Reginaldo Nasser: “Putin queimou o navio, não tem volta”
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- Marina Amaral, Agência Pública
- 28/03/2022
Fonte: Agência Pública
Na última quinta-feira (24) a guerra da Ucrânia completou um mês sem nenhuma possibilidade de rápido desfecho, na visão de um dos maiores especialistas brasileiros em relações internacionais. “O Putin queimou o navio, não tem volta. O que ele vai fazer agora? Pedir desculpas?”, diz o livre docente, pesquisador e professor do Departamento de Relações Internacionais da PUC-SP, que chefiou por anos, Reginaldo Nasser.
Nasser contou ter se surpreendido com a quantidade de análises equivocadas sobre o conflito nos jornais ocidentais – não fake news, como na Rússia, mas distorções, leviandades, falta de conhecimento – em especial no Brasil. “A guerra é complexa, tem muitas nuances. Estamos viciados em direita e esquerda, com essa polarização do Bolsonaro, mas isso não existe quando se fala de grandes potências, de geopolítica”, advertiu antes da entrevista.
Para ele, o presidente russo, Vladimir Putin, errou ao invadir a Ucrânia e o presidente dos Estados Unidos, Joe Biden, insuflou o conflito prometendo treinamento e armas para os ucranianos. “Quem falou pela Ucrânia a maior parte do tempo, pelo menos até a invasão, foi o Biden”, observa.
Também afirma que o envio de armas pela Otan, acaba por prolongar a guerra, enquanto a Ucrânia é destruída. “É guerra de atrito, guerra de fricção. Quando a defesa é forte o bastante pra não deixar ocupar, mas não o suficiente para reverter a guerra”, explica, acrescentando que Biden se negou a negociar com Putin desde o início. “O problema do Putin, não é com Zelensky (o presidente da Ucrânia, Volodymyr Zelensky)”, mas com a Otan e os Estados Unidos, explica. E Putin não vai voltar atrás.
Confira aqui trechos da entrevista concedida na terça-feira (22/03) à Agência Pública.
Reginaldo Nasser é professor do departamento de Relações Internacionais da PUC-SP e autor do livro “Novas perspectivas sobre os conflitos internacionais”. Créditos: Reprodução Facebook/ Reginaldo Nasser
Pouco antes da guerra, muitos analistas, inclusive você, professor, diziam não acreditar que a Rússia partiria para uma ação militar. O que aconteceu? O que detonou a guerra, afinal?
Eu disse mesmo que não acreditava na guerra, claro, ninguém imaginava. A Stratfor, uma das maiores consultorias sobre geopolítica do mundo, escreveu desculpas em sua página em 25 de fevereiro, dia seguinte à invasão, por erros de análise da situação. Até analistas de jornais próximos ao Putin se surpreenderam, como me disse um orientando meu, que estuda Rússia e fala russo.
Então, se você não sabe o que aconteceu, é obrigado a fazer hipóteses, não basta dizer que Putin é doido. Não é doido mas ele erra, não é onisciente nem onipotente como alguns parecem acreditar. Então a hipótese que acho mais provável é a de que Putin julgou que derrubaria o governo ucraniano rapidamente, estabeleceria uma situação de fato que não teria volta e portanto pegaria todo mundo de surpresa. Uma troca de regime e uma ocupação, igual os Estados Unidos fazem. Veja, ele entrou por quatro cidades – Kiev, Mariupol, Lviv e Kharkiv. Como não conseguiu tomar nenhuma das quatro até agora – Mariupol pode ser, mas até o momento não-, a guerra mudou.
Qual é a questão? Tenho lido alguns analistas lembrando [o teórico de guerra, Carl von] Clausewitz, que ninguém acerta o objetivo de guerra no começo. A questão é: quem está empreendendo tem que ler o que está acontecendo de fato e corrigir a condução. Avaliar entre a guerra planejada e a real, no terreno, na linguagem do Clausewitz. Parece que a Rússia não corrigiu, porque os problemas estão se avolumando. Então é a história do [conquistador Hernán] Cortez que queimou o navio pra ninguém voltar atrás [ao desembarcar em terras mexicanas]. Viu aquele monte de índios, seus homens com medo e mandou queimar o navio para ninguém fugir. Isso virou uma expressão. O Putin queimou o navio, não tem mais volta. O que ele vai fazer, pedir desculpas? Não, ele vai até o fim.
Putin se surpreendeu com preparo militar da Ucrânia, avalia professor. Créditos: Oficial Kremlin.
A defesa ucraniana surpreendeu o Putin?
