Correio da Cidadania

As lições do Vietnã na vitória contra o coronavírus

0
0
0
s2sdefault

O mundo está em guerra contra um vírus que está provocando uma emergência sanitária e uma emergência econômica global. Todas as armas disponíveis estão enfileiradas para deter o avanço do coronavírus e para evitar baixas civis, assim como evitar vítimas entre os profissionais que estão entrincheirados na linha de frente de batalha contra a covid-19.

A luta é internacional. As fronteiras estão em atenção máxima. Todas as pessoas querem saber como vencer esta guerra e como reconquistar a liberdade de ir e vir. Toda a população confinada aguarda um sinal de esperança sobre o fim da pandemia.

“Você pode perder mil batalhas, mas somente perdendo o riso você terá conhecido a verdadeira derrota”
Ho Chi Minh, estadista vietnamita (1890-1969)

Neste clima de medo e ansiedade, um país tem merecido a atenção e a curiosidade planetária: o Vietnã. Essa nação experimentada em tantas guerras tem conseguido vencer o coronavírus. Um país do sudeste asiático que faz fronteira com a China – pequeno em extensão, mas com uma população de quase 100 milhões de habitantes – evitou que o inimigo se espalhasse pelo seu território e restringiu o contágio a apenas 271 pessoas. E o mais incrível: não houve até agora nenhuma morte pela covid-19.

Para entender como se deu esta conquista, vamos iniciar esta matéria com uma breve caracterização socioeconômica do país, apresentar os dados da covid-19 e divulgar uma entrevista realizada, no domingo 3/5. Depois de derrotar o país mais militarizado do mundo, o modesto Vietnã está vencendo agora a batalha contra um minúsculo vírus. Zero mortes numa população que é a metade da brasileira. Qual o segredo vietnamita para sair vitorioso nesta nova guerra contra um inimigo quase invisível?

Entrevistamos a professora peruana Lila Rodríguez, que mora há 13 anos na cidade de Ho Chi Minh, para ela nos contar.

 

O Vietnã está localizado no leste da península da Indochina e ao sul da China, com quem possui uma fronteira de 1.100 quilômetros. A história do país está documentada há mais de 2.500 anos e já registrou o domínio de sucessivas dinastias do império chinês. Obteve a independência em 938 quando foi estabelecida a dinastia Ngô. O período dinástico terminou no século 19, quando o país foi dominado e colonizado pela França, em 1858. Com o fim da Segunda Guerra Mundial, os franceses tentaram restabelecer o controle da região, mas foram derrotados na Batalha de Dien Bien Phu, na primeira guerra da Indochina e, em 1954, com a interferência norte-americana, o país foi dividido em dois: Vietnã do Norte e Vietnã do Sul.

Depois de cerca de 20 anos da guerra entre os EUA e o Vietnã – com centenas de milhares de mortos – os estadunidenses foram expulsos e a libertação e a unificação foram consolidadas, em 30 de abril de 1975, quando o país passou a ser a República Socialista do Vietnã. Mas os primeiros 10 anos foram de muitas dificuldades e muita pobreza (a renda per capita vietnamita era 11 vezes menor do que a brasileira em 1985). Mas em 1986, o Vietnã começou uma série de reformas – ao estilo de Deng Xiaoping – que colocaram o país no rumo do crescimento econômico acelerado. A renovação iniciada em 1986, conhecida como “Doi Moi”, fez do Vietnã um dos países emergentes mais bem sucedidos nas últimas três décadas.

O processo de industrialização voltado para a exportação competitiva, por exemplo, possibilitou criar emprego e renda e garantiu a melhoria das condições de vida da população. Em 1984, o Brasil exportou US$ 27 bilhões, contra apenas US$ 649 milhões do Vietnã (41,6 vezes mais). Entre 2016 e 2018 os dois países exportaram, aproximadamente, o mesmo valor, na faixa de US$ 200 e poucos bilhões. Contudo, em 2019, enquanto as exportações brasileiras caíram para US$ 230 bilhões, as exportações vietnamitas cresceram e atingiram US$ 262 bilhões. O último relatório do FMI (de abril de 2020) mostra que o Brasil, nestes tempos de covid-19, vai ter a maior recessão econômica da sua história, enquanto o Vietnã deve crescer pouco, mas vai manter a perspectiva de aumento da produção per capita. A renda per capita do Vietnã aumentou e está a um fator de 2 vezes para alcançar a renda per capita brasileira.

