A China venceu?
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- Mario Maestri
- 18/02/2022
Foto: David Yu / Reprodução A Terra é Redonda
Kishore Mahbubani dá uma resposta positiva à pergunta que apresenta no título de seu livro, A China venceu? O desafio chinês à supremacia americana. Escrito, em 2019, publicado, em inglês, no ano seguinte, sob a administração Donald Trump, ele foi apresentado, em português, apenas em 2021, já sob o governo democrata de Joe Biden. Os sucessos dos últimos dois anos, alguns prognósticos desconfessados pelos acontecimentos e a apressada resposta do autor à pergunta que faz não retiram o valor de sua interpretação sobre o confronto EUA-China. Kishore Mahbubani, 74 anos incompletos, singapurense de ascendência indiana, analisa os sucessos em questão desde uma posição privilegiada: foi por longos anos embaixador de seu país na ONU, reitor, professor universitário e é ensaísta e conferencista conceituado.
A China venceu?, com 269 páginas de texto e o apêndice “O mito da excepcionalidade americana”, de Stephen M. Walt, é livro de fácil e agradável leitura, sem simplificações de conteúdo, talvez destinado sobretudo ao público leitor estadunidense. Sua leitura valoriza-se pelo olhar oriental sobre o candente confronto, sem animosidades para com os Estados Unidos, ainda que o trabalho denote uma clara simpatia para com a China. Mesmo ao realizar avaliações não raro arrasadoras, o autor demora-se aconselhando as necessárias reorientações de rumo, para que os EUA superem o impasse e a decadência tendencial em que se encontram.
Tudo se resolve com uma boa discussão
Kishore Mahbubani interiorizou seus mais de trinta anos como diplomata de carreira, representante da cidade-estado de Singapura, rico e importante paraíso fiscal internacional, no estratégico estreito homônimo. Entende os confrontos mundiais como solucionáveis através de negociações, empreendidas racionalmente por seus dirigentes. Não encontra escolho intransponível para um acerto, convivência e acomodação pacíficos, ainda que tensos, entre as duas grandes nações em confronto, enquanto os Estados Unidos deslizam para a inevitável segunda posição que propõe que assumirá em alguns anos. Vê o fim do segundo “Século Americano” como inscrito nos astros.
Para K. Mahbubani, inexiste a incontornável luta à morte entre as grandes nações imperialistas pela supremacia, que caracterizou o século XIX, o século XX e se projeta na atual centúria. Propõe, simplesmente, que a “guerra” entre os EUA e a China seja “impensável”, já que levaria à destruição das duas nações. Ou seja, seria antirracional. Não percebe as múltiplas nuanças que esse choque pode assumir, sob a forma de confrontos indiretos, como ocorreu na Coreia, Vietnã, Afeganistão, entre a URSS e os EUA, e que agora pode eclodir na Ucrânia, ou em Taiwan, no Mar da China Meridional, sobretudo. Conflitos que podem sempre espraiar-se assumindo dimensões difíceis de prever.
A China vencerá, certamente, como acredita o autor, se os EUA e suas nações imperialistas súcubas não a derrotarem, na briga de foice e facão, na qual se engalfinharam, com destaque para os últimos cinco anos. E, tão forte é a tendência ao confronto, que a sua previsão de que a Rússia se aproximaria dos EUA e da Europa, encontra-a totalmente desmentida. Apenas três anos após a redação do trabalho, aquele país é cada vez mais solidário com a China, unidos um e outro contra seu inimigo comum já irredutível.
Farinha do mesmo saco
A interpretação do ex-diplomata nasce da compreensão, dos EUA e da China, como nações sem quaisquer contradições essenciais, já que ambas participam com destaque da divisão internacional da produção capitalista. Não haveria uma oposição visceral, como a dos tempos do antagonismo essencial entre os EUA, capitalista, e a URSS, socialista. Para K. Mahbubani, são as decisões racionais, tomadas pelas elites dirigentes, que avançam as nações. Portanto, para pôr fim às atuais desavenças, bastaria que dirigentes chineses e estadunidenses superassem preconceitos culturais e incompreensões, contribuindo assim para o bem de suas nações, populações e para a felicidade geral dos povos. Para ele, as massas populares não fazem avançar a história e, praticamente, não fazem parte dela.