Quantos dias durou a guerra de Kosovo? 76 dias. E a Sérvia não tinha ninguém pra ajudar igual a Ucrânia, o maior país da Europa, tem. E acho que os russos não sabiam o quanto de arma e de treino tinha ali. Outro dia eu li o secretário da Otan, foi pouco divulgado, dizendo que estava muito feliz com o treinamento que eles tinham dado para a Ucrânia todos esses anos e comemorando o “ótimo desempenho” dos ucranianos. Esse preparo pegou o Putin de surpresa.
E também as sanções, que ele não imaginava que seriam nesse nível. Aquela conversa com Xi Jinping acho que já era pra avisar da guerra. Jinping já sabia, com certeza. Porque o Putin também se garantiu. Porque não é o que ele pensava, mas ele também não está tão isolado assim. Ontem vi o Paquistão apoiando a Índia, eles que são brigados, porque a Índia não está contra a Rússia. Então, China, Índia, África do Sul não entraram nessa. Nem lá nem cá. Não se esperava um consenso tão grande no Ocidente mas também não era esperado, nessa dimensão, um apoio do não Ocidente.
Mas eles estão apoiando? Porque a atitude da China parece ambígua, não?
Eles não querem punir a Rússia, é um neutralismo. Deixa do jeito que está. E não só a China. Até a Arábia Saudita, Emirados Árabes, aliados incondicionais dos Estados Unidos, estão se aproximando da Rússia. Emirados não votaram a favor da resolução contra a Rússia no Conselho de Segurança, depois votaram na Assembleia Geral. Há uma mudança ali, do que era só Estados Unidos. Então a Arábia Saudita está vendendo petróleo em moeda chinesa, tem um movimento ali que os Estados Unidos não esperavam.
Estou querendo dizer que não é só um lado que tem surpresa. E os dois lados vão reagindo um ao outro, vão avançando, recuam. São muitas nuances, é complexo. A guerra tem muitas dimensões.
Problema de Putin não é com Zelensky, mas com Biden que “jogou fogo” no conflito, diz. Créditos: Reprodução Facebook/ Joe Biden.
Sim, há a razão da Ucrânia, indiscutível, que é de nação invadida por outro país, mas há também a questão que aparece como pano de fundo que é a expansão da Otan, que é inegável, principalmente no governo Bush. Acho que é menos claro para nós, o que aconteceu no governo Obama, e qual o papel que jogou nesse conflito, talvez até adiando, a relação entre o Putin e o Trump. A questão é: como se desenvolveu essa questão da Otan nesses anos? Por que a reação do Putin agora? Houve algum fato recente que justifique a Rússia se sentir ameaçada?
Havia um acordo implícito, nada no papel, sobre a entrada da Ucrânia na Otan. Mas a tendência dos democratas é fazer o mundo à sua imagem e semelhança. Veja só o Trump, fez acordo com a Coreia do Norte e com o Talibã. Tirando o Bush não há uma guerra dos Estados Unidos que não tenha sido feita por um presidente democrata. Primeira guerra: Woodrow Wilson, democrata. Segunda guerra: Roosevelt. Coreia: Truman, Eisenhower continuou. Vietnã: Kennedy, Lyndon Johnson. Kosovo: Clinton. E por quê? Tem uma lógica. A ideia do democrata não é o equilíbrio de áreas de influência. Eles têm a ideia de exportar o modo de vida americano. George Kennan, o pai da doutrina da guerra fria, criticou a Otan desde a criação. Ele morreu [em 2005] dizendo: não expandam a Otan. Deu uma arrefecida no governo Obama, mas jornalistas do New York Times diziam que, em relação a isso, o Obama era moderado, mas o vice, que era o Biden, não. O Biden também foi um grande entusiasta dos bombardeios em Belgrado em 1999 e, nesse caso da Ucrânia, acho que ele também foi além da medida. Não vamos esquecer que em dezembro o Putin fez uma proposta para o Biden sobre a Ucrânia. O Biden nem ligou.
E qual era a proposta?
Reconhecer Donbass, parar com a expansão da Otan, deixar a Ucrânia de fora, essas propostas que agora ressurgem. Não tem sentido nenhum a Rússia invadir a Ucrânia, mas o Biden passou da linha também.
Você acha que isso poderia ter parado o Putin? E a região de Donbass?
Aí não seria invasão. Não é só uma coisa de direito, é de princípio de legitimidade. Em fevereiro, o parlamento russo autorizou o Putin a enviar forças de paz para a região separatista. Qual era o passo seguinte? Enviar tropas para proteger, que é o que os Estados Unidos fazem, os Estados Unidos até hoje tem tropas em Kosovo porque tem países que não reconhecem Kosovo. Tanto que imaginamos que ele iria mandar a tropa para a região separatista e ficar lá. Se tivesse um incidente, aí sim poderia haver uma guerra. Mas não. Se você invade um país por terra, mar e ar, como fez o Putin, é pra derrubar o governo. Se ele tivesse mandado tropas apenas para a região separatista, ele teria mais legitimidade. Seria mais difícil para o Ocidente conseguir consenso. Ele foi arrogante.
