“Guerra Fria” a fórceps
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- Daniel Feldmann
- 15/03/2022
Imagem: Machine Gunners Advacing, 1924 – Otto Dix. (modificada) / Reprodução Zero À Esquerda
Houve um tempo no pós-Segunda Guerra em que alguns setores da esquerda criticavam, com razão, o fato de que por trás das juras mútuas de ódio e destruição entre EUA e URSS, havia uma espécie de acordo tácito entre as duas potências em suas pretensões expansionistas. Em muitos casos, o horizonte da catástrofe projetado sobre o inimigo foi extremamente funcional para que ambos ganhassem ou impusessem apoios externos e, não menos importante, para criar um clima de “união nacional” contra o inimigo mortal externo de forma a elidir as contradições internas de ambos os países. Isso não quer dizer, evidentemente, que o conflito não fosse real — podendo levar o mundo à destruição nuclear tal como agora — nem que EUA e URSS fossem a mesma coisa e nem que eles não impusessem limites uns aos outros. Mas, inclusive por isso, a liderança militar inconteste de cada um no mundo num quadro de bipolaridade era um ativo muito precioso para que, diante do resto do mundo, sua força econômica, política, militar e inclusive ideológica fosse sobremaneira aumentada.
O dito acima serve como mote (e apenas um mote, pois hoje o mundo é obviamente diferente em várias dimensões) para se pensar os eventos desses últimos dias. É certo que tais eventos consolidaram uma nova “Guerra Fria” a partir das ações dos mesmos protagonistas da antiga. De um lado, o que nos trouxe até aqui tem a ver com uma série de eventos e conjunturas que vem se desdobrando há muito tempo e que não são controláveis (ao menos não totalmente) pelos atores em conflito neste início de 2022: queda do prestígio e da força econômica dos EUA, ascensão econômica da China, reafirmação geopolítica e militar da Rússia, e como pano fundo de tudo isso, uma também já antiga crise permanente do capital cujas consequências estão longe de ser apenas “econômicas”.
Depois dos anos 1990 em que os Estados Unidos lideravam incólumes o Sistema-Mundo (atraindo ou no mínimo neutralizando a Rússia e estimulando a abertura capitalista da China), criou-se uma situação de relativa indefinição na geopolítica e no quadro de alianças do Sistema-Mundo capitalista. Se até recentemente a velha ordem da liderança absoluta dos EUA já estava morta, mas uma nova ordem não brotava, ao que tudo indica agora algo novo terá que se firmar. Claro que as fidelidades e afinidades já estavam postas antes: EUA-Europa de um lado e China-Rússia do outro. Todavia, agora uma decisão está sendo tomada. Não se pode mais hesitar ou buscar soluções de compromisso. Destarte, os alinhamentos agora assumirão a típica lógica de amigo x inimigo de Carl Schmitt, cristalizando-se sem ambiguidades. E se, como dissemos, tal decisão já era uma possibilidade aberta a partir de dinâmicas conjunturais e estruturais, EUA e Rússia jogaram deliberadamente nos últimos meses um jogo de cena que permitiu a ambos, a fórceps, consolidar a nova “Guerra Fria” sob seu protagonismo, ao menos no plano militar.
E onde entra o papel de certo “anti-imperialismo” de parcelas da esquerda, que vai desde dos que se negam a condenar nos fatos a invasão russa da Ucrânia até aqueles que fazem apologia aberta de Putin? Antes de tudo, muitos dos que juram de pés juntos estar sempre ao lado dos povos e dos oprimidos corroboram com o fato de que um país de 45 milhões de habitantes, absolutamente contra a vontade de seu povo, passe a viver um futuro indefinido de violência e ocupação militar direta a partir de Moscou (ou de um governo militar títere local, o que daria no mesmo). A crítica ao expansionismo da Otan no Leste Europeu, usada como bode na sala para a doçura derramada sobre Putin, é um típico exemplo de como algo verdadeiro em si pode servir de cobertura para uma tomada de posição absolutamente falsa. Afinal, na vida real e não no plano dos discursos etéreos “anti-imperialistas”, o que se afirma é que o povo ucraniano, caso não queira sofrer com os imperativos militares da realpolitik de Putin, deve ter as condições de reverter, no curtíssimo prazo, os imperativos militares da realpolitik do Ocidente. Como se isso estivesse ao alcance dos ucranianos, ou ainda como se a agressão russa não tornasse os ucranianos ainda mais dependentes do Ocidente, mesmo após a traição da Otan. A escolha passa a ser então: “Vocês, ucranianos, para não serem bombardeados, mortos e ocupados, redesenhem a geopolítica mundial das últimas décadas”. Não é sério…
Para além disso, o jogo tácito entre Putin e EUA, ao contrário do triunfalismo de muitos, de forma alguma enfraqueceu o imperialismo americano. Pois uma coisa é constatar o processo de longo prazo de relativo enfraquecimento dos EUA. Outra coisa é a constatação do saldo imediato dos dias que correm.
