Correio da Cidadania


O mundo de abaixo cresce em silêncio

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Legenda/créditos da foto: 20o Aniversário do Congresso Nacional Indígena - Zapatistas. Oventik. Outubro 2016 (Foto: Daniel Lazo Cerón)

Há vida (e luta) para além das eleições. Em nossos países (Argentina, Uruguai), dos holofotes da mídia até as conversas entre os ativistas dos movimentos sociais, todos estão focados e concentrados nas próximas eleições, com a esperança de que, desta vez, haja mudanças. Embora saibamos que estas mudanças não vêm de cima e que as mudanças reais são aquelas que construímos desde baixo e por baixo, de vez em quando nos deixamos arrastar pelos fogos de artifício das eleições. Voltamos a diluir o nosso poder de fazer por baixo, delegando poder para cima...

No entanto, os povos da América Latina continuam a construir seus outros mundos, muito lentamente, contra a maré, na escuridão da vida cotidiana, longe, bem longe das campanhas que desperdiçam recursos e discursos.

Quem poderia saber que este ano foi criada a Guarda Comunitária Indígena "Whasek" Wichi no Impenetrable, no Chaco, Argentina? Quem sabia da criação do Governo Territorial Autônomo da Nação Wampis, no norte do Peru, caminho que outros três povos amazônicos estão começando a percorrer?

Quantos meios de comunicação social noticiaram que o povo mapuche do sul do Chile recuperou 500 mil hectares pela via da ação direta desde os anos 90, quando a democracia foi restaurada para encurralá-los com a aplicação da lei antiterrorista herdada da ditadura de Pinochet e aplicada igualmente pelos governos progressistas e conservadores?

Onde podemos ler sobre a tremenda luta do povo Tupinambá do sul da Bahia, Brasil, que em poucos anos recuperou 22 fazendas, milhares de hectares, apesar da repressão e tortura de seus líderes?

Quando dedicaremos algum tempo para comentar a vitória das 30 comunidades de Molleturo (Azuay, Equador) que conseguiram deter a mineradora chinesa Ecuagoldmining, depois de incendiar sua sede? Quem fala da recente vitória dos camponeses de todo o Vale do Tambo, sobre a mineração de cobre em Tía María, no sul do Peru?

Agora vemos como os povos maias do sul do México, organizados no Exército Zapatista de Libertação Nacional (EZLN), entraram na ofensiva e quebraram o cerco militar e informativo do governo mexicano à autoproclamada "Quarta Transformação", criando sete novos caracoles e quatro municípios autônomos, elevando o total para 43 espaços de autogoverno zapatista naquela região.

O governo de Andrés Manuel López Obrador (AMLO) saudou e concedeu "sua aprovação" aos novos municípios zapatistas autônomos. Não sabemos o que os zapatistas responderão, mas podemos ver que em todos estes anos eles têm de fato construído sua autonomia nos territórios insurgentes onde estão localizados sem a necessidade de qualquer aprovação governamental.

Os Acordos de San Andrés assinados em 1996, que reconheceram a autonomia dos povos indígenas em todo o México, foram negados e traídos por cada governo sucessivo; isso não impediu o crescimento da autonomia no território zapatista e em dezenas de municípios autônomos de outros povos indígenas do país. Mais do que aprovar ou não, em palavras, estes processos de autonomia, o governo de AMLO poderia muito bem pôr em prática os Acordos de San Andrés e deixar que a autonomia indígena continue a florescer em vez de continuar e fortalecer o cerco policial e militar às comunidades em rebelião, como as próprias comunidades indígenas de Chiapas, tanto zapatistas como não-Zapatistas, têm vindo denunciar.

Para nós, estes fatos são motivo da maior alegria e enchem-nos de entusiasmo e esperança, pois confirmam a decisão política de construir com os de baixo, de forma autônoma, nossa saúde e educação, nossos espaços de vida e nossa justiça, com base em nossos próprios poderes que criamos por fora do Estado.

Conseguiram romper o cerco que dezenas de milhares de soldados têm mantido desde a revolta de 1 de janeiro de 1994, quando o governo decidiu mobilizar metade das suas tropas para circundar e cercar as comunidades rebeldes autônomas zapatistas. Como é que os zapatistas conseguiram multiplicar-se, sair do cerco e construir mais mundos novos?

Como os de baixo sempre fazem: "Companheiras de todas as idades se mobilizaram para falar com outras irmãs com ou sem organização", explica o Subcomandante Insurgente Moisés em seu último comunicado. As mulheres e os jovens são os que foram conversar com seus pares de outras comunidades, não para convencê-los, porque as e os oprimidos sabem o que são, mas para se organizarem juntos; para se governarem juntos.

Nessa mobilização silenciosa entre os de baixo, eles viram que as esmolas dos governos (o que nós aqui pomposamente chamamos de "políticas sociais" e que nada mais são do que contrainsurgência) ferem a dignidade por causa do desprezo e do racismo que implicam. Novos mundos nascem por contágio e necessidade, sem seguir as instruções dos manuais do partido, nem as receitas pré-determinadas de antigos ou novos líderes.

Como perdemos a "mais bela capacidade do revolucionário", a de sentir "no fundo, qualquer injustiça feita a qualquer pessoa, em qualquer parte do mundo", como dizia Che? Por que não devemos ser mais felizes quando, em qualquer parte do mundo, os de baixo colocam sua dignidade como um escudo diante dos poderosos, levantando outros mundos, como os curdos no norte da Síria?

Nós, militantes, precisamos reformar nossos sentidos e sentimentos de vida, reencontrar-nos com nossos próprios fogos e retomar a luta além dos fogos de artifício das eleições, confiar novamente em nossa própria potência e autogovernar-nos longe do Estado, desalienar-nos e descolonizar-nos para caminhar juntos, não na frente, mas marcando linhas, ombro a ombro com as rebeliões que seguem (re)emergindo de baixo e por baixo em toda a Nossa América.


Raul Zibechi é cientista político uruguaio e atua há mais de 20 anos junto aos movimentos populares e sociais autônomos de todo o continente.
Publicado no El Salto Diario.
Tradução de Alexandre Wellington dos Santos Silva, para a Revista Terra Sem Amos.

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