A população do Vietnã era de 28,3 milhões de habitantes em 1950 e passou para 97,4 milhões em 2020, segundo a Divisão de População da ONU. A densidade demográfica sempre foi alta, de 85 habitantes por quilômetro quadrado em 1950, passando para 280 hab/km2 em 2020. A taxa de fecundidade total (TFT) do Vietnã era de 6,2 filhos por mulher em 1950, mas caiu rapidamente nos últimos anos atingindo 1,8 filhos por mulher em 2020, abaixo do nível de reposição (2,1 filhos). A mortalidade infantil era de 103 mortes para cada mil nascimentos, em 1950-55, e caiu para 17 por mil em 2015-20. No mesmo período a esperança de vida ao nascer passou de 53,5 anos para 75,3.

Portanto, o Vietnã ainda é considerado um país em desenvolvimento e de renda média baixa, mas é um país que tem avançado no ranking do Índice de Desenvolvimento Humano (IDH), passando de 0,463 em 1980 para 0,700 em 2018. Atualmente cultiva boas relações com o Ocidente, inclusive sediou a Cúpula de Hanói entre o presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, e o líder da Coreia do Norte, Kim Jong-un, nos dias 27 e 28 de fevereiro de 2019.

Dados sobre a covid-19 no Vietnã

Esta breve comparação entre a caracterização socioeconômica e demográfica do país asiático com um país latino-americano serve para balizar a capacidade para enfrentar a pandemia da covid-19. O Vietnã, na média, é mais pobre do que o Brasil (embora socialmente menos desigual), mas com indicadores demográficos parecidos.

Quanto aos investimentos no sistema de saúde, quantitativamente o Brasil está melhor, pois gasta 11,8% do PIB com saúde, possui 2,1 médicos por 1 mil habitantes e 2,2 leitos hospitalares para cada 1 mil habitantes, enquanto o Vietnã gasta 5,7% do PIB com saúde, possui 0,82 médicos por 1 mil habitantes e possui 2,6 leitos por 1 mil habitantes, segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS). Mas o Vietnã prioriza a saúde primária e não a alta complexidade.

Todavia, quando se trata dos números da pandemia, o contraste é da água para o vinho, pois o Brasil tinha 105,2 mil pessoas infectadas e 7,3 mil mortes, no dia 4 de maio, enquanto o Vietnã tinha apenas 271 casos e nenhuma morte. O gráfico abaixo mostra que o Vietnã manteve 16 casos durante o mês de fevereiro, chegou a 268 casos no dia 15/04 e no último mês teve apenas três casos adicionais. No dia 5 de maio, as estatísticas do Worldometers indicavam 232 pessoas recuperadas, 39 casos ativos e apenas 8 pessoas em situação crítica necessitando de tratamento hospitalar intensivo.

O Vietnã tem saído vitorioso na luta para conter o avanço do coronavírus. Há somente 3 pessoas infectadas para cada 1 milhão de habitantes, enquanto no Brasil o coeficiente de incidência está em 495 casos por milhão e nos EUA está em 3,65 mil casos por milhão. O Brasil aplicou pouco mais de 3 testes por pessoa infectada, enquanto o Vietnã aplicou quase mil testes para cada pessoa infectada. Nos últimos 20 dias aconteceram apenas 3 casos confirmados.

Um país visto por dentro

Como o Vietnã conseguiu tal feito? Para entender melhor o que acontece no país asiático, fizemos uma entrevista com uma testemunha ocular do esforço feito pelo povo vietnamita para afastar o perigo do coronavírus e minimizar os danos da pandemia. A professora Lila Rodríguez nasceu na Costa Rica, mas tem nacionalidade peruana, na juventude morou 10 anos no Brasil, estudou na Inglaterra, morou na Coreia do Sul e na província de Hubei na China. Há 13 anos mora na cidade de Ho Chi Minh, no Vietnã. É casada e tem duas filhas nascidas no Vietnã.

Quando o Vietnã se deu conta da gravidade da epidemia e quais as primeiras medidas adotadas?

Lila Rodríguez – Na última semana de janeiro todo o país estava parado para as comemorações do Ano Novo lunar (equivalente à última semana de dezembro nos países cristãos). As primeiras notícias da epidemia na China chegaram em meio às festividades. O Vietnã já teve experiências duras quando teve de lidar com a Síndrome Respiratória Aguda Grave – SARS, em 2002, e a Síndrome respiratória do Oriente Médio – MERS, em 2012, que são doenças advindas de outros tipos de coronavírus.

Desta forma, o governo fechou imediatamente a fronteira com a China e não hesitou em alertar todo o país para a gravidade do que estava por vir. A primeira medida foi interromper as atividades nas escolas e universidades (que já estavam de recesso na última semana de janeiro), além de impor um rígido controle sobre os portos e aeroportos, monitorando todas as pessoas que vinham de áreas expostas à epidemia.