Portanto, seria imprescindível compreender as origens das incompreensões entre a China e os Estados Unidos para propor as soluções pertinentes. K. Mahbubani lembra que a China, temida quando comunista e revolucionária, passou a ser bem recebida pelas nações (capitalistas) da região e do mundo, após a visita de Nixon, em 1972, promovida por Mao Tsé-Tung, e a conversão oficial ao capitalismo, em 1978, avançada por Deng Xiaoping. Metamorfose apadrinhada pelos EUA, que superavam então o antigo “Império do Meio”, de longe, em todos os domínios — diplomático, financeiro, econômico, militar, social, tecnológico, etc. Ele aponta e detalha “O maior erro estratégico da China” (capítulo 2) e os dos “USA” (capitulo 3) que levaram à quebra de pratos de um casal que vivera um romance feliz.
Os grandes erros da China seriam fundamentalmente dois: o afastamento chinês dos empresários estadunidenses com investimentos na China, sobretudo devido às exigências de transferência de tecnologia, que o autor reconhece como um direito de toda nação que abre suas fronteiras a empresas estrangeiras. E a arrogância dos dirigentes e empresários chineses, após a crise de 2008-9, nascida da fragilidade dos EUA naquela conjuntura. A solução proposta é simples: abrir mais o país aos investimentos ocidentais e fazer concessões aos empresários, sobretudo estadunidenses, estabelecidos na China. Ou seja, a China deve deixar de ser tão gulosa!
Pouco osso para muito cachorro grande
K. Mahbubani identifica as reclamações contra a China, não apenas de empresários estadunidenses, e a época em que surgiram. Não percebe entretanto as razões profundas da modificação de ânimo de empresários, administradores e dirigentes políticos chineses. Não acompanha a transição chinesa, de nação exportadora de produtos de baixo valor agregado e mercado consumidor de bens tecnológicos globalizados, à produtora e exportadora de produtos e serviços de alto valor agregado e, o que era novo, de capitais. Uma inevitável mudança de humor, quando a China e seus interesses passaram, de campo de caça reservado do capital global e imperialista, a caçadora implacável nas reservas venatórias dos antigos senhores. Agora, havia dois grandes cães brigando no canil pelo osso suculento, ou seja, o mercado mundial.
A radiografia dos EUA é momento alto de A China venceu? O desafio chinês à supremacia americana. Sem papas na língua, o ex-embaixador aborda a decadência industrial do país, o retrocesso mais que decenal das condições de existência de suas classes trabalhadoras, médias e marginalizadas. Descreve uma nação que gasta mais que os impostos que recolhe, importa mais que exporta, vive da hegemonia mundial do dólar, moeda de refúgio e de trocas internacionais. E recorda que o reino do dólar pode acabar, ainda mais sob a ação arbitrária estadunidense. Refere-se à agressiva prepotência internacional ianque, impondo sanções e proibições extraterritoriais, a torto e a direito.
As recomendações que avançam para que os Estados Unidos retomem a estrada justa são ingênuas. Sobretudo, gastar menos em armas, diminuir as bases militares no exterior, não mais entrar em guerras que define como aleatórias e como motivos da decadência ianque. O que lhes permitiria gastar mais com tecnologia, com pesquisa, com educação, com infraestrutura, com os meios de vida dos segmentos empobrecidos. Assim, ao menos diminuiria a decadência que conhece em múltiplos e determinantes domínios, sobretudo em relação à China.
K. Mahbubani não compreende que o belicismo incessante é condição necessária à manutenção da própria hegemonia financeira, que sustenta fortemente uma nação que ele classifica em processo falimentar. Não vê que mesmo os gastos militares aleatórios e as guerras sem fim expressam as necessidades dos ciclos de acumulação e reprodução do grande capital em crise permanente, que determinam as ações políticas nacionais, em geral em um sentido anti nacional.
China maravilha
No Capítulo 4, o autor enceta elogio desbragado, merecido e não merecido, da economia capitalista chinesa. Estende-se sobre um proposto não imperialismo inato do povo chinês, formado sobretudo por camponeses — entretanto, os camponeses do Lácio foram a força expansiva da República e do Império romano. Encontra no passado milenar da China imperial a explicação do atual Estado-nação chinês, que descreve corretamente como construção do Partido Comunista Chinês, concluída em 1949, ao vencer a Guerra Civil. Oblitera as diferenças de qualidade entre o passado distante e o presente chinês, procedimento habitual em tantos outros autores. Qualquer coisa como explicar a Itália atual a partir do Império Romano.
