado, segundo o qual “estados fracassados” seriam sempre “estados policiais” e ditaduras. É falso. De fato, estados policiais e ditaduras são muitas vezes o exato oposto de Estados fracassados. O Iraque era estado extremamente estável no governo de Saddam Hussein, dado que tinha plena capacidade para prover educação e outros serviços do estado de bem estar, ao lado de uma brutal eficiência para esmagar qualquer oposição.
O Iraque só se tornou estado fracassado depois que os EUA invadiram ilegalmente o país e executaram Saddam, criando um vácuo de liderança que sugou vários atores que disputavam o poder político, o que rapidamente tornou o Iraque ingovernável.
Estado opressor, por projeto
Segundo, e nem seria necessário repetir, a Autoridade Palestina não poderia ser “Estado policial”, dado que sequer é Estado. Afinal, ser Estado é precisamente o que os palestinos tentam alcançar, e Israel e os EUA vivem para impedir que alcancem. Trata-se obviamente de outra coisa. E essa “outra coisa” nos leva ao terceiro ponto.
Kushner acerta ao dizer que a Autoridade Palestina é cada vez mais autoritária e usa suas forças de segurança de modo opressivo – porque isso, exatamente, é o que Israel e os EUA a mandam ser e fazer.
Os palestinos assumiram que os acordos de Oslo, de meados dos anos 1990, levariam à criação de um Estado soberano, ao final dos cinco anos do processo de paz. Mas não aconteceu assim. Impedida desde então de alcançar a condição de Estado, a Autoridade Palestina não passa hoje de empresa fornecedora de serviços de segurança para os israelenses. Sua missão, jamais confessada, é forçar o povo palestino a se submeter à ocupação permanente de seu território, por Israel.
O acordo de autodestruição consentida contido na fórmula de Oslo, de “terra em troca de paz”, era isso: a Autoridade Palestina levaria os israelenses a confiar nela, ao esmagar qualquer resistência contra a ocupação; em troca, Israel concordaria e ceder à Autoridade Palestina mais território e mais poderes sobre a segurança.
De mãos amarradas pelos compromissos que assumira perante a lei, a Autoridade Palestina viu duas trilhas à sua frente: ou se tornaria Estado por concessão e licença de Israel, ou operaria como um ‘regime de Vichy’, suprimento quaisquer aspirações que os palestinos tivessem de libertação nacional. Quando EUA e Israel deixaram claro que sempre negariam aos palestinos o direito de terem Estado próprio, o destino da Autoridade Palestina foi selado.
Dito de outro modo, o mais importante de Oslo, do ponto de vista de EUA e de Israel, sempre foi converter a Autoridade Palestina em Estado policial eficiente em permanente prontidão; e Estado policial que não tivesse nem força nem meios para ameaçar Israel.
Isso, exatamente, foi arquitetado. Israel recusou-se a permitir que os palestinos tivessem exército capaz de levar o povo a construir o próprio Estado, porque esse exército sempre poderia tornar-se ameaça contra Israel. Em vez disso, um general do exército dos EUA, Keith Dayton, foi designado para supervisionar o treinamento das forças policiais palestinas, para adestrá-las para a luta de repressão interna contra qualquer oposição anti-Israel e contra quaisquer palestinos que reivindicassem o próprio direito, em termos da lei internacional, para resistir contra a ocupação israelense.
É possível que – e sinal do sucesso do programa norte-americano de repressão contra o povo palestino –, por isso, Kushner fale hoje da Autoridade Palestina como estado policial.
Lapso freudiano
Na entrevista à rede CNN, Kushner inadvertidamente expôs o “Ardil-22” criado para os palestinos. O processo “de paz” de Trump penaliza a liderança palestina pelo sucesso que alcançaram, na busca das metas fixadas no processo “de paz” de Oslo, contra os próprios palestinos.
Resistir contra os esforços de Israel para privar os palestinos do próprio Estado; e a Autoridade Palestina classificada como entidade terrorista.
Submeter-se ao que Israel ordene e oprimir o povo palestino para impedir que exijam o direito ao próprio Estado e à Autoridade Palestina é classificado como política de Estado. Nem por uma via, nem pela outra, é razoável supor que se chegue ao Estado almejado. Façam o que fizerem os palestinos, nada acontece.
O fato de Kushner falar de “estado fracassado” também é revelador – como uma espécie de lapso freudiano. Israel não quer apenas roubar terra dos palestinos antes de criar algum Estado pequeno, impotente. Na verdade, Israel não planeja admitir Estado palestino algum, nem algum Estado minado, colaboracionista como é hoje a Autoridade Palestina.
Partidário, sem vergonha de o ser
Kushner, contudo, fez-nos um favor, mesmo inadvertidamente. Expôs claramente o jogo de fisgar e puxar em que tentam enredar os palestinos. Diferente de Dennis Ross, Martin Indyk e Aaron David Miller – diplomatas judeus norte-americanos que supervisionaram os “esforços de paz” dos EUA –, Kushner não faz qualquer esforço para, que fosse, fingir que seria “negociador honesto”. É figura transparente e desavergonhadamente partidária.
Em entrevista anterior à CNN, há uma semana, com Christiane Amanpour, Kushner mostrou o quanto é pessoal a antipatia que lhe inspiram os palestinos e respectivos esforços para alcançar mínimas condições de Estado, mesmo que no território que lhes resta do território palestino histórico.
Parecia mais um amante enganado, ou marido perverso condenado a se submeter a terapia de casais, que diplomata encarregado de conduzir um processo de paz complexo e incendiário. Repetiu frases desgastadas cuja falsidade já foi demonstrada, sem nem tentar disfarçar a perversidade doentia dos ‘argumentos’ para divulgação-repetição pelos veículos sionistas.
Nota:
Jared Kushner, alto conselheiro do presidente dos EUA, disse a Amanpour que o plano da Casa Branca para o Oriente Médio seria “grande plano”; e que, se os palestinos o rejeitarem, “Vão dar cabo de mais uma oportunidade, como já deram cabo de todas as oportunidades que alguém lhes tenha dado em toda sua existência”.
Jonatahan Cook é jornalista e escritor inglês residente em Israel. Publicado em inglês em Global Research.
Traduzido por Vila Mandinga.