Salvo novas mudanças espetaculares no curto prazo, o fato é que os EUA lograram soldar uma liderança militar ainda mais pronunciada e incontestável na Europa (independentemente e mesmo contra da vontade desta). Senão, vejamos. Desde novembro Putin ameaça invadir a Ucrânia e qual a resposta de Biden? Discursos duros e ameaças de sanções, ao passo que dá carta branca para Putin ao reiterar que não vai intervir. Aqui é verdade que a Otan trai a Ucrânia e isso não deixa de ser uma desmoralização. Mas com a invasão virando fato consumado, a Otan sob liderança americana logo se apressou em canalizar mais tropas e recursos para o Leste Europeu. Mais importante ainda, o confronto aberto com a Rússia permite aos EUA cortar as veleidades de independência militar de uma França, bem como permite minar a importante projeção econômica alemã sobre a Rússia (o caso Nord Stream 2 é emblemático). Pouco importa se esse processo foi ou não subjetivamente pré-combinado entre EUA e Rússia. Objetivamente, em todo caso, há aqui um acordo tácito no qual Putin ganha a Ucrânia como troféu e Biden obriga um realinhamento da Europa em torno de sua liderança na Otan. Sem contar o fato de que, com tal situação, Biden se reaproximou do establishment republicano que agora quer se separar de vez do admirador de Putin, Donald Trump. Eis, portanto, outra aporia dos “anti-imperialistas”: o argumento de que tudo que enfraquece os EUA deve ser apoiado, que já em si é bastante canhestro, anima uma tomada de posição que na prática reafirma uma bipolaridade que oferece novas e preciosas cartas na manga para o… imperialismo americano.
O dito acima, por outro lado, não significa que os EUA e/ou a Rússia estariam dando um “golpe de mestre”. As contradições são enormes e as margens de manobra são bem estreitas, diferentemente do quadro de expansão econômica que ajudou a fortalecer os dois blocos antagônicos do pós-guerra. A crise do capital também é a crise do Sistema-Mundo. Na medida em que o horizonte de sociedades salariais, crescimento econômico contínuo, progresso na vida, etc., se esfuma, a politização do ressentimento social cresce, fazendo aflorar os identitarismos nacionalistas, xenófobos e de extrema-direita. Tal fenômeno, que estes dias para alguns parece estar circunscrito à Ucrânia, se verifica em toda a parte, do Ocidente ao Oriente. Tais nacionalismos, longe de se apoiarem na velha utopia de desenvolvimento nacional e integração benfazeja de todos nos circuitos econômicos, se apoiam diretamente numa situação em que é claro que já não há mais lugar para todos e justamente por isso eles dão vazão a tendências autofágicas e explosivas.
Ademais — e aqui outra diferença crucial da antiga Guerra Fria — as potências dos dois blocos supracitados têm hoje um grau de mútua interdependência e interrelação econômica nesse século XXI que simplesmente não havia no século passado. Esse problema — que reflete o fato de que o capital já atingiu um grau de universalização das forças produtivas (aqui inclusa a mão de obra), do comércio e das finanças — não poderá ser resolvido de forma alguma por uma nova bipolaridade. Pois isto simplesmente se choca com a necessidade das potências de terem sucesso no quadro de um capitalismo que não comporta qualquer autarquização econômica bem-sucedida em blocos opostos. Inclusive para que os respectivos poderios militares possam se sobressair, é preciso antes ter um raio de ação econômica global. Sanções entre a Rússia e a Europa, por exemplo, correm o risco não apenas de agravar sobremaneira a crise energética desta última, como também tirar uma fonte de divisas e renda preciosa para a Rússia. Esta última, deve se tornar ainda mais dependente da China, mas é ilusório que a perda no Ocidente seja totalmente reparada pelo aprofundamento das relações com a China. Inclusive porque, a China, num eventual quadro em que as sanções econômicas também a abarquem, tampouco pode abdicar dos mercados ocidentais, sobretudo num momento em que o país tem como objetivo sofisticar o conteúdo tecnológico de suas exportações. O crescimento econômico da China nunca foi independente da motorização de bolhas de consumo, crédito e capital fictício vindas do Ocidente. Agora, além dos efeitos da sua própria bolha imobiliária fictícia, uma eventual redução drástica de mercados no Ocidente seria a pá de cal no assim chamado “milagre chinês”. Assim como, por exemplo, do outro lado, congelar as transações financeiras de uma China com seus trilhões de ativos e títulos públicos em dólar é o caminho mais rápido e certeiro para destronar os EUA como patronos da moeda de reserva global. Ademais, um bloqueio ou um protecionismo intensificado do Ocidente para as importações chinesas, jogará mais combustível sobre a inflação e a perda de poder de compra de suas sociedades. A contradição é objetiva aqui: a “desglobalização” econômica pode talvez no curto prazo aparecer como uma arma de defesa e combate econômico, mas, no fundo, a “desglobalização” não é qualquer opção efetivamente viável para ninguém: os imperativos do capital como “sujeito automático” como dizia Marx não podem se conformar com as fronteiras da nova bipolaridade, sobretudo quando este mesmo capital tem uma dinâmica de acumulação já bem capenga. Trata-se, portanto, de uma “Guerra Fria” também a fórceps nesse outro sentido: a geopolítica que agora pretende partir o mundo acaba por ser uma tentativa de se forçar um beco sem saída econômico.