K. Mahbubani embaralha-se ao tentar explicar o domínio chinês sobre o Tibet, Xinjiang e a fixação atual do Partido Comunista Chinês (PCC) na reconquista de Taiwan. Propõe que o pacifismo estaria no DNA chinês, ao contrário do estadunidense, totalmente belicista. A primeira afirmação é discutível, já que a nação chinesa moderna se construiu através da luta contra os “senhores da guerra”, os japoneses e a burguesia chinesa apoiada pelo imperialismo EUA. Vitórias comandadas pelo PCC, que, logo após chegar ao poder, se lançou na cruenta guerra da Coreia. A segunda afirmação é totalmente certeira, pois os EUA nasceram e se desenvolveram guerreando, invadindo, destruindo tudo que lhe estava perto e longe.
No Capítulo 5, K. Mahbubani aborda a necessidade dos EUA corrigirem o rumo, mitigando assim sua decadência inexorável. Entretanto, apesar de não o verbalizar, acredita que muito dificilmente a grande nação conseguirá reinventar-se. Vê grandes qualidades dos EUA: sua sociedade e economia abertas e livres; a capacidade de acolher e empregar os melhores cérebros do mundo; as magníficas e imbatíveis universidades estadunidenses; seus poderosos e livres meios de comunicação. Especifica que a China não dispõe de muitos desses poderosos instrumentos de progresso.
Assinala que os EUA têm, de longe, a “maior indústria de pensamento estratégico do mundo”. Que, em sua avaliação, paradoxalmente, de pouco lhes têm servido. Lamenta-se que, sobre a China – e também a Rússia, o Irã, Cuba e a Coreia do Norte, diríamos –, esse “pensamento coletivo” apenas reproduz e potencializa, sem dissidência alguma, as visões maniqueístas próprias aos EUA sobre aquelas nações, sociedades, culturas, etc. Elas são apresentadas unanimemente como reinos do mal, a serem combatidos, para retornarem ao domínio da verdade e da salvação estadunidense, mesmo que para tal necessitem ser destruídos totalmente, como no caso paradigmático da Líbia. Na infinidade de centros de análise, think tanks, etc., sequer um levantaria uma palavra audível propondo a aplicação produtiva dos imensos fundos públicos investidos em armas, navios, bases militares espalhadas no mundo e em guerras que arruinam a nação. Recursos militares que define como terrivelmente mal-empregados, já que sujeitos às mais variadas pressões da indústria armamentista. Da mesma cegueira seletiva sofreria a grande imprensa estadunidense, que define como livre e magnífica.
Subindo pelo elevador, descendo pela escada
Nos Capítulos 6 e 7, aborda a questão da proposta falta de democracia do tipo ocidental na China, o grande aríete ideológico da ofensiva dos EUA e de seus associados contra o, no passado, “Império Celestial”. Empreende interessante comparação entre os regimes políticos chinês e estadunidense, sempre desde um ponto de vista de um intelectual pró-capitalista inarredável, ex-funcionário de destaque de Singapura, cidade-Estado literalmente construída pelas finanças mundiais e regida por instituições democráticas, no sabor autoritário.
Para K. Mahbubani, “cada um com seu cada qual”. A população chinesa desde sempre teria amado a ordem e abominado a desordem, privilegiando a comunidade e não o individualismo. E o Partido Comunista Chinês, nos últimos decênios, lhe teria dado tudo isso e sobretudo progressão ascendente, com um custo social ao qual não se refere. Hoje, a China teria a maior classe média do mundo e seria a verdadeira “terra da oportunidade”, ao contrário dos EUA, onde, cada vez mais, rico ou pobre se nasce e se morre.
A ordem política chinesa seria dinâmica e não sofreria de esclerose. A população estadunidense desconheceria que o regime atual e os governantes chineses gozam de amplo apoio popular. O autor lembra que, apoiado no confucionismo, forjou-se no passado a ideia do direito divino dos imperadores ao governo, até “perderem o mandato do céu”, ao não satisfazerem as expectativas dos súditos. E, com razão, assinala que, se o PCC não garantir o avanço social médio da imensa população chinesa, perderá seu “mandato” e seu reino será inevitavelmente questionado. O que aconteceu, é bom lembrar, na URSS.
É valiosa a leitura apresentada do PCC e de sua metamorfose, realizada sempre nos limites da visão de mundo do autor, onde a luta social inexiste. Define corretamente o PCC como um partido capitalista nacionalista, para ele construído através da transformação silenciosa da “burocracia comunista ossificada numa máquina capitalista altamente adaptativa”. Atualmente, recrutaria “apenas os melhores graduados do país” (186-188) Ignora a dura luta de classes que se seguiu a conquista do poder em 1949 na China. E sequer se refere às fantasmagorias sobre um Partido mantendo sob sete chaves a virgindade comunista, por cem anos, enquanto empurra no dia a dia, ano após ano, o contubérnio sem fim do capitalismo chinês.
