Correio da Cidadania

"A OTAN é obsoleta e agora justifica sua expansão; há mais conflitos hoje do que na Guerra Fria"

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Satélites mostram verdadeira dimensão da destruição na Ucrânia
 Foto: Divulgação/Maxar Technologies

No momento em que a guerra da Ucrânia completa quatro meses e o país já se encontra praticamente todo destruído, os EUA anunciam reforço econômico para armar o país invadido pela Rússia e, mais importante, o aumento de sua presença em solo europeu. Além disso, Finlândia e Suécia estão próximas de uma adesão à OTAN. Sobre este pesado embate geopolítico, o Correio entrevista Sidnei Munhoz, autor de Guerra Fria, História e Historiografia, que analisa o conflito sob a perspectiva de uma possível passagem de época no planeta.

“Era uma guerra evitável. O que a Rússia solicitava não era descabido. Podia perfeitamente ser concedido. Alguns dias antes da invasão ao território ucraniano, Jack Matlock, embaixador dos EUA na União Soviética, durante o período Gorbatchev e Ieltsin, afirmou que a demanda de Putin era que a Ucrânia e a Geórgia não entrassem na OTAN e que isso era, no mínimo, razoável”.

Nesse sentido, Munhoz se apoia nas críticas de Andrew Bacevich, importante coronel do exército dos EUA, também historiador, para quem a OTAN jamais se justificou no pós-Guerra Fria e os anos de cerco militar à Rússia revelam um país que parece existir em função de guerras e interesses econômicos ligados a uma indústria bélica sempre em crescimento.

“Outra questão é que a guerra retira de cena crises e problemas internos que os países enfrentam. Após a tragédia do governo Trump, havia uma expectativa em relação à administração Biden. Porém, os resultados são pífios. A guerra tira tal foco e ainda dinamiza a economia (...) Teriam os EUA novamente atraído a Rússia para uma guerra longa, desgastante, que compromete muitos de seus recursos e a levará ao isolamento, com todas as consequências disso? Com os dados de que dispomos no momento, não é possível responder a questão, mas devemos colocá-la”, indagou, em referência a invasão soviética do Afeganistão, importante fator de desgaste do regime comunista de então.

Apesar de considerar a agressão russa uma afirmação de sua perspectiva imperial, em especial em relação a países de sua órbita histórica, Munhoz afirma que a entrada mais enfática dos EUA no conflito acende todo um sinal de alerta para a humanidade.

“O cenário é bastante preocupante porque podemos ter uma escalada que leve ao descontrole da situação, inclusive com uma mundialização de um conflito. As guerras não começam mundiais. Tanto a Primeira quanto a Segunda Guerra Mundial não começaram mundiais. Elas tronaram-se mundiais com o desenrolar dos eventos. Nos últimos anos temos uma contínua expansão de conflitos. Esse é o grande problema que temos hoje”.

A respeito do que seria uma passagem de época, a entrevista trata do documento conjunto publicado por China e Rússia dias antes da entrada do país de Putin em solo ucraniano “Declaração Conjunta da Federação Russa e da República Popular da China sobre as Relações Internacionais e do Desenvolvimento Global Sustentável”.

“É uma ação que se coloca no caminho de questionar a predominância dos EUA, a continuidade de algo que não mais se justifica, como um mercado global dependente do dólar, moeda dos EUA, que é o grande mediador universal de trocas. Sim, este documento se coloca no cenário de exigir uma transição de época, vinculada à perspectiva de um mundo mais multipolar”.

A entrevista completa com Sidnei Munhoz pode ser lida a seguir.


Correio da Cidadania: Em sua visão, quais motivos levaram à invasão da Rússia sobre o território da Ucrânia?

