Não nos deixemos esmagar pela geopolítica
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- Raul Zibechi
- 28/03/2022
Foto: Pixabay
A geopolítica aborda pensamentos e formas de ver o mundo imperiais, a serviço dos estados mais poderosos. Surgiu desse modo e permanece assim, embora alguns intelectuais se empenhem em uma espécie de geopolítica de esquerda, ou até revolucionária.
A geopolítica surge em inícios do século XX entre geógrafos e estrategistas militares do norte, que vinculam as realidades geográficas com as relações internacionais. O termo surgiu pela primeira vez em um livro do geógrafo sueco Rudolf Kjellén, intitulado O Estado como forma de vida. O almirante estadunidense Alfred Mahan desenvolveu a estratégia do domínio naval, ao passo que Nicholas Spykman definiu as regiões da América Latina onde os Estados Unidos devem manter o controle absoluto para garantir seu domínio global.
A geopolítica teve um grande desenvolvimento na Alemanha de inícios do século XX, alcançando grande difusão durante o nazismo. Na América Latina, os militares da ditadura brasileira (1964-85), como Golbery do Couto e Silva, basearam-se na geopolítica para defender a expansão do Brasil, para concluir a ocupação da Amazônia e se tornar o hegemon regional.
Não estou interessado em aprofundar essa disciplina, mas em suas consequências sobre os povos. Se a geopolítica trata das relações entre estados, e em especial sobre o papel dos que buscam dominar o mundo, o grande ausente nesse pensamento são os povos, as multidões oprimidas que nem sequer são mencionadas em suas análises.
Boa parte daqueles que justificam a invasão russa da Ucrânia enchem páginas denunciando as atrocidades dos Estados Unidos. Alguém nos lembra: “Os Estados Unidos realizaram 48 intervenções militares nos anos 1990 e se envolveram em várias guerras sem fim durante as duas primeiras décadas do século XXI”.
Acrescenta que, nesse período, os estadunidenses “realizaram 24 intervenções militares ao redor do mundo e 100.000 bombardeios aéreos, e só em 2016, durante o governo de Barack Obama, lançaram 16.171 bombas sobre sete países”.
A lógica de tais análises diz algo assim: o império A é terrivelmente cruel e criminoso, mas o império B é muito menos prejudicial porque, evidentemente, seus crimes são muito menores. Como os Estados Unidos são uma máquina imperial que assassina centenas ou dezenas de milhares todos os anos, por que levantar a voz contra quem mata apenas alguns milhares, como a Rússia?
Essa é a forma rasteira e calculista de fazer política que não leva em conta a dor humana, que considera que os povos são apenas números nas estatísticas da morte, ou que os considera apenas carne de canhão, como números em uma balança que só mede lucros empresariais e estatais.
Ao contrário, nós, de baixo, colocamos em primeiro lugar os povos, as classes, cores de pele e sexualidades oprimidas. Nosso ponto de partida não são os estados, nem as forças armadas, nem o capital. Não ignoramos que existe um cenário global, nações expansionistas e imperialistas. Mas analisamos esse cenário para decidir como atuar como movimentos e organizações de baixo.
Em Imperialismo, estágio superior do capitalismo, escrito em 1916, durante a Primeira Guerra Mundial, Lênin analisou o capitalismo monopolista como causa da guerra. Mas não tomou partido por nenhum bando e se esforçou para transformar a carnificina em revolução.
Immanuel Wallerstein trabalhou desse modo. Sua teoria sobre o sistema-mundo pretende compreender e explicar como funcionam as relações políticas e econômicas em um planeta globalizado, com o objetivo de impulsionar a transformação social.
São ferramentas úteis para os povos em movimento. Compreender como o sistema funciona, longe de nos levar a justificar qualquer uma das potências em batalha, favorece prever as consequências que terá sobre os de baixo.
O zapatismo chama o caos sistêmico que estamos vivendo de “tormenta” e também considera que é necessário compreender as mudanças no funcionamento do capitalismo. Quanto ao primeiro, a conclusão é que devemos nos preparar para enfrentar situações extremas, que nunca vivemos. Pensamos que poderão utilizar armas atômicas nos próximos anos?
Em relação ao segundo, embora os zapatistas não o mencionem de forma explícita, pelo que me lembro, é evidente que o 1% mais rico sequestrou os estados-nação, que não existem meios de comunicação, mas de intoxicação e que as democracias eleitorais são contos de fadas, quando não desculpas para perpetrar genocídios. Em consequência, não se deixam enredar na lógica estatal.
Estamos diante de momentos dramáticos para a sobrevivência da humanidade. Devemos erguer os olhos e não nos deixar arrastar no lodaçal geopolítico. Se a névoa é tão espessa que nos impede de distinguir a luz da sombra, confiemos nos princípios éticos para seguir em frente.
Raul Zibechi é jornalista e analista político uruguaio.
Artigo traduzido pelo IHU – Online.
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