Não se salva quem não quer ser salvo
Mahbubani apresenta o ordenamento político-social estadunidense como apodrecido nas entranhas, sugerindo incapacidade de regenerar-se. Ao contrário da China, que avançou como locomotiva nas últimas décadas, fazendo progredir as condições médias de vida da população, os EUA viram os ultra-ricos enriquecerem-se e as classes médias, operárias, marginalizadas despencarem. Estudo do Federal Reserve estimou que 40% dos estadunidenses se atrapalhariam diante de um gasto emergencial de apenas 400 dólares!
Explica esse empobrecimento geral como produto de fenômeno superestrutural de viés cultural, e surgido de determinações econômicas profundas. Ele seria devido ao assalto e controle da política ianque pelo grande capital, transformando o regime político estadunidense em uma “plutocracia” consolidada – governo do país pelos endinheirados. E, em uma brilhante exposição, registra que a população que sente degradar-se suas condições de vida, segue confiando cegamente no governo dos milionários. Isso porque os compreende como produto de sociedade aberta e livre que premia com o sucesso econômico o esforço individual, enriquecimento que estaria ao alcance de suas mãos. O que, para o autor, é, há décadas, uma simples mitologia sem suporte na realidade objetiva.
Define como maior escora da cultura estadunidense a “presunção de virtude” da população estadunidense, que considera os EUA como um “império da liberdade”, uma “cidade reluzente sobre a colina”, a “última esperança da Terra”, o “líder do mundo livre”, a “nação indispensável”. E, por isso, um povo e um país condenados eternamente à vitória e ao sucesso, mesmo quando tudo indique que deslizam encosta abaixo. Concepções nascidas, para o ex-embaixador, da perda de conteúdo das instituições e das tradições estabelecidas pelos “Pais Fundadores dos Estados Unidos”, que esquece que eram, em grande maioria, ricos e duros escravistas.
A visão da excelência intrínseca de uma civilização e de seus cidadãos e do dever dos mesmos de civilizar os bárbaros, mesmo com os argumentos da violência, é fenômeno superestrutural próprio a todas as sociedades dominantes e imperialistas, não apenas aos Estados Unidos. Foi assim na Grécia, em Roma Imperial, na Espanha e na Portugal das descobertas; na Inglaterra, na França e no Japão imperialistas dos tempos contemporâneos, e por aí vai.
Democracia envenenada
Mahbubani deixa claro que a campanha de conversão democrática das instituições chinesas, pelos missionários estadunidenses – e seus associados menores –, constitui apenas parte da estratégia para a desorganização e domínio da grande nação oriental. Uma realidade – para ele – compreendida largamente pelos dirigentes e intelectuais chineses que, ao contrário, não possuem qualquer intenção de converter o mundo, interessados, agora, apenas em engoli-lo economicamente, diríamos.
Na conclusão de seu informativo trabalho, K. Mahbubani retorna a proposta que o conflito EUA-China é “inevitável e evitável”. Para ele, estrategistas, políticos, administradores, intelectuais estadunidenses clarividentes devem corrigir a agressividade bélica ianque e organizar, em forma mais indolor possível, a chegada do momento em que seu “país poderoso se torne o número dois no mundo”. Ou seja, augura que o ex-senhor ceda comportadamente o melhor lugar na mesa, os negócios mais lucrativos, que a águia soberba entregue literalmente a parte do leão na refeição já escassa ao Dragão esfomeado.
Ninguém cede o lugar sem luta. Os grandes capitais em confronto servem-se de todas as armas que possuem para manter ou alcançar a supremacia perseguida. O imperialismo alemão e o japonês enfrentaram confronto geral que não podiam vencer, lançando suas nações e o mundo no terror da Segunda Guerra Mundial, tentando romper o domínio mundial das nações e capitais hegemônicos. Para além das utopias pacifistas, apenas a extinção do capital e reorganização social e racional da sociedade pelo mundo do trabalho garantirão a sorte da humanidade, hoje mais e mais ameaçada.
Mário Maestri é historiador. Autor, entre outros livros, de O despertar do dragão: nascimento e consolidação do imperialismo chinês. 1949-2021.