Sidnei Munhoz: Precisamos situar o conflito no contexto geopolítico, o qual tem mostrado a emergência de tensões entre os Estados Unidos da América e os países que desafiam, ao menos parcialmente, sua hegemonia do pós-Guerra Fria. É importante entender que a Guerra Fria produziu um mundo bipolar, ainda que não plenamente. Havia certa margem, por meio da qual atores menores em certos momentos tensionavam as hegemonias de EUA e URSS (União das Repúblicas Socialistas Soviéticas) em seus blocos. Quando acabou a Guerra Fria, não houve a emergência de uma nova ordem global; tivemos a expansão de uma das duas ordens antigas, que passou a ganhar uma dimensão quase global.

Naquele contexto, e pra mim é a origem da questão, nós perdemos uma grande oportunidade de por fim a um tipo obsoleto de aliança, no caso, a OTAN (Organização do Tratado do Atlântico Norte). Perdeu-se a oportunidade de se criar um sistema de segurança europeu com a Rússia plenamente integrada. Isso, ao menos em tese, possibilitaria uma convivência pacífica com o que convencionamos chamar de Europa Ocidental.

Mas aconteceu exatamente o oposto. Os EUA aproveitaram a situação de fragilidade russa para expandir aquela aliança militar criada no contexto da Guerra Fria. Essa aliança foi expandida para a zona fronteiriça à Rússia, herdeira da ex-União Soviética. Isso começou a gerar ruído e tensões entre os EUA e a Rússia. Elas começam a emergir por volta de 1997, com o início da adesão de países da antiga orbita soviética à OTAN. Primeiro, a República Tcheca e a Hungria. Em 1999, Estônia, Letônia, Lituânia, Romênia, Eslováquia e Eslovênia. Em 2009, Albânia e Croácia; em 2017, Montenegro; em 2020, a Macedônia.

Vale observar que a Ucrânia, que vinha discutindo seu ingresso na OTAN, central na compreensão do conflito, tem partes de seu território que no passado não lhe pertenciam, mas foram integradas ao território ucraniano, como a Crimeia, antes pertencente à Rússia. No entanto, Nikita Kruschev, que liderou a URSS após a morte de Stalin, até sua deposição em 1964, transferiu a Crimeia em 1954 para a Ucrânia. Importante entender que ele nasceu no vilarejo de Kalinovka, da região do Kursk Oblast, a 11 km da fronteira com a Ucrânia, e que em sua adolescência e juventude foi mineiro, ferroviário e operário neste país, na região de Donetsk. Ele se sentia ucraniano e na direção da URSS transferiu a Crimeia para a Ucrânia.

É importante entender o que aconteceu na prática após a Guerra Fria. Na vigência da União Soviética criou-se uma nação de caráter federativo, onde em tese todas as repúblicas tinham autonomia, mas na prática a hegemonia era russa, em especial no período de liderança de Stálin. Isso fez com que muita gente de origem russa se espalhasse pela União Soviética. E mesmo antes de sua existência, tínhamos povos russos espalhados por essa região, pois fazia parte do império russo anterior.

Quando a URSS deixa de existir, passamos a ter dezenas, centenas de milhares de russos que repentinamente viraram estrangeiros em repúblicas que se tornavam independentes. Isso é central na compreensão do Donbass (leste ucraniano). Milhares de pessoas que falavam russo e viviam sob tradições russas viraram estrangeiras.

Sublinhe-se que em 2013 o regime de governo ucraniano, liderado por Viktor Yanukovych, passou a sofrer uma série de pressões populares. E há fortes indícios de intervenção dos serviços de inteligência das potências ocidentais, em especial EUA, neste processo. Começou uma rebelião, talvez revolução, com características semelhantes ao que se chamou de revoluções coloridas, primaveras, no início dos anos 2000 e o governo pró-russo caiu. Em resposta, no ano seguinte a Rússia ocupou a Crimeia.

Já havia outros problemas russos na Geórgia, Chechênia, mas vamos focar na Ucrânia. Na sequência, assistimos à ascensão de movimentos independentistas no Donbass, quando rebeldes proclamam independência das repúblicas de Donetsk e Luhansk. Assim, começou uma guerra civil que se estendeu pelos anos seguintes.