Na medida em que ia ficando clara a gravidade da situação, o governo reforçou as medidas de quarentena, fechando o comércio, fábricas e todas as atividades não essenciais. Rapidamente, o país adotou o lockdown (fechamento total) e realizou um rastreamento completo de todas as pessoas que entraram em contato com o vírus.

Como funciona este rastreamento?

Lila Rodríguez – As pessoas suspeitas de contágio são classificadas como F(0) e são imediatamente submetidas ao exame da covid-19. Ao mesmo tempo, preenchem um questionário relatando todos os lugares que frequentaram e é feito um levantamento de todas as pessoas que poderiam ter sido expostas à doença, em diferentes graus. Cada pessoa é classificada como F(1), F(2), F(3), F(4) e F(5), de acordo com a chance de ter sido contaminada. O sistema de saúde do país providencia testes para todos os F(0)s e F(1)s e promove o monitoramento de todos os indivíduos, inclusive divulgando o local onde moram todos os “F(0)s e F(1)s”, mas sem identificar o nome das pessoas. Desta forma, toda a população do país sabe onde existe um indivíduo com algum risco de contágio. O acompanhamento é sistemático e efetivo.

Para as pessoas com testes positivos e com fortes suspeitas – F(0)s e F(1)s – existem os centros de quarentena (geralmente fora das grandes cidades) onde são oferecidos tratamentos. A preocupação do governo foi sempre evitar a explosão de pessoas infectadas, pois o sistema de saúde não comportaria uma demanda excessiva e uma concentração de tratamentos ao mesmo tempo. O número de médicos por habitante no Vietnã é baixo e a melhor maneira para evitar o caos na saúde é a prevenção. Houve um esforço coletivo para evitar a propagação do vírus.

Como a população se comportou diante das duras medidas preconizadas pelo governo?

Lila Rodríguez – Em primeiro lugar, o povo segue rigidamente as diretrizes governamentais. Quase ninguém se arrisca a contrariar as ordens e as orientações do Poder Público. E o governo não brinca em serviço. As poucas pessoas que ousaram contrariar a quarentena e divulgar “fake news” a favor da flexibilização do lockdown, ou criando pânico e disseminado número de casos falsos, foram logo identificadas e obrigadas a se retratar. Os dissidentes das orientações governamentais são expostos publicamente e sofrem a rejeição da sociedade, que na grande maioria apoia as medidas de isolamento social, pois já viveram experiências traumáticas no passado.

Em segundo lugar, existe uma cultura coletivista no país e uma ética confucionista que valoriza as relações familiares, as relações sociais e o respeito à hierarquia. No Vietnã, e, em geral, nos países do leste asiático, o indivíduo não é o centro do mundo. Os adultos, culturalmente, manifestam um grande respeito pelas crianças e pelos idosos.

O uso de máscaras não trouxe qualquer problema. Nas grandes cidades do Vietnã, como Ho Chi Minh, o transporte público é muito deficiente (não tem metrô) e as pessoas andam de moto. Como a poluição é muito intensa, as máscaras já fazem parte do dia-a-dia dos transeuntes. Todos os cidadãos sabem que precisam usar as máscaras para se proteger e, também, proteger os outros de qualquer possibilidade de espraiar uma doença virulenta.

Tudo isto, em conjunto, possibilitou que o sistema de saúde não ficasse sobrecarregado. Assim, as poucas pessoas com complicações de saúde puderam ser bem atendidas na rede hospitalar e, por conseguinte, o Vietnã pode evitar a ocorrência de óbitos pela covid-19.

Com tão poucos casos, quando o Vietnã está programando o fim da quarentena?

Lila Rodríguez – Alguns setores de atividade já começaram a retomar a produção na semana passada, mas foi na primeira semana de maio que as escolas voltaram a funcionar (primeiro as universidades, depois o ensino médio, o fundamental etc.) e também partes do comércio e da indústria. A retomada das atividades em geral vai ocorrer de forma gradual para evitar qualquer possibilidade de propagação de um novo surto. O país está se preparando para fazer um monitoramento constante.

Como foi para você e sua família a convivência nestes cerca de 3 meses de quarentena?

Lila Rodríguez – Foi difícil. Teve um período em que o playground do prédio estava fechado e a única alternativa era a internet e as meninas cansavam de ficar dentro de casa e de se cadastrar nos diversos sites. Mas agora a área comum do prédio já está liberada e a vida começa a voltar à rotina. Se bem que vai ser uma rotina diferente daqui para a frente.

Leia também: A pandemia de Covid-19 vai acelerar a passagem do centro do mundo para a Ásia

José Eustáquio Diniz Alves, sociólogo, mestre em economia e doutor em Demografia pelo Centro de Desenvolvimento e Planejamento Regional (CEDEPLAR) da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). É colunista do Portal Colabora, onde este artigo foi originalmente publicado.

0
0
0
s2sdefault