Por tudo isso, o cenário que se afigura só pode aumentar as tensões diante da tarefa de Sísifo de se administrar as crises internas e externas que se desdobram. Tudo aponta não para a contenção, mas sim para a aceleração dos processos de desagregação social e política já em curso, o que certamente tende a fortalecer os dispositivos de repressão, violência, controle e politização do ódio a partir de ambos os blocos em conflito. A ideia de que se deveria apoiar um dos lados em nome de uma posição “progressista” na melhor das hipóteses é uma ilusão, e na pior delas é compactuar com o impasse vigente.
Impasse esse que aparece diretamente no contorcionismo ideológico e metafísico com que a esquerda “anti-imperialista” busca pintar com cores róseas o bloco China-Rússia. E, no caso da Ucrânia, a denúncia de um fato real — a ação de grupos neonazistas armados — se transforma numa acusação absurda contra todo o país e sua população que tem todos os motivos para lutar contra a agressão de Putin e que já está fazendo isso. Estaria o povo ucraniano errado em lutar? Ou ainda Putin estaria certo quando em nome da “união nacional” ele prende milhares de russos que protestam contra a guerra? Seriam todos traidores nacionais a serviço da Otan? Quando a destruição imperial da Ucrânia pela Rússia é decantada como uma vitória “contra o nazismo”, projeta-se sobre a Ucrânia a própria encarnação do mal absoluto. Com isso, conscientemente ou não, a esquerda “anti-imperialista” tenta projetar sobre seus inimigos todos os fantasmas que não deixam de ser os seus também.
Por exemplo, na narrativa apologética pró-Rússia, tudo se passa como se a “desnazificação” proposta por Putin pudesse trazer algo diferente do que a própria barbarização/fascistização/nazificação por outros meios da Ucrânia. Como não ver que tal estratégia de Putin só pode acarretar na ampliação de uma batalha mortal e sem fim, cujo resultado só pode ser o fortalecimento do ódio e o reforço de movimentos e milícias de extrema-direita, tanto de ucranianos como de russos? [1]
De forma análoga, a tentativa de se pintar a Ucrânia como um bloco monolítico de extrema-direita mal pode disfarçar a minimização ou o ocultamento do fato de que Putin é um grande aliado da extrema direita europeia – sendo admirado ainda por Bolsonaro e Trump – e que seu governo é eminentemente reacionário. E, mais fundamental ainda, quando a denúncia dos crimes, hipocrisias e tragédias humanas de responsabilidade do Ocidente serve como álibi ou atenuante para a desagregação completa da Ucrânia, quem é anistiado aqui é precisamente o processo de barbarização global em curso. “Os EUA devastaram o Iraque e então agora ninguém deve ficar muito indignado se a Rússia devastar a Ucrânia”: este virou o “argumento” deste estranho “anti-imperialismo”. Assim, o que escapa à crítica é precisamente o fato de que o que está à vista é o surgimento de novos Iraques/Ucrânias a serem insuflados pela própria bipolaridade dentro da qual se supõe estar do lado “certo” apoiando-se as forças “anti-imperialistas”. Isso, quando a discussão não descamba para a falsificação completa do real caráter do expansionismo de Putin que já se dá muito além do “espaço vital” do Império Russo, o qual supostamente Putin teria “direitos históricos” de defender. O que o “anti-imperialismo” pró-Rússia tem a dizer sobre a sustentação militar de Putin a Assad na Síria que permitiu a este último causar o extermínio de centenas de milhares de civis, muitos torturados até a morte nas prisões? Isso quando não foi a própria aviação russa que bombardeou diretamente hospitais e prédios residenciais.[2]