É importante observar que o conflito que ganhou dimensão com a invasão russa em fevereiro teve início lá atrás. E nem sempre as informações que chegam aqui expressam os dois lados do conflito. Em regra, vemos notícias filtradas pelas grandes agências de notícias que mostram uma agressão da Rússia na Crimeia, uma revolução popular na Ucrânia e ao mesmo tempo desconsideram outros elementos do conflito.

Correio da Cidadania: Com todo o acúmulo histórico, idas e vindas de diversos tipos de matizes políticos nacionais e globais, até que ponto a guerra poderia ser evitada?

Sidnei Munhoz: Nesse tópico, eu tendo a concordar com o historiador estadunidense e coronel reformado do exército dos EUA, Andrew J. Bacevich. Ele foi diretor do Instituto de Relações Internacionais da Universidade de Boston, lutou no Vietnã e na primeira guerra do Golfo, e perdeu um filho no Iraque. Durante toda a Guerra Fria defendeu a perspectiva dos EUA não só teoricamente, mas como militar. No entanto, terminada a Guerra Fria ele começou a achar que havia algo errado: a expansão da OTAN não se justificava. Ele entendia que os EUA estavam promovendo uma nova corrida armamentista, a gerar instabilidades capazes de levar a guerras.

Bacevich afirma que, hoje, os EUA existem para a guerra. E que este novo conflito está a dinamizar a economia estadunidense e os lucros do complexo militar industrial. Isso não quer dizer que a Rússia não tenha agredido o território soberano da Ucrânia. Entendo que temos o confronto entre duas perspectivas imperiais. Uma é a estadunidense, que tenta a todo custo impor sua ordem ao mundo todo, com o projeto de um novo século de hegemonia, que desde 1997 expande a OTAN e cerca a Rússia. Ao mesmo tempo, devemos reconhecer as posturas imperiais da Rússia frente a territórios que fizeram parte do antigo império russo e da União Soviética.

Era uma guerra evitável. O que a Rússia solicitava não era descabido. Podia perfeitamente ser concedido. Alguns dias antes da invasão ao território ucraniano, Jack Matlock, embaixador dos EUA na União Soviética, durante o período Gorbatchev e Ieltsin, afirmou que a demanda de Putin era que a Ucrânia e a Geórgia não entrassem na OTAN e que isso era, no mínimo, razoável.

Correio da Cidadania: A respeito do uso por parte do Ocidente do conflito como motor de reaquecimento de sua indústria bélica e suas economias que há anos mostram dificuldade de retomada de antigos patamares de crescimento, agora vemos um pacote de ajuda militar dos EUA aos ucranianos, mas de outro lado uma moderação europeia, com ajudas mais tímidas e tentativas mais enfáticas de negociar. Talvez por estar mais perto geograficamente do conflito e absorver as consequências mais diretas da destruição do território ucraniano e fuga em massa da população. Dessa forma, estamos entre o medo europeu de ver um conflito de trágicas consequências sobre seus territórios e o interesse dos EUA por negócios, tanto os negócios de guerra como os de reconstrução de um país que um dia terá de retomar sua vida normal?

Sidnei Munhoz: Parece que ainda temos uma Europa em grande medida refém de um peso descomunal dos EUA na economia global (embora gradualmente percam este peso), de maneira que muitas vezes deixa de trilhar seu próprio caminho. As economias europeias pagam caro por isso. Ao boicotar o petróleo e o gás russo, terão de pagar mais caro pelo mesmo insumo via EUA ou outros aliados. O caso mais típico é o da Alemanha, mais dependente que os outros países europeus.

Da parte dos EUA, toda a ajuda aprovada pelo Congresso dos EUA, já na faixa dos 40 bilhões de dólares, implica a aquisição de produtos da indústria militar dos EUA por parte do governo dos EUA, para que sejam enviados à Ucrânia. Significa dinamizar a economia militar.

