“Sem mudanças de classe, raça e gênero, política dos EUA continuará uma ‘Guerra de Secessão’”
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- Gabriel Brito, da Redação
- 06/04/2021
Imagem: Reprodução TV Cultura / Programa Complicações
Perto de completar três meses, o mandato do novo presidente dos Estados Unidos da América, Joe Biden, pouco disse a que veio. Mesmo porque a gestão desastrosa de Donald Trump da pandemia do novo coronavírus paralisa qualquer início de mudança de rumos. No entanto, os desafios históricos estão postos. É sobre isso, além do impacto dos últimos dias do republicano na Casa Branca, que o Correio da Cidadania conversou com a professora de Relações Internacionais da Unifesp e estudiosa da megapotência Cristina Pecequilo, autora de diversos livros sobre o país.
“O Partido Republicano se encontra rachado em três linhas: os que claramente têm a coragem de se opor a Trump, e desejam recuperar um partido de perfil conservador, mas moderado, sem radicalismos ou comportamentos violentos; uma linha em cima do muro que não deseja contrariar Trump com medo de perder votos, mas não o apoia, tenta usar o seu prestígio para propósitos próprios; e, por fim, uma linha pró-Trump, que prega a mesma agenda. Assim, trata-se de uma encruzilhada que pode mudar o perfil do partido em direção ao radicalismo e maior polarização”.
Marcada nos últimos tempos por protestos de forte recorte racial, o país tenta avançar em reformas da sua polícia, após os massivos protestos do Black Lives Matter. Mas a polarização que divide a sociedade está muito longe de ser exclusivamente racial e coloca em xeque toda uma lógica reprodutora de desigualdades.
“A política oficial, para refletir a sociedade atual nos EUA, precisa refletir suas mudanças em torno de classe, raça e gênero, uma sociedade multicultural, diversa, e com desigualdades. Sem isso, a própria projeção de poder internacional fica prejudicada”, resumiu.
A entrevista com Cristina Pecequilo pode ser lida na íntegra a seguir.
Correio da Cidadania: Como enxerga a absolvição de Trump no Senado, acusado de orquestrar a invasão do Capitólio em 6 de janeiro, e sua posterior afirmação de que “continuará a defender a grandeza dos Estados Unidos”?
Cristina Pecequilo: A absolvição de Trump era esperada, à medida que muitos senadores do Partido Republicano deixaram claro que não iriam apoiar o processo. Apenas 7 senadores republicanos de 50 votaram pelo impeachment. Muitos votaram por apoiarem a agenda Trump ainda, pensando em suas próprias pretensões eleitorais, enquanto outros preferiram não se comprometer ainda que desaprovassem Trump. A posterior afirmação apenas reforça a manutenção da agenda radical de Trump e a busca de tentar ampliar seu poder dentro do partido.
Correio da Cidadania: Como situa o episódio da invasão do Capitólio na história do país?
Cristina Pecequilo: A invasão do Capitólio foi o mais grave na história da república norte-americana, pois colocou em xeque as instituições e o processo político como um todo. É uma tragédia anunciada diante de um regime democrático cada vez mais desigual e polarizado, e que ainda é baseado em uma eleição indireta pensada para uma realidade do século 18.
Correio da Cidadania: O que fica do Partido Republicano? O partido se encontra em um dilema histórico?
Cristina Pecequilo: O Partido Republicano se encontra rachado em três linhas: os que claramente têm a coragem de se opor a Trump, e desejam recuperar um partido de perfil conservador, mas moderado, sem radicalismos ou comportamentos violentos; uma linha em cima do muro que não deseja contrariar Trump com medo de perder votos, mas não o apoia, tenta usar o seu prestígio para propósitos próprios; e, por fim, uma linha pró-Trump, que prega a mesma agenda.
Assim, trata-se de uma encruzilhada que pode mudar o perfil do partido em direção ao radicalismo e maior polarização. De fato, um dilema histórico.
Correio da Cidadania: Como avalia em linhas gerais os quatro anos de mandato de Donald Trump e sua relação com as grandes questões que tocam a vida cotidiana da população norte-americana?
Cristina Pecequilo: Sem a pandemia o governo Trump tinha diante de si um cenário favorável, a economia estava caminhando bem e havia uma impressão de prosperidade, que atingia a classe média, decisiva para o cenário eleitoral do país. Assim, problemas estruturais, sociais principalmente, acabavam ficando em segundo plano, tais como racismo, desrespeito aos direitos humanos, ausência de políticas públicas e atenção ao meio ambiente. Na política externa também não havia grandes problemas.
Porém, a pandemia deixou claras as fragmentações e polarizações sociais, aprofundou a desigualdade econômica e aumentou os níveis de desemprego. Mais ainda, deixou clara a inabilidade de Trump em governar cenários de crise. Por isso, o custo eleitoral. Mas esse custo eleitoral não foi tão grande quanto se esperava, basta observar a quantidade de votos populares recebida por Trump. O país estava dividido e assim continua.
Correio da Cidadania: É possível esperar que a presidência de Joe Biden e a maioria democrata nas duas casas produzam mudanças – ou coloquem novos horizontes - de peso na sociedade estadunidense em relação a suas principais contradições sociais? Quais seriam seus principais desafios?
Cristina Pecequilo: Dificilmente podemos esperar grandes mudanças. No Senado, mudanças mais significativas demandam mais de 60 dos 100 votos. Cada partido possui 50 cadeiras (na verdade, os democratas têm 48 e há 2 independentes que votam com os democratas). Assim, é uma maioria, mas dependendo da questão não é possível mudar legislações sem depender dos republicanos.
Na Câmara a maioria existe, mas diminuiu, e o próprio Partido Democrata se encontra rachado entre moderados e radicais. O desafio é votar em frente única. Os desafios maiores são a falta de moderação dos dois lados, e entre os partidos, as questões sociais e econômicas.
Correio da Cidadania: A sociedade norte-americana vive transições e mudanças de paradigmas mais velozes do que aquilo que se vê refletido na política oficial?
Cristina Pecequilo: A política oficial, para refletir a sociedade atual nos EUA, precisa refletir suas mudanças em torno de classe, raça e gênero, uma sociedade multicultural, diversa, e com desigualdades. Enquanto isso não ocorrer o país continuará vivendo uma “Guerra de Secessão”.
Correio da Cidadania: Como enxerga os EUA globalmente na década que se inicia?
Cristina Pecequilo: Uma nação com supremacia militar clara, mas com claros problemas internos que precisam ser abordados em termos sociais, econômicos e políticos. Sem isso, a própria projeção de poder internacional fica prejudicada.
Gabriel Brito é jornalista e editor do Correio da Cidadania.