A miséria do “anti-imperialismo”, suas tentativas de se sustentar o insustentável, é reveladora de tendências que dizem muito sobre parcelas da esquerda brasileira e do exterior hoje. O caráter atravessado, doutrinário e anacrônico das análises é adornado com um pretenso marxismo “principista” que trai justamente o maior legado de Marx que era analisar a realidade de forma imanente e não tentando enquadrá-la a conceitos externos e estranhos aos objetos em debate. No limite, é possível para alguns em nome do “leninismo ortodoxo” fazer a apologia de Putin mesmo quando este explícitamente diz que vai apagar o “erro” de Lênin de ter se pronunciado pela autodeterminação dos povos do antigo Império Russo…
Este estado de coisas sugere mais um último sentido de uma “Guerra Fria” a fórceps, agora do ponto de vista de uma certa esquerda. Situando-se ideologicamente num dos campos em disputa dentro da bipolarização que vem à luz, aceitando para si o próprio quadro imposto pelos atuais líderes mundiais com poder nuclear como horizonte derradeiro de ação, esta esquerda agora crê poder simular algum tipo de potência, algum tipo de vigor artificial. Uma potência simulada, forçada e substitutiva, posto que é o reverso da impotência real de se produzir ideias e práticas que tenham um norte efetivamente transformador e emancipatório. Para que não sejamos injustos, é preciso dizer que esta impotência abarca na realidade toda a esquerda hoje. Trata-se assim, de uma tarefa coletiva e nada simples. Todavia, terceirizar esta tarefa para os Putin e Xi Jinping do mundo já é o atestado de seu abandono.
Notas:
1. Como mostra o bom texto de Taras Bilous, que por sua militância e por suas relações familiares conhece bem os dois lados do conflito do Donbass, a propaganda de que aí se trata sem mais de uma luta entre “nazistas ucranianos” versus uma “resistência popular russa” é uma distorção completa. Não apenas se desconsidera com isso que há elementos fascistas e ataques a civis de ambos os lados, como também se oculta o papel que o Exército Russo joga desde 2014 no conflito. Sobre isso, ver também Coinash (2014). Para além disso, quem em sã consciência pode achar que um eventual futuro domínio da Ucrânia pela Rússia será baseado na “resistência popular”? Certamente se tratará de uma repressão vinda tanto do Exército russo como das diferentes milícias controladas por Putin. Prova disso já é o desembarque de tropas na Ucrânia enviadas a pedido de Putin pelo líder checheno Kadyrov, conhecido pela prática da tortura e pela formação de esquadrões da morte em sua república. Eis um sinal do que os ucranianos podem esperar como “resistência popular”. Ver sobre isso em Walker (2019).
2. Para uma crítica contundente das posições da grande parte da esquerda ocidental diante da tragédia síria, ver o texto de Leila Al Shami (2018).
Referências
AL-SHAMI, Leila. “The ‘anti-imperialism’ of idiots.” 14/4/2018. Disponível em https://leilashami.wordpress.com/2018/04/14/the-anti-imperialism-of-idiots/
BILOUS, Taras. “Uma carta de Kiev para a esquerda ocidental”. 26/2/2022. Disponível em https://movimentorevista.com.br/2022/02/uma-carta-de-kiev-para-a-esquerda-ocidental/?fbclid=IwAR1bNdhJNulVfE_4uIxZqhgToS6KbR8VcibecIv16yrSTfzlmco_qvMQPWY
COINASH, Halya. “East Ukraine crisis and the ‘fascist’ matrix. Is the Russian leadership fomenting ideological links with some far-right European parties?”. In: Al Jazeera. 17/4/2014. Disponível em https://www.aljazeera.com/opinions/2014/4/17/east-ukraine-crisis-and-the-fascist-matrix?fbclid=IwAR37FG2lhDUPXG4QEukMgdY2kRgpphEfhEHfNGXG6lPaRM-WrcUQf0fDiTs
WALKER, Shaun. ‘We can find you anywhere’: the Chechen death squads stalking Europe. In: The Guardian, 21/9/2019. Disponível em https://www.theguardian.com/world/2019/sep/21/chechnya-death-squads-europe-ramzan-kadyrov
Daniel Feldmann é Professor do Departamento de Economia da Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP). É autor, junto com Fabio Luis Barbosa dos Santos de “O médico e o monstro: uma leitura do progressismo latino-americano e seus opostos”. Editora Elefante: 2021.
Fonte: Zero à esquerda