Para Nasser, Zelensky “vai ser visto como traidor” se assinar um acordo de paz com a Rússia. Créditos: President of Ukraine/ Wikimedia Commons
E a Ucrânia? O Zelensky contribuiu de alguma maneira para que Putin tomasse essa decisão?
Olha, é muito interessante porque quem falou pela Ucrânia a maior parte do tempo, pelo menos até a invasão, foi o Biden. Eu até fiz uma matéria para a Carta Capital sobre isso, você não ouvia o Zelensky falar. Para mim está claro que o Biden insuflou: ‘temos armas, vamos te ajudar’. Mas o Zelensky sabe manejar bem. Ele tem duas armas que estão sendo as estrelas da guerra: o drone turco e o Javelin, que é um míssil anti-tanque. E pra eles poderem usar essas armas têm que ter treinado muito antes. Pode ser que não fosse com o conhecimento do presidente, talvez um nexo entre os militares, mas os ucranianos estavam se preparando.
E o Biden jogou fogo. Porque a questão da Rússia não é com o Zelensky, mas com os Estados Unidos, a Otan. E o Biden não quer acordo. Nem antes, nem agora. Ele está mandando armas. E as armas que o Biden está mandando não são capazes de reverter o curso da guerra, elas prolongam a guerra. É guerra de atrito, guerra de fricção. Quando a defesa é forte o bastante pra não deixar ocupar, mas não o suficiente para reverter a guerra. Ontem eu li um general americano aposentado dizendo: o Putin vai deixar isso aí se prolongar até sumir da mídia, aí ele vai fazer ataques e resolver isso. É guerra de desgaste. Mas os russos também estão desgastados. Saiu uma matéria no Guardian dizendo que em três dias vai faltar alimento para os combatentes russos na Ucrânia.
A Rússia temia há muito tempo que houvesse uma guerra civil na Ucrânia, pela polarização da população em relação à entrada na Otan, e mesmo na União Europeia. Há até um telegrama do embaixador americano, de 2008, vazado pelo Wikileaks falando da ameaça de guerra civil e aconselhando o governo dos Estados Unidos a afastar as preocupações do Putin em relação à Otan. Seis anos depois explodiram as manifestações na Ucrânia, que derrubaram o presidente pró-Rússia, a guerra civil e a anexação da Crimeia pela Rússia. Como isso se liga à guerra atual?
Falando de 2014, das movimentações de rua na Ucrânia. Tem semelhanças com os nossos protestos aqui de 2013. Houve uma circunstância de crise econômica e social real e as pessoas foram pra rua. No meio disso, eles começaram a colocar grupos de direita e grupos apoiados pelos Estados Unidos. Isso é muito evidente. Como foi aqui, quando as bandeiras verde-amarela apareceram. E os Estados Unidos jogaram pesado [na Ucrânia]. O [senador John] McCain, republicano, chegou a subir em palanque de comício em Kiev. Não pode fazer isso! O que eles fizeram? Eles derrubaram o presidente pró-Rússia, que não se movia para entrar na Otan nem na comunidade europeia. Aí no meio disso foi pra guerra civil porque começou grupos pró, grupos contra, a Rússia dando armas para uns, os Estados Unidos para outros. É o que na guerra fria chamavam de proxy war, você joga lá e fica olhando. Estados Unidos e Rússia não entraram, Otan não entrou. E a Rússia em certo sentido conseguiu algo importante, dividiu, ainda que seja um pequeno pedaço, que foi a mesma tática usada na Geórgia.
Como eu escrevi em um artigo na Folha de S. Paulo, o Putin quer uma vida normal. Normal como? A de uma grande potência, que invade quem quiser, como fazem os Estados Unidos. E qual é a fórmula do Putin? Você tem uma comunidade real, próxima da Rússia, e eles querem ser [russos]. E isso é verdade. Você levanta a lebre, os caras criam um dissenso, vai lá manda tropa, protege, separa. Deu certo com a Crimeia e parcialmente com a região de Donbass. Aí veio o acordo de Minsk [em 2015], que até tinha observadores internacionais para fiscalizar, mas ninguém estava respeitando de lado nenhum, e a Ucrânia impondo mais. Tanto que a região de Donbass não é toda de separatistas. Quando começa a guerra, uma parte daquela área é do governo ucraniano. Eles não desocuparam [como previa o acordo]. Esse negócio ficou mal parado.
Dedução: Putin está vendo chegar armas lá, esse pessoal se exaltar… Porque essa questão das comunidades da Ucrânia é real. Quando começou esse debate, eu vi um punhado de amigos meus na maior briga se é de direita ou de esquerda. Não é de direita nem de esquerda, tem assuntos de geopolítica que não têm nada a ver com direita e esquerda. O Putin não está nem aí se é de direita ou esquerda. Ele vai ajudar quem é do interesse dele. Quanto à Ucrânia, esquece, ele vai continuar. Ele errou em invadir, porque está criando mal estar até em gente próxima dele. Porque na Síria é uma coisa, mas ali tem muita gente branca, não pega bem. A gente sente que não está pegando bem em termos de motivação para as tropas.
Você acha que ele imagina anexar a Ucrânia como fez com a Crimeia?
Não. O que está parecendo nos últimos dias, com Mariupol, é que ele quer aquela faixa que vai até Odessa. Odessa é o sonho, vai ser difícil. Mas, mesmo que não dê, se ele pegar aquela faixa inteira, pode até dizer que ganhou a guerra. Porque toda guerra é isso, o cara que volta pra casa tem que falar que ganhou. Ele pode dizer: de Donbass aumentamos até a faixa de Crimeia. É isso que eles estão cogitando, o ideal é Odessa porque aí fecha mesmo o mar. O Azov já está fechado, fecha o Mar Negro. Porque a outra [meta] tira de cogitação. Ele não vai entrar em Kiev. Então é guerra de fricção, ele mudou a guerra há uma semana, está atacando a infraestrutura, as siderúrgicas.
Envio de armas pela Otan acaba por prolongar a guerra, enquanto a Ucrânia é destruída, avalia. Créditos: State Emergency Service of Ukraine/ Wikimedia Commons
Você acha que essa guerra pode expandir para o Ocidente?
Não agora, mas acho que a Europa vai entrar em um período belicoso muito complicado. De todos os países têm um em particular que tem que ficar de olho, a Alemanha. A Alemanha aumentou o orçamento militar em 2%. Isso dá 200 bilhões de dólares. Assim numa penada. Era proibido vender armas para país em guerra, eles passaram por cima do Parlamento, estão vendendo armas para a Ucrânia. Porque é a espiral da insegurança, a percepção de insegurança. Está todo mundo com medo dos russos. Dinamarca, Suécia, todas militarizadas. Outra: todo mundo quer entrar na Otan. E isso gera problemas. Onde? Bálcans: Kosovo quer entrar na Otan, a Sérvia já disse que não vai deixar. E por último, o que vai ser da Ucrânia. Tem gente dizendo que vai ser um grande Afeganistão.
Será possível? O maior país da Europa!
Primeiro fator: quando acontece uma guerra assim, a centralização política, econômica se esvai. As regiões estão tendo combates autônomos, estão se administrando, você perde o comando. Vários mercenários, muitas armas. Os civis se transformaram em combatentes por decisão oficial do governo da Ucrânia. Vão devolver as armas depois? E não é qualquer arma, é míssil anti-tanque, arma que você carrega nas costas. Tem mais: se o Zelensky assinar um acordo de paz ele está enrolado com esses grupos. Vai ser visto como traidor, essas coisas começam a crescer, e ele não tem autoridade nenhuma. Ele pode ser um superstar agora, mas não tem autoridade. E no meio de uma crise desse tamanho. Estão falando em queda de 45% do PIB da Ucrânia. Não vamos estranhar se derrubarem ele, não agora, que ele é herói, mas depois, quando baixar a bola.
Para fechar a resposta sobre a Europa, digo que ela voltou a ser um centro de instabilidade. A Polônia, com o nacionalismo em alta, muitos refugiados, toda aquela região.
Voltando ao presente, você acha que a China poderia assumir o papel de mediadora?
Eu gostaria que ela fizesse esse papel. Mas a China está sendo aquilo que sempre foi. Não se mete. Olhando. Você não tem um caso na história da China em mesas de negociação. Na perspectiva deles, já é muito o que estão fazendo pela Rússia. Eles dizem que querem a paz, mas não condenam a guerra. Mas em termos geopolíticos, a China é quem ganha com essa guerra. Seja qual for o resultado. O PIB da China é 16 vezes maior do que o da Rússia. A Rússia é um caso único de desproporção entre o poderio econômico e o militar. O PIB do Brasil é maior do que o da Rússia.
Para falar do pior pesadelo global: você acha que o Putin chegaria a usar armas nucleares?
Não, de jeito nenhum. Isso seria suicídio. Ninguém vai fazer isso. Como disse o ex-secretário de defesa dos Estados Unidos, [Robert] McNamara, a arma nuclear criou razão nos homens. Podem até ameaçar, mas duvido que isso aconteça e a Rússia tem muitas armas para usar antes disso.
Entrevista publicada originalmente na Agência Pública em 24 de março de 2022.
Marina Amaral é jornalista; diretora executiva e editora da Agência Pública.
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