Outra questão é que a guerra retira de cena crises e problemas internos que os países enfrentam. Após a tragédia do governo Trump, havia uma expectativa em relação à administração Biden. Porém, os resultados são pífios. A guerra tira tal foco e ainda dinamiza a economia.

Dito isso, tem um imbróglio a mais na tragédia dessa guerra: se a OTAN era uma aliança obsoleta que deveria haver sido extinta ao final da Guerra Fria, hoje se criou uma justificativa para a continuidade de sua expansão. E países que eram reticentes a entrar na OTAN, que adotaram uma postura de neutralidade em relação à herança da Guerra Fria, como Finlândia e Suécia, estão prestes a ingressar na OTAN, o que pode intensificar os conflitos. Neste aspecto, a guerra da Ucrânia justifica para os EUA e seus aliados europeus a expansão da OTAN.

Em 25 de dezembro de 1979, a URSS invadiu o Afeganistão, e a partir dali se iniciou um boicote quase global, exceto da órbita soviética, aos russos. E a União Soviética entrou num conflito que minou seus recursos durante anos, a isolou e acelerou a crise que levou a seu fim. Gorbatchev ainda tentou tirar o país do conflito, mas era tarde demais. Não estou a dizer que a URSS acabou somente pela guerra do Afeganistão, mas lembro que o ex-assessor de assuntos estratégicos de Jimmy Carter, Zbigniew Brzezinski, anos mais tarde, afirmou que criara uma armadilha para levar a URSS a invadir o Afeganistão. Essa tese é confirmada por Robert Gates (ex-diretor da CIA). Expus tal questão em meu livro Guerra Fria, História e Historiografia.

Brzezinski diz que os EUA começaram a desenvolver estratégias de treino de combatentes em locais fronteiriços do Afeganistão, a fim de desencadear conflitos étnicos e religiosos dentro do país, desestabilizá-lo e fazer a URSS entrar lá. Quando ocorreu a invasão, ele mandou um telegrama ao presidente Carter, no qual teria dito: “eles caíram na armadilha. Demos um Vietnã de presente para eles”.

Por que faço essa indagação: teriam os EUA novamente atraído a Rússia para uma guerra longa, desgastante, que compromete muitos de seus recursos e a levará ao isolamento, com todas as consequências disso? Com os dados de que dispomos no momento, não é possível responder a questão, mas devemos colocá-la.

Outro ponto é que no momento existe um grande desafio global posto pela China. Sublinhe-se o seu projeto de edificação de uma nova Rota da Seda, na qual a Rússia é fundamental, como grande fornecedora de energia. A China tem sido comedida, como de hábito, na sua política externa, e tenta ampliar sua zona de influência sem se envolver em conflitos. A China se envolve em conflitos em áreas que considera fundamentais à sua própria segurança, como as questões do Taiwan, Tibete, do Mar da China, de Hong Kong, e regiões que têm problemas étnicos que podem afetar o seu território. Caso contrário, o padrão é não se envolver. Em outras regiões, ela se move de forma lenta, gradual e contínua. E a Rússia é peça chave para a China neste momento, em especial por causa da nova Rota da Seda.

O conflito parece que, de um lado, é um imbróglio para a China, pois ela não pode deixar a Rússia sozinha. Ela tenta não se envolver diretamente no conflito, mas ao mesmo tempo dá suporte indireto à Rússia. Com o bloqueio bancário, dos cartões de créditos hegemonizados por grupos estadunidenses, a China ofereceu seu sistema de pagamento, o Union Pay, que se expandiu colossalmente no país com a saída de Mastercard e Visa.

Não sei como isso vai se desenvolver. A exemplo do inglês Eric Hobsbawm, gosto de dizer que nós, historiadores, somos bons quando falamos do passado. Ainda conseguimos analisar razoavelmente aquilo que vem até o nosso tempo presente. Mas nós não conseguimos prever o futuro. Ninguém consegue! Não sei aonde isso vai desembocar, porque os atores podem tomar caminhos diversos. Porém, com certeza temos um grande imbróglio pela frente.

Correio da Cidadania: Mais especificamente a respeito dos EUA, como fica o governo Biden diante de tamanho desafio político e militar?

Sidnei Munhoz: Aqui eu lembraria a obra seminal do grande historiador revisionista William Appleman Williams, "The tragedy of American Tragedy". Nela, o autor sustenta que a partir da década de 1890 os EUA passaram a adotar uma política imperial e que esse caminho estava a corroer a democracia interna e corromper os valores legados pelos pais fundadores.

Talvez eu destoe da maioria dos colegas que analisam o sistema estadunidense. Acredito que há muito tempo os EUA deixaram de ser uma democracia. Eles nos deixaram uma herança muito importante em termos de democracia. Fala-se muito da herança francesa, mas cabe lembrar que a revolução dos EUA ocorreu até antes. A influência dos EUA aqui no Brasil foi tão grande a ponto de o nome do país ter sido um dia Estados Unidos do Brasil.

Mas há tempos os EUA não agem de forma condizente com uma democracia. Embora formalmente pluripartidário, o sistema representativo na prática é quase bipartidário e não permite o crescimento de outros partidos. Na prática, republicanos e democratas agem muito mais como frações de um mesmo partido do que como partidos distintos. Existem diferenças entre eles, claro. Republicanos são menos protecionistas, cobram menos impostos dos mais ricos e cortam benefícios sociais dos mais pobres. Democratas são mais protecionistas, até porque têm uma base trabalhista maior, cobram mais impostos dos mais ricos e distribuem mais benefícios sociais aos mais pobres.

No entanto, aquilo que chamaríamos de grande política, toda lastreada na política externa, é mais ou menos a mesma desde a vitória dos EUA contra a Espanha lá na década de 1890. Desde então, em linhas gerais, é mais ou menos a mesma coisa, divergências pontuais e momentos de exceção, como o governo Trump.

Como pensar uma democracia que vive a interferir nos negócios de nações soberanas, fomentar golpes, derrubar governos, dar suporte a ditaduras e daí por diante?

Outra característica é que, em geral, embora os democratas sejam mais progressistas em pautas sociais e morais, têm uma postura mais agressiva no cenário internacional. Por exemplo, o início da Guerra Fria: o presidente era Truman, democrata; envolvimento na Indochina/Vietnã: iniciou com Kennedy e escalou com Johnson, democratas; agora, Biden repete uma postura extremamente agressiva no cenário internacional.

O cenário é bastante preocupante porque podemos ter uma escalada que leve ao descontrole da situação, inclusive com uma mundialização de um conflito. As guerras não começam mundiais. Tanto a Primeira quanto a Segunda Guerra Mundial não começaram mundiais. Elas tronaram-se mundiais com o desenrolar dos eventos. Nos últimos anos temos uma contínua expansão de conflitos. Esse é o grande problema que temos hoje.

Correio da Cidadania: Apesar da dificuldade de se prever o futuro, como esse acontecimento dialoga com o documento conjunto publicado por China e Rússia em 4 de fevereiro (Declaração Conjunta da Federação Russa e da República Popular da China sobre as Relações Internacionais e do Desenvolvimento Global Sustentável)? Estamos diante de uma passagem de época, na qual, em linhas gerais, a primazia ocidental política, econômica, cultural, talvez simbolizada na chamada doutrina do Novo Século Americano, esteja se deslocando para o Oriente, mais precisamente o eixo comercial comandado pela China?

Sidnei Munhoz: Sim, é disso que se trata. O documento foi elaborado no exato contexto de emergência do conflito, do aumento das tensões, da pressão russa contra a entrada da Ucrânia na OTAN, quando já se antevia que as demandas russas não seriam bem-sucedidas.

Cabe lembrar ainda da forte influência ocidental na campanha de Volodimyr Zelensky, que atua quase como representante dos interesses dos EUA e das potências ocidentais na Ucrânia. Além das responsabilidades que já elencamos na eclosão da guerra, dos EUA, da OTAN e da Rússia, temos que responsabilizar também Zelensky, que ao tentar insistentemente colocar o seu país na OTAN acabou colocando-o numa guerra contra um vizinho extremamente poderoso. Qualquer seja o resultado do conflito, teremos uma Ucrânia bastante destruída.

O documento mencionado na pergunta saiu num contexto da inevitabilidade do conflito. Provavelmente, Putin e seus assessores, sabendo que a Ucrânia não desistiria da OTAN, já sabiam que a invasão ocorreria. E o documento expressa um movimento no sentido de atacar esse modelo de hegemonia que os EUA mantêm em termos econômicos globais. É uma ação que se coloca no caminho de questionar a predominância dos EUA, a continuidade de algo que não mais se justifica, como um mercado global dependente do dólar, moeda dos EUA, que é o grande mediador universal de trocas.

Sim, este documento se coloca no cenário de exigir uma transição de época, vinculada à perspectiva de um mundo mais multipolar, em substituição ao que, se não chegou a ser unipolar, significou um mundo em que havia a extrema preponderância do poder estadunidense.

Correio da Cidadania: Pra além da narrativa de heroísmo praticada por uma mídia ideologicamente alinhada ao liberalismo ocidental, o presidente ucraniano Volodimir Zelensky deu declarações em que parece ter chamado seus aliados a responsabilidades mais práticas na guerra e na defesa do território de seu país. Depois, abriu o flanco para conversas com Vladimir Putin. O que isso revela do estágio atual da guerra?

Sidnei Munhoz: A Rússia encontrou uma série de problemas na guerra. Acredito que fizeram uma avaliação militar errada e acreditavam que poderiam dividir muito rapidamente a Ucrânia. Essa é uma guerra que em inglês se chama de proxy war (guerra por procuração), isto é, como se tivéssemos uma guerra em que os EUA lutassem contra a Rússia até o último ucraniano. Não temos noções tão claras dos resultados dos combates, mas as forças dos EUA aumentaram sua presença no entorno da Ucrânia e, obviamente, da Rússia. E, claro, há fornecimento de armas e estratégias, até com monitoramento. O exército ucraniano obteve alguns bons resultados porque recebia preciosas informações sobre localização de tropas e arsenais russos, além de armas de grande potência e precisão recebidas dos aliados.

Temos uma guerra em que a OTAN e os EUA não estão envolvidos diretamente, mas estão dentro dela. No primeiro momento, a Rússia mostrou disposição de uma negociação rápida, mas Zelensky também acreditava em maior envolvimento dos aliados, o que levou a um banho maria.

O cenário aponta para uma guerra de longa duração, de desgaste. Mas numa guerra o imprevisível também existe. Não podemos esquecer que a Rússia tem o segundo maior arsenal nuclear do mundo. E tem testado alguns mísseis de altíssima velocidade, alguns até cinco vezes superiores à velocidade do som, que acendem um alerta, mostram que há um limite.

Correio da Cidadania: Para além do tabuleiro geopolítico, o que podemos imaginar como consequências mais imediatas para a humanidade?

Sidnei Munhoz: Isso é muito complicado, se algo der errado podemos colocar a humanidade à beira da possibilidade da sua extinção. Estamos perdendo um tempo precioso. Deveríamos estar focados na questão ambiental, o mundo está em colapso, temos eventos climáticos cada vez mais fortes. Basta ver o que houve no Brasil nos últimos meses, chuvas muito fortes, irregulares. Como dizem os cientistas, estamos perto de um ponto de não retorno. Colocamos em risco a própria vida no planeta.

É lastimável que a humanidade ainda tente resolver seus problemas com guerras. Infelizmente, havia expectativa há algumas décadas de que rumássemos para um mundo de prosperidade e paz, o que não aconteceu. Temos mais conflitos hoje do que no período da Guerra Fria.

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Gabriel Brito é jornalista e editor do Correio da